Está
frio, hoje! Este tempo anda esquisito: ora chove ou faz um calor sem limites.
Mas hoje estou mesmo cansado: calcorreei quase toda a cidade e nada me agrada.
Nem um sítio, nem um banco de praça, nem um vão de escada… Falta-me qualquer
coisa, falta-me um calor que não é quente ou uma brisa que não é vento.
Que saudades daquele menino |
Que
saudades daquele menino: dava-me vontade voltar lá só para o ver, só para rir
com o seu sorriso e brincar com as suas mãozitas. Éramos amigos, muito amigos
mesmo. Quando ele nasceu eu era ainda muito pequenino mas percebi logo que
tinha perdido o meu lugar no centro das atenções daquela família. Depressa,
porém, compreendi que uma criança é um raio de sol que entra casa adentro. Eu
também gostei de o ouvir chorar pela primeira vez. Eu também gostei de
espreitar para o berço e ver as mãozitas dele, muito pequeninas, a agarrar o
espaço e a abrirem-se e a fecharem-se como se o mundo coubesse dentro delas.
Deu-me vontade de o abraçar e sem ninguém dar conta dei-lhe a minha mão e
deixei-o brincar com ela. Devagarinho porque ele é muito pequenino e eu tive
medo de o magoar.
Se
vissem: quando eu chegava, olhava para ele, fazia-lhe umas caretas e, certo e
sabido,
deixava de chorar. Eles nem compreendiam o que se passava mas o que é
verdade é que aquela criança gostava de mim. Podem crer: gostava mesmo! Assisti
ao seu primeiro choro, à mudança da primeira fralda, ao vestir da primeira
roupinha, ao primeiro brinquedo que fazia dlim-dlão… Era um bebé tão lindo!
Depois começou a gatinhar pela casa fora e eu sempre ao seu lado arrastava-me
pelo chão a fingir que andava mais devagar do que ele. Um dia sentou-se e foi
uma festa: bateram-se palmas, cantaram-se as canções de que ele gostava mais e
houve direito a sobremesa melhorada. Até eu usufrui da alegria geral e lá comi
o que todos comeram e saltei como todas as crianças e com os adultos que
fizeram de crianças e corri pela casa fora.
...aquela criança gostava de mim |
...as cócegas que me fez |
Um
dia subiu-me para as costas e as cócegas que me fez – nem imaginam o que tive
de me dominar para não o deixar cair! Depois puxava-me as orelhas, apertava-me
o nariz e metia as mãozinhas pequeninas na minha boca. Eu dava-lhe empurrões
pequenitos, amparava-o quando parecia que ia a cair e desafiava-o para a
brincadeira. Depois fazíamos corridas pela casa fora e… partíamos coisas. Aí
começou a barafunda: eu era sempre o culpado e realmente era, mas distraía-me
com o meu menino, ia contra uma cadeira, deitava um jarrão ao chão e fugia a
esconder-me. Ele ia comigo e ficávamos, muito caladitos, debaixo da cama, ou corríamos
para o vão da escada: partilhávamos guloseimas que ele ia trazendo da cozinha
sem ninguém dar por isso e brincávamos de esconder as mãos e ele lá ia de novo
às minhas cavalitas a desvendar o mundo que nos limitava a um espaço e a um
tempo onde todos tinham o seu lugar.
Todos,
menos eu que estava a ficar demasiado grande para viver num apartamento. Um dia
ouvi-os a comentar que tinham de decidir o que me haviam de fazer. Fiquei
triste: eu julgava que fazia parte daquela família e comecei a andar pelos
cantos sem saber o que fazer. O meu amigo, o menino, que tinha crescido comigo
estava longe de pensar no que eles estavam a preparar e o que mais me custou
foi que nem nos deram tempo para nos despedirmos. Um dia meteram-me num carro,
andaram durante muito, muito tempo e eu sem perceber o que eles queriam de mim.
