Com este trabalho encerramos o
Ciclo denominado “Violência sobre o ser humano” que temos vindo a desenvolver:
agradecemos a todos os que connosco quiseram colaborar.
Os olhos desmedidamente
abertos, um esgar de pavor, enrolada sobre si mesma, os pés quase tocando a
boca e o olhar perdido do rafeiro acossado pelo bater da porta, ou por um passo
forte que se adivinha e se ausenta.
Corria sentada... |
Corria sentada, revirando a
cabeça de um lado para o outro, à procura de alguma coisa, ou de alguém, ou de
nada, ou com medo de ser notada, de ser encontrada, de ser achada.
Permanecia imóvel na soleira
da porta, encostada à parede como se quisesse fugir para dentro dela e um turbilhão
de medos acossava-a. O medo, sempre! Sem saber o que fazer, sem saber para onde
ir ou onde ficar. O medo tornara-se um amigo presente, uma ideia de fugir e uma
vontade de ficar, um querer esconder-se, um desejo de se dissolver numa
nebulosa onde pudesse recomeçar: de novo!
Receava que a vissem, que
não a vissem, que fosse notada, que ninguém a encontrasse no vão daquela
escada, que alguém subisse ou que descesse… Receava viver e tinha medo de ter
de morrer!
Se o sol aparecesse… não,
melhor é o escuro da noite, quando as sombras vagueiam e os rostos se calam. E
pedir ajuda estava fora de questão: a vergonha de dar a conhecer a cara
magoada, as nódoas negras, o sangue escorrendo daquela ferida no peito, o
cabelo desgrenhado, aquele pedaço que lhe fora arrancado…
Sabe-se impotente, acusa-se
de tudo por que passam os seus filhos, julga-se responsável
pelo sofrimento
deles. Inunda-a uma dor imensa, sem medida nem peso, sente que perdeu
completamente a capacidade de reagir, de falar, de gritar, de se revoltar
contra a vida em que se enredou e se envolveu nela, como um casulo se envolve
na sua teia. E aquele silêncio que se impõe a si mesma e a impede de abrir a
boca e gritar!
E aquele silêncio... |
Os amigos, que sempre a
avisaram, as crianças que continuavam lá em cima e que, indefesas, nem sabem o
que fazer, a ansiedade de as ver, de as abraçar, de lhes sorrir mesmo na
tristeza do seu olhar. O melhor mesmo era subir as escadas e voltar para aquela
casa: talvez ele já estivesse a dormir, talvez se lhe desse um beijo, talvez se
lhe fizesse aquela comida especial, talvez…
Há sempre um talvez que a
impede de dizer basta! Há sempre um talvez que a cala perante uma bofetada, um
safanão, um grito incontido, uma criança que escuta, um soluço que a sufoca, um
filho que espreita.
Tinha de voltar para casa |
Tinha de voltar para casa:
sabe-se lá o que ele faria se não encontrasse o jantar feito ou se os miúdos
ainda estivessem acordados. Bem lhe bastava ter de o ouvir por um motivo nunca
justificado – as meias fora da gaveta, a gaveta aberta, o relógio no chão, o frigorífico
vazio, a cadeira fora do seu lugar, as revistas em cima da cadeira, a cadeira
atirada ao chão e sempre, sempre a violência numa presença constante que não
deixa lugar a uma justificação, a uma palavra, a uma desculpa – mesmo que não
haja lugar a justificações porque nada se deve justificar.
Uma relação que esfria, um
beijo que se esconde, os olhos sempre discretos que não podem – não devem –
olhar para lado nenhum, nem mesmo para dentro de si ou dos outros. Nada pode
suportar uma violência silenciosa que se acomoda, permanece, perdura e se
instala.
Tropeçou num degrau, numa
cadeira, num homem: sentiu-se a ser atirada de um lado para o outro, a ser
violentamente abanada, percebeu que havia chegado ao fim. E depois só ficou o
silêncio, um silêncio pesado que doía de tanto doer.
Alguns dias depois,
encontraram-na: eram cinquenta e quatro, as fendas que aquele corpo suportara!
Ninguém conseguiu, porém, perceber o porquê daquele sorriso sereno, que se
desenhava no rosto, numa imagem que correu mundo e espantou gentes: era apenas
a voz do silêncio a gritar bem alto o silêncio da vida.
Albertina
Vaz
©2014,Aveiro,Portugal
era apenas a voz do silêncio a gritar bem alto o silêncio da vida." Foi a própria dor, já incapaz de se conter no silêncio imposto pela voz, que falou, gritou através dos golpes profundos desenhados no rosto, através dos estilhaços daquele ser despedaçado. A dor extrema que este texto nos faz sentir. Brilhante, Albertina!
ResponderEliminarCom a ofensa surge a dúvida, o receio da morte do sentimento, a hesitação, a perturbação do medo de querer e já não acreditar, o contorcionismo da vontade em voltar a perdoar e voltar a esperar pelo ajustamento mas não haver fé, o medo de errar... (Belo balancear entre o sim e o não, o ser e o não ser...)
ResponderEliminar"A Voz do Silêncio" espelha-te, mostra-te, exibe muito de ti e quando isto acontece ficas na tua praia. Os problemas humanos e sociais brotam com imensa sensibilidade dos teus neurónios para a intensidade com que os dedos teclam as palavras e eis a violência, tão horrenda retratada numa escrita tão bela!
ResponderEliminarNesta forma de escrita, até chega a ser bela a forma como o silêncio tortura com o ferrão da dúvida. Lê-se outra vez para verificar se não haveria uma fenda por onde escorresse a voz da libertação. Não! A tortura é sempre perfeita e silenciosa!
ResponderEliminarO sorriso sereno, depois de tanto sofrimento, era o rosto de quem tinha deixado de sofrer. Quantos casos como este por esse mundo fora. Lindo texto, Albertina, embora carregado de tristeza.
ResponderEliminarMagnifico texto para encerramento deste ciclo. Todo ele carregado de sofrimento mas de uma beleza extrema. É uma delicia ler os teus textos. Uma vez mais, obrigada Albertina.
ResponderEliminaradore o tema, mais sempre esquecemos que há uma brutalidade que não dá golpes, não deita cadeiras abaixo, é silenciosa, é agresão sicologica, fica marcada na mente e nunca mais sae. Continua com teo evoluir, faz muita falta, beijo
ResponderEliminarLi em crescendo sofrimento, raiva, irritação, revolta… Por fim, antecipei o desfecho: a libertação possível e a que veio sublimar o sofrimento, a raiva, a irritação, a revolta sentidas antes. E quando um texto provoca sentimentos sublimes no leitor, está tudo dito! Silêncios que gritam… Obrigada, Albertina Vaz!
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