Era uma vez, uma velha,
muito velha que contava uma história sobre uma sociedade de recreio que existiu
em Lisboa, designada BPN — Bando de Palhaços Notáveis. As práticas
de gestão
fraudulenta tinham sido tantas que o assunto acabou por ser debatido numa
assembleia extraordinária. O presidente da assembleia era, na altura, um
jurista muito conhecido naquele tempo que dava pelo nome de Marinho Tinto. Muitas
e complicadas histórias se contavam em plena rua de falcatruas e desmandos que
implicavam principalmente quatro elementos que detinham lugares de destaque ou
ocupavam posição de relevo nacional. Depois de abertos os trabalhos, Marinho Tinto,
homem sem papas na língua, disse que estavam todos fartos de boatos e
maledicências e havia que esclarecer tudo interrogando os perseguidos para
dizerem de sua justiça. Dirigiu-se a um tal Videira e Costa que era há muito
tempo o administrador de serviço.
Era uma vez uma velha, muito velha |
— Então o Sr. tinha poderes
para pôr em prática as medidas arbitrárias que tomou?
— Ó Sr. doutor, obviamente
que sim. As atas estipulam tudo.
— Bem… O Sr. Manuel Dias
Toureiro, que nos pode contar sobre aqueles negócios…
— Sr. doutor, eu não tenho
nada a ver com isso. Esses negócios foram todos feitos por ele. E apontava o
dedo para o tal Videira e Costa.
— Isto está a ficar bom… E o
Sr. Arlindo de Orvalho?
Eu não sei de nada. |
— Eu não sei de nada. Quem
fazia tudo era o Videira e Costa.
— Vamos lá então perceber
como é que os Srs., em tão pouco tempo, conseguiram multiplicar em muito os
vossos haveres? Sr. Manuel Dias Toureiro, enamorou-se por Cabo Verde? Como
explica um tão elevado investimento?
— O Sr. doutor está a
levantar suspeita de fraude sobre um cidadão sério e honesto? Eu sou uma pessoa
de bem que ocupa lugar num conceituado tribunal nacional…
— E o Sr. Arlindo de Orvalho,
como consegue ser possuidor de tantas acções em tantas empresas?
— Olhe Sr. doutor, eu só
respondo a uma pergunta dessas num tribunal judicial. O Sr. não tem competência
para me tentar envolver em negócios fraudulentos e não se esqueça que eu já
desempenhei altos cargos no governo do Sr. Asdrúbal Capacho Silva.
— Tem razão. É verdade que
comprou acções, daquelas boas, a um euro, Sr. Asdrúbal Capacho Silva?
Não fiz, não faço, nem façarei |
— Era o que faltava é que me
tentassem envolver nesta história. Eu e a minha Maria a
vivermos num sobressalto repleto de ginástica para o dinheirito nos chegar ao
fim do mês e o Sr. tem o desplante de me provocar… Não fiz, não faço, nem
“façarei” qualquer depoimento.
— Estimada assembleia,
acabamos de ser informados pelos distintos associados de que as aldrabices de
que alguns os pretendem acusar são, ao fim e ao cabo, extremismos vadios que
procuram intoxicar a nossa sociedade contra pessoas de bem e de grandes
princípios de honradez.
E a terminar, acrescentava a
velha:
— A vida está tão diferente
do meu tempo! No meu tempo respeitavam-se os senhores de bem. Agora, depois de
uma assembleia destas, as pessoas em vez de reconhecerem, não, dizem que são
todos uns gatunos. Está o mundo perdido…
José Luís Vaz
©2014,Aveiro,Portugal
Pobre velha, muito velhinha. Se isto acontecesse quando era nova, pensava que era coisa do demónio que andava à solta. E viveu ela tantos anos para assistir a uma situação destas… Será da idade que ainda não reparou que a sua reforma emagreceu porque está a pagar as ações de tão ilustres doutores?
ResponderEliminarGostava de ter uma caneta igual à tua… mas não é para todos. Gostei muito Zé Luis.
Um sorriso sarcástico nos meus lábios a tentar explicar-me que já somos muito poucos os indignados... Mas é sempre bom ver que alguém "ridendo castigat mores". É que o roubo em Portugal tem o seu fundamento no costume, já é consuetudinário.
ResponderEliminarO que nos vale é que os novos teclados de computador começaram a ser feitos numa empresa chamada Gil Vicente. Vá, vamos todos fazer como o José Luís: afiar as unhas de gato e fazer "blandícias" a quem tanto e tão descaradamente nos rouba.
Belo texto, José Luís!
Temos um Molière completo. Gostei tanto do sarcasmo que até me deu para rir.
ResponderEliminarNão eram só os senhores de bem que se respeitavam; eram todas as pessoas. Bastava a palavra dada e era sagrado, não faltava um tostão ou então se era pedido algum, não havia trafulhices.
ResponderEliminarUma surpresa em forma de sátira que nos prende, do principio ao fim, e nos arranca um sorriso nestes tempos em que as palavras passaram a ter significados diferentes e onde permitir a alguns o que se tira a todos passou a ser um hábito. Este trabalho fez-me recordar os tempos em que os negócios se selavam com um aperto de mão e não eram necessários papéis nem contratos. As pessoas de bem assumiam os seus actos, fossem eles bons ou maus - e eram responsáveis pelo que faziam. Esta tua velha deve ser doutro tempo - do tempo em que até o Estado era uma pessoa de bem!
ResponderEliminarA ganancia insaciavel dos que vivem lutando para chegar ao poder ou para se manterem nele. Como sanguessugas sorvem os recursos do pais ate a ultima gota. A semelhanca da velha e de outras velhas apetece-me dizer: no meu tempo podiamos contar com a Justica, agora ja nao.
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