sábado, 8 de fevereiro de 2014

A violência e a vida

Maria era muito jovem quando casou, enamorada e confiante. O João era meigo, gentil e prometia ser um bom marido. Ela queria sair de casa dos pais; o seu pai era bom homem mas bebia e em resultado disso batia e maltratava a mulher e os filhos. A mãe achava normal e sofria calada, mas Maria não entendia essa violência e queria uma vida melhor para si.
Casou e foi para uma pequena casa com o marido; ela trabalhava em costura e o João na fábrica.
Levou a primeira bofetada 
Depressa descobriu que o casamento afinal não era o que tinha pensado e desejado. Levou a primeira bofetada do marido três meses depois de ter casado, porque, para acabar um trabalho de costura, atrasou o jantar. O João pediu desculpa, que estava nervoso, o dia tinha corrido mal, não voltava a acontecer; ela aceitou e sentiu-se ainda um pouco culpada por ter provocado, com o seu atraso, aquela reação.
Aquela agressão foi a primeira de muitas. Estava grávida de seis meses quando entrou pela primeira vez no hospital, vítima de um espancamento que pôs em risco a sua gravidez. Por vergonha e medo negou que tivesse sido agredida e, depois de dois dias de internamento, teve alta para regressar a casa.
Não tinha ninguém a quem confiar o seu sofrimento, a sua dor, sentia-se desesperada, desamparada e com um medo horrível de chegar a casa.
Resolveu passar por casa da mãe.
Mãe, preciso de ajuda...
Chorou agarrada à mãe, pediu-lhe ajuda, não queria ficar em casa com o marido. Tinha medo e temia pela vida do filho que estava em risco. A mãe chorou com ela mas disse-lhe que o lugar dela era em casa, que não respondesse quando o marido estivesse a implicar, as mulheres sempre tiveram uma vida sofredora, que era assim mesmo.
— Mas mãe, ele não tem o direito de me bater. Só te peço que me deixes ficar aqui até eu resolver o que fazer.
— Não Maria, não pode ser, até era uma vergonha se deixasses a tua casa. O que queres ser? Uma mãe sem marido? Ter um filho sem pai? Tem paciência filha, mas aqui não podes ficar, nem o teu pai o permitia.
Com o coração a sangrar de dor e desilusão, não restou outro caminho a Maria senão o regresso a casa e à companhia daquele marido violento que tão bem a tinha enganado, levando-a a acreditar ser um homem de bem, quando afinal não prestava, nem sequer tinha a desculpa do álcool porque não necessitava estar bêbado para a agredir.
Pelo caminho ia pensando em como era possível que a sua própria mãe a não ajudasse e a tivesse aconselhado a “aguentar”, por ser normal os homens às vezes serem agressivos. Se nem com o apoio da família contava, como ia ser a vida dela?
— Chegaste, espero que te tenha servido de lição, e para que não volte a acontecer é bom que não me provoques. E o garoto? Está bem? Vê se tens juízo, não queiras ser a responsável pela morte dessa criança.
Maria nem queria acreditar no que ouvia do marido. Aquele não era um homem, era um monstro. Provocar, ela? Como era isso possível se até tinha medo de olhar para ele?
As agressões  continuaram
As agressões continuaram e deu em ser ciumento, desconfiando de tudo e de todos. Foi proibida de sair de casa e obrigada a recusar trabalhar para algumas clientes que, no entender do marido, não eram companhias que se tivessem, que só lá iam para lhe dar volta à cabeça com maus conselhos.
Um dia, já o seu pequeno Miguel tinha três anos, o marido chegou a casa para jantar mas vinha muito irritado.
— Essa janta não vem? Precisas que te dê uns “mimos” para te lembrar de que quando chego a casa quero a comida na mesa?
— Mas João, a comida está pronta vou já servir.
— Servir, não serves, só se a fores buscar ao chão. Nem sequer sabes ser mulher, amante, mãe; tu não vales nada.