Até estava a gostar de ver os campos cheios de flores vermelhas, amarelas,
azuis, violetas. Até estava a gostar de ouvir o canto dos pássaros na copa das
árvores que floresciam em dias azuis de sol brilhante e dum calorzinho que se
entranhava no corpo e sabia bem.
De
repente parámos e saímos do carro: havia por ali perto um rio porque eu ouvia a
água a
correr por entre as folhas das árvores caídas no chão. E a água
gorgolejava, atravessando pedras e galgando montes – era uma corrente fresca
num dia de calor! Nem tive tempo para pensar: se o meu menino estivesse ali
tomávamos banho naquelas águas refrescantes. Mas ele não estava lá - nem sei porque não estava,
ou melhor, não sabia!
Nem tive tempo para pensar |
Num
instante o carro rodou e eu fiquei para ali, sozinho, sem saber que sítio era
aquele, sem saber para onde ir, sem querer sair dali, sem querer acreditar no
que estava a acontecer. O rio deixou de emanar frescura e o sol pareceu ter-se
escondido, quem sabe, no vão da escada como eu e o meu menino fazíamos em dias
de tempestade doméstica.
Podia
ter voltado para casa – eles não acreditavam que eu fosse capaz de o fazer mas
eu sei que podia! Mas eu soube também, ou melhor, eu percebi naquele momento que
não me queriam naquela casa e não voltei. Naquele dia fiquei por lá, apreciando
a liberdade de poder correr sem limite de espaço e descansar sem limite de
tempo, de poder fazer o que queria sem ninguém a demarcar o meu caminho e
voltar para trás quando me apetecesse. E de dizer: faço porque me apetece e não
faço porque não quero!
...dos beijos do meu menino |
À
noite senti falta do meu canto, do local onde dormia, dos beijos do meu menino
e dos abraços – a falta que me fizeram os abraços dele! Dei por mim a tentar
esconder uma lágrima que teimava em saltar-me dos olhos. Depois deitei-me por
ali e chorei, chorei em torrentes sem conseguir parar as lágrimas, sem
conseguir sufocar os soluços que se entrecruzavam no meu peito e me arrastavam
para uma noite escura em que nem as estrelas iluminavam o céu. Até que adormeci
e dormi profundamente envolto naquela mágoa que não era a de ter ficado sem
casa – era uma mágoa profunda de quem foi abandonado porque estava a mais.
Durante
algum tempo arrastei-me por entre a folhagem e fiquei por ali sem saber que
fazer, sem querer fazer nada, à espera nem sabia de quê, nem de quem. O vazio
tinha-se instalado e eu teimava em não querer sair dele! Num momento, porém,
fez-se luz: quem sabe quantos de nós não estão assim sozinhos como eu, quem
sabe quantos de nós se não sentem abandonados, excluídos, desprezados pelos
seus ou por quem deles se serviu para sempre?
E
parti à descoberta do que me faltava: um companheiro para a vida e para a
travessia que
se avizinhava. Não, eu não queria desistir de viver, eu tinha
muito ainda para descobrir e nada melhor do que esta minha nova liberdade para
conquistar o mundo e o que o envolvia.
um companheiro para a vida |
Pus-me
a caminho e depressa cheguei à cidade grande onde a confusão abunda e a pressa
é um caminho exacto para chegar ao rumo não desejado. Confesso que nada disto
me agrada mas agora tinha à minha frente uma vida nova para descobrir e um rumo
novo para desvendar. Tanta gente e tanto ruido, tanto silêncio esventrado e
tanto grito sufocado: aquela gente não era feliz. Nem eu: há dias sem ter de
comer, sem um espaço para dormir, sem um cobertor para me dar calor! Anoitecia
e eu continuava a palmilhar a cidade dos homens e as ruas, encruzilhadas de
gente que se arrasta penosamente, sem um sorriso, sem uma gargalhada, sem um
choro, sem um pranto!
