terça-feira, 28 de janeiro de 2014

Por falar em violência…

A sala, nova e generosamente iluminada pela luz do sol, franqueada por duas janelas rasgadas, bem podia ter sido um local acolhedor. 
... um fogão a lenha
A um canto, um fogão a lenha, oferecia-se para nos mimar com um pouco de calor nos invernos demasiado rigorosos para os nossos agasalhos tão singelos. Mas tudo à nossa volta era frio e impessoal. Na frente, sobre o quadro preto, as fotografias emolduradas de Oliveira Salazar e Américo Thomaz impunham-se aos nossos olhos indefesos. A meio da parede, entre os dois - que mais pareciam o bom e o mau ladrão - um Cristo agonizante, na cruz.
Era neste cenário que pontificava a D. Cândida. Cândida? Que nome desajustado! Confirma bem o caráter arbitrário do signo linguístico! A residir e a lecionar na aldeia há duas gerações, era vulgarmente apelidada de “a senhora velha”. Sem qualquer sentido pejorativo, esta designação, a um tempo, ingénua e rude, servia para a distinguir dos professores e professoras dos rapazes, sempre mais jovens, que nunca por lá permaneciam por muito tempo. 
Ninguém discordava dos seus
métodos repressivos
Comparada com os seus colegas, a “senhora velha”, de acordo com os parâmetros do povo, ganhava-lhes invariavelmente aos pontos - pela assiduidade e pontualidade, pelos resultados dos alunos, mais visíveis nos exames, onde, segundo dizia, nunca sofrera uma reprovação e o desempenho variava entre o Bom e o Excelente. Era considerada uma professora modelar, com uma autoridade que ninguém ousaria contestar. Ninguém dava mostras de discordar dos seus métodos repressivos, o que aumentava ainda mais a nossa fragilidade e vulnerabilidade perante ela.
A sua aparição, sempre pontual, ao cimo da rua, gerava-nos um aperto no coração. Antes de entrar na sala, despojávamo-nos dos sapatos ou tamancos, que esperavam por nós, militarmente alinhados, a um canto do alpendre. Do que se passava lá dentro, recordo a tabuada cantarolada; a História de Portugal, papagueada por cada aluna, sentada no estrado junto da secretária; a Geografia - rios, serras, províncias, distritos, de Portugal Continental, ilhas Adjacentes e Colónias, tudo enumerado e explicado junto dos respectivos mapas. Recordo também a leitura, de pé, junto à janela; muitos ditados; muitas contas; muitos problemas… E sobretudo muitas, muitas reguadas. 
Encontrei-a, mais tarde, uma ou duas vezes nas ruas da Baixa. O diálogo foi breve e frio. O medo permanecia alojado no mais profundo do meu ser.
A D. Cândida já partiu há muito. Se um dia voltasse a encontrá-la, (suponhamos que teria
Porque é que...
passado por um processo de reencarnação e, já agora, também de realmação) gostaria de obter dela respostas às minhas muitas perguntas. E seriam tantas! Porque é que nos privava das brincadeiras, marcando trabalhos de casa que nunca mais acabavam? Porque é que era tão pródiga em críticas arrasadoras e tão comedida nos elogios? 
Porque é que castigava tão impiedosamente? Porque é que preferiu sempre ser temida a ser amada pelas alunas. Resumindo, porque é que fez daqueles anos da minha infância um tempo de autêntica tortura? Com certeza, far-me-ia bem libertar toda a opressão que carreguei na alma, durante tantos anos, sem ousar soltar o mais leve queixume. Conseguiria, finalmente, sarar as feridas deixadas pelo peso da cruz que carreguei como aquele Cristo sofredor que nos olhava, impotente, do alto do madeiro quando, perante a negrura assustadora da ardósia, as pernas tremiam, a memória falhava, o raciocínio esmorecia, e as contas não resistiam aos noves fora.
Vou dizer-lhe que, passadas tantas décadas, o medo ainda me persegue. Senti-o bem presente ao escrever este texto.
Alto! Parece-me ouvir uma voz. “Isto não é escrita criativa! Não pensaste nisso? Estavas a guardar cabras?” É ela, não tenho a menor dúvida! Mas espera lá que já levas. Olhe, D. Cândida, não se zangue, prometo-lhe que brevemente vou escrever sobre os temas Deveres para com os Pais, Deveres para com Deus, Deveres para com a Pátria, Deveres para com a nossa Bandeira. Com o treino que eu tive, vai ver que minha prosa não a vai envergonhar.

Conceição Cação ©2014,Aveiro,Portugal

4 comentários:

  1. Incrível é imaginar como é que uma criança é tão brutalmente violentada e consegue silenciar-se ao ponto de, tantos anos volvidos, travar uma luta de superioridade que nunca conseguiu concretizar. Feliz ou infelizmente há por aí muitas D. Cândidas que aliam a competência profissional ao medo que provocam nos seus alunos. Esquecem que respeito não quer dizer medo e que não é pelo medo que vão conseguir formar pessoas. Como sempre São, o seu trabalho surpreende pela qualidade a que nos habituou.

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  2. Este é um daqueles temas que muito me incomoda. Assisti a alguma desta violência "tolerada" pela instituição e pela família... Estranha forma de transformar crianças em homens... Mas também recordo as sonoras gargalhadas da MINHA PROFESSORA que tinha a seu cargo 50 rapazes e reparigas das 4 classes...

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  3. A ternura com que recordo a minha primeira professora (1ª classe) não me faz esquecer a violência que se seguiu.O que mais me preocupa é que hoje como ontem não sinto que os BONS professores sejam estimulados e os outros percebam que podem e devem melhorar o seu desempenho. As crianças só são as bolas do "euromilhões": é tudo uma questão de sorte... que eu estou a ter pelo facto deste texto me obrigar a refletir sobre um tema muito sério que ao longo dos anos tem sido muito mal tratado. Enquanto a ESCOLA não for vivida e sentida por TODOS :alunos, professores e famílias teremos qualquer coisa menos ESCOLA. Entretanto, a ESCOLA nunca será um oásis... ela é só uma parte, importante, de toda a sociedade.

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  4. Ao ler este texto, visualizei o meu tempo da escola. Algumas crianças sofreram na carne os horrores daquela educação? disciplinar. Felizmente a recordação que tenho da minha professora,é doce, boa educadora,sem recorrer a essas atrocidades para se aprender, ou desaprender. Sinto-me feliz por recordá-la.

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