A sala, nova e generosamente
iluminada pela luz do sol, franqueada por duas janelas rasgadas, bem podia ter
sido um local acolhedor.
... um fogão a lenha |
A um canto, um fogão a lenha, oferecia-se para nos
mimar com um pouco de calor nos invernos demasiado rigorosos para os nossos agasalhos
tão singelos. Mas tudo à nossa volta era frio e impessoal. Na frente, sobre o
quadro preto, as fotografias emolduradas de Oliveira Salazar e Américo Thomaz
impunham-se aos nossos olhos indefesos. A meio da parede, entre os dois - que mais
pareciam o bom e o mau ladrão - um Cristo agonizante, na cruz.
Era neste cenário que pontificava
a D. Cândida. Cândida? Que nome desajustado! Confirma bem o caráter arbitrário
do signo linguístico! A residir e a lecionar na aldeia há duas gerações, era vulgarmente
apelidada de “a senhora velha”. Sem qualquer sentido pejorativo, esta
designação, a um tempo, ingénua e rude, servia para a distinguir dos professores
e professoras dos rapazes, sempre mais jovens, que nunca por lá permaneciam por
muito tempo.
Ninguém discordava dos seus métodos repressivos |
Comparada com os seus colegas, a “senhora velha”, de acordo com os
parâmetros do povo, ganhava-lhes invariavelmente aos pontos - pela assiduidade
e pontualidade, pelos resultados dos alunos, mais visíveis nos exames, onde,
segundo dizia, nunca sofrera uma reprovação e o desempenho variava entre o Bom e o Excelente. Era considerada uma professora modelar, com uma
autoridade que ninguém ousaria contestar. Ninguém dava mostras de discordar dos
seus métodos repressivos, o que aumentava ainda mais a nossa fragilidade e
vulnerabilidade perante ela.
A sua aparição, sempre
pontual, ao cimo da rua, gerava-nos um aperto no coração. Antes de entrar na
sala, despojávamo-nos dos sapatos ou tamancos, que esperavam por nós,
militarmente alinhados, a um canto do alpendre. Do que se passava lá dentro,
recordo a tabuada cantarolada; a História de Portugal, papagueada por cada
aluna, sentada no estrado junto da secretária; a Geografia - rios, serras,
províncias, distritos, de Portugal Continental, ilhas Adjacentes e Colónias,
tudo enumerado e explicado junto dos respectivos mapas. Recordo também a
leitura, de pé, junto à janela; muitos ditados; muitas contas; muitos problemas…
E sobretudo muitas, muitas reguadas.
Encontrei-a, mais tarde, uma
ou duas vezes nas ruas da Baixa. O diálogo foi breve e frio. O medo permanecia
alojado no mais profundo do meu ser.
A D. Cândida já partiu há
muito. Se um dia voltasse a encontrá-la, (suponhamos que teria
passado por um
processo de reencarnação e, já agora, também de realmação) gostaria de obter
dela respostas às minhas muitas perguntas. E seriam tantas! Porque é que nos
privava das brincadeiras, marcando trabalhos de casa que nunca mais acabavam? Porque
é que era tão pródiga em críticas arrasadoras e tão comedida nos elogios?
Porque é que... |
Porque
é que castigava tão impiedosamente? Porque é que preferiu sempre ser temida a
ser amada pelas alunas. Resumindo, porque é que fez daqueles anos da minha
infância um tempo de autêntica tortura? Com certeza, far-me-ia bem libertar
toda a opressão que carreguei na alma, durante tantos anos, sem ousar soltar o
mais leve queixume. Conseguiria, finalmente, sarar as feridas deixadas pelo
peso da cruz que carreguei como aquele Cristo sofredor que nos olhava,
impotente, do alto do madeiro quando, perante a negrura assustadora da ardósia,
as pernas tremiam, a memória falhava, o raciocínio esmorecia, e as contas não
resistiam aos noves fora.
Vou dizer-lhe que, passadas
tantas décadas, o medo ainda me persegue. Senti-o bem presente ao escrever este
texto.
Alto! Parece-me ouvir uma
voz. “Isto não é escrita criativa! Não pensaste nisso? Estavas a guardar
cabras?” É ela, não tenho a menor dúvida! Mas espera lá que já levas. Olhe, D.
Cândida, não se zangue, prometo-lhe que brevemente vou escrever sobre os temas Deveres para com os Pais, Deveres para com Deus, Deveres para com a Pátria, Deveres para com a nossa Bandeira. Com o
treino que eu tive, vai ver que minha prosa não a vai envergonhar.
Conceição Cação ©2014,Aveiro,Portugal
Incrível é imaginar como é que uma criança é tão brutalmente violentada e consegue silenciar-se ao ponto de, tantos anos volvidos, travar uma luta de superioridade que nunca conseguiu concretizar. Feliz ou infelizmente há por aí muitas D. Cândidas que aliam a competência profissional ao medo que provocam nos seus alunos. Esquecem que respeito não quer dizer medo e que não é pelo medo que vão conseguir formar pessoas. Como sempre São, o seu trabalho surpreende pela qualidade a que nos habituou.
ResponderEliminarEste é um daqueles temas que muito me incomoda. Assisti a alguma desta violência "tolerada" pela instituição e pela família... Estranha forma de transformar crianças em homens... Mas também recordo as sonoras gargalhadas da MINHA PROFESSORA que tinha a seu cargo 50 rapazes e reparigas das 4 classes...
ResponderEliminarA ternura com que recordo a minha primeira professora (1ª classe) não me faz esquecer a violência que se seguiu.O que mais me preocupa é que hoje como ontem não sinto que os BONS professores sejam estimulados e os outros percebam que podem e devem melhorar o seu desempenho. As crianças só são as bolas do "euromilhões": é tudo uma questão de sorte... que eu estou a ter pelo facto deste texto me obrigar a refletir sobre um tema muito sério que ao longo dos anos tem sido muito mal tratado. Enquanto a ESCOLA não for vivida e sentida por TODOS :alunos, professores e famílias teremos qualquer coisa menos ESCOLA. Entretanto, a ESCOLA nunca será um oásis... ela é só uma parte, importante, de toda a sociedade.
ResponderEliminarAo ler este texto, visualizei o meu tempo da escola. Algumas crianças sofreram na carne os horrores daquela educação? disciplinar. Felizmente a recordação que tenho da minha professora,é doce, boa educadora,sem recorrer a essas atrocidades para se aprender, ou desaprender. Sinto-me feliz por recordá-la.
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