Homens
partilhando cartões para se abrigarem do frio e restos de comida para saciarem
uma fome que quase lhes suga a parca estatura que os vai mantendo de pé. Caído,
de lado, sem força já para se levantar encontrei um ser sem esperança, enrolado
sobre si mesmo, tiritando de frio e tremendo de solidão. Empurrei-o com uma das
minhas mãos e ouvi-o dizer:
- Não tenho nada aqui… já não
há nada para mim quanto mais para te dar!
Se o meu menino estivesse ali... |
Recordei
o meu menino e as vezes que debicávamos um doce em conjunto ou um pedaço de pão
que havia sobrado do jantar. Alguns com tanto e tantos outros sem nada… Se o
meu menino estivesse ali havia de encontrar alguma coisa para comermos juntos!
Saltei
para dentro de um caixote do lixo e encontrei restos da mesa do meu menino:
tanta coisa boa deitada fora! Uma perna de frango, um tomate quase inteiro, um
pão meio acabado, um pacote de batatas fritas, um sumo quase cheio… era demais
para levar tudo de uma vez só! Até uma manta meia ratada por lá permanecia.
Tinha encontrado jantar para mim e para o homem que permanecia enrolado sobre
si mesmo abrigando-se da chuva com o seu próprio corpo.
Após
várias viagens consegui vê-lo sentar-se, comer deglutindo pedacinho a pedacinho
aquele manjar de rico que o lixo guardara e partilhar com ele as migalhas das
mesas fartas que os filhos da solidão sabem deitar fora.
eu passei o ser o menino dele |
- Come, amigo, isto não é
tudo para mim! Se não fosses tu hoje não arranjava nada! E depois se quiseres
ajeitamo-nos aqui os dois: sabes, se ficarmos juntos, temos
menos frio e até a geada é mais fácil de suportar.
Corri
a buscar a tal manta ratada que permanecia no caixote do lixo. O que se pode
arranjar num caixote de lixo – ninguém consegue imaginar! Só indo lá dentro e
procurando e saindo a cheirar mal e a saber a sujo!
- Também arranjaste uma
manta?! Nem me pareces muito faminto mas que estás sozinho como eu estás, disso
tenho a certeza. Chega-te para aqui: vamos enroscar-nos um no outro, assim
sentimos menos o frio e o calor de um passa para o outro. Hi! menino, cheiras
tão mal – é do lixo! Deixa lá – nada que um bom banho de praia não possa lavar!
Só
então percebi: ele não era o meu menino, mas eu passei a ser o menino dele!
Albertina
Vaz
©2014,Aveiro,Portugal
que delícia de texto, pela criatividade da situação narrada e, principalmente, pelo mundo de sentimentos de um "fiel amigo", sempre disponível.
ResponderEliminarapreciei -o também pela técnica de escrita usada na transmissão da mensagem ( de amor pelos outros).
Encontros e desencontros que ouvimos, vemos e vivemos no dia-a-dia. O casal tão amigo de um cão que mimou seu filhote que foi capaz de separar aquela criança do animal e vice-versa. Não contentes com isso, abandonaram, lá longe, um animal que praticou o crime de crescer... A capacidade de quem nada tem - sem abrigo - para ser solidário com um simples cão que dele se abeirou e vice-versa. E se aquele casal entrosasse com ambos os vice-versa... Um belo retrato da nossa sociedade tão evoluída.
ResponderEliminarO menino pega-nos, nós pegamos o menino! E depois as injustiças dos homens vão-se enroscar uma na outra, para sentirem menos frio que teima em não deixar o coração que aqueceu com esta prosa tão fluente e cadenciada!
ResponderEliminar"ele não era o meu menino, mas eu passei a ser o menino dele". Rejeitado por gente ingrata e insensível, encontrou no coração daquele homem despojado de bens materiais o afeto que considerava perdido. E novamente a troca de carinho, um dar e receber, a reacender a esperança e a devolver sentido à vida.
ResponderEliminarGostei tanto deste texto. Como foi rejeitado por aqueles por quem tinha tanto carinho, logo se dedicou a alguém que tanto precisava dele.
ResponderEliminarque lindo texto ..... a lagrimita teimava em cair..... <3 alice
ResponderEliminarTambém a mim.
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