Dizendo isto atirou-lhe com a travessa de comida à cabeça. O sangue de imediato começou a jorrar. O seu pequeno Miguel gritava agarrado às pernas dela cheio de medo; o pai enraivecido pegou-lhe num braço e atirou-o contra o armário.
— No meu filho nunca mais tocas, eu dou cabo de ti se o voltas a maltratar.
Era o desespero de uma mãe a quem tinham magoado o filho. Pagou bem caro a sua revolta. Ele atirou-a ao chão, pontapeou-a com uma fúria irracional e depois de a ver inconsciente e a sangrar saiu de casa.
— Vem “depessa” a minha mãe está a” domir” e não “acoda”, foi o meu pai que lhe bateu.
Era o pequeno Miguel a pedir ajuda à vizinha, que de imediato acorreu para ver o que se passava.
— É do 112? Por favor venham depressa que a minha vizinha foi espancada pelo marido e está muito mal, está inconsciente. Não, o marido não está, saiu de casa e deixou-a neste estado.
Maria foi internada com várias fraturas de costelas e traumatismo craniano, e o seu filho ficou
Quero ter a paz que nunca tive
numa instituição enquanto a mãe assim estivesse, a pedido da mesma, que não quis que fosse entregue aos avós. O marido foi finalmente preso, aguardando para ser ouvido.
Chegou a assistente social que, depois de a ouvir, prometeu encaminhá-la para uma casa abrigo de mulheres vítimas de violência doméstica e que levaria o seu filho consigo. Perguntou-lhe se estava disposta a abandonar a casa e a tentar organizar a sua vida, sem ter a ameaça permanente do marido.
— É o que mais quero na minha triste situação. Quero livrar o meu filho dum tal ambiente de violência e quero ter a paz que nunca tive depois que me casei.
Maria ingressou no refúgio, cheia de gratidão por quem a tinha ajudado. Passou os primeiros tempos a colaborar em tudo o que podia e a costurar.
Porque tinha grande habilidade e criatividade, a diretora do refúgio arranjou-lhe clientes para as peças de artesanato que ia fazendo, e Maria conseguiu juntar algum pé-de-meia que lhe permitiu, sempre ajudada pelo pessoal da casa, arranjar uma pequena habitação onde tinha o seu ateliê e podia educar o filho.
Alguns anos passaram. Maria foi visitar-me, pois tínhamos mantido o contacto; estava sentada no meu gabinete, a chorar e a desabafar, desta vez sem sofrimento e com algum orgulho por ter superado com a nossa ajuda, os seus padecimentos. Era uma mulher prematuramente envelhecida, tinha completado trinta e seis anos, mas parecia ter muito mais.
— Tenho o meu filho, o meu querido filho que foi quem me deu forças para aguentar todo este sofrimento; foram anos de grandes agressões, de humilhações, de desespero. Agora, finalmente, estamos a viver sozinhos, o pai depois da última agressão foi condenado e preso.
Eu e os meus pais estamos afastados e sei que a minha mãe está muito arrependida por não me ter ajudado quando lhe pedi. Perdoo-lhe, mas penso que se tivesse tido mais coragem talvez as duas tivéssemos sofrido menos às mãos dos maridos.

As duas acabámos abraçadas a chorar. Conhecia a Maria há muito tempo, sabia o que a violência doméstica pode fazer às suas vítimas e estava contente por finalmente a Maria ter encontrado a paz de espírito que tanto merecia.


Dores Topete ©2014,Aveiro,Portugal

3 comentários:

  1. Uma história que nos prende, fazendo-nos viver o drama da e com a protagonista. Um final feliz bem merecido por esta mulher inconformada que recusou render-se à prepotência do marido.

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  2. É a história de tantas mulheres. Ao ler este texto revivi o drama de outras mulheres, até algumas, minhas conhecidas. Ainda bem que a Maria teve um final feliz. Gostei bastante.

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  3. E a Maria, continuou a amar o marido?
    Maria gritou mais alto que a mãe e os vizinhos porque teve a coragem de não querer ser a protagonista principal daquele "Filme". Gostei muito

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