Hoje
escreverei sobre a violência ao contrário. Dos heróis que dela se elevam. E há
muitos por esse mundo fora, enchendo livros de histórias que nos tocam,
inundando a televisão de imagens que nos emocionam, primeiro por pena, depois
por raiva, e no fim por orgulho, porque são heróis e a violência que os chagou
ficou lá atrás. Bravos, eles. Bravas, elas.
...violência também pode ser um acto solitário |
Mas
eu não conheço o mundo e não quero contar uma história criativa. Hoje quero ser
a palavra prática e falar-vos dos heróis que tive a honra de conhecer,
aprender, tocar e abraçar, sim, eu já abracei um herói - quem disse que o mundo
não nos pertence?
Não
sei se concordarão da minha opinião, mas violência também pode ser um acto
solitário, involuntariamente sádico, sem que o agressor se aperceba à primeira
vista que se inflige de dor: primeiro começa por precisar de um escape, e usa o
seu corpo, depois a sua mente habitua-se passando ela a comandar as rédeas do seu
corpo, e zás, já passou a vítima, já se violenta todos os dias, mais do que uma
vez por dia, e aqui não há entidade, ou pessoa, que possa resolver este acto de
violência antes da vontade do próprio agressor.
Como
se prende a mente alheia?
Como
se diz: olha para ti, estás-te a matar; olha para ti, dói-te e continuas; olha
para ti e diz-me, como te posso ajudar?
(Nunca
serei pragmática…)
E
a mente também bate e vocifera e prende e disfarça a dor em prazer, até um dia.
Tu.
Um dia sentes-te perdido... |
Um
dia sentes-te perdido: na rua, num canto da rua, numa esquina de uma rua, numa cidade,
num quarto, numa casa vazia, numa casa cheia…
Continuas
perdido.
Um
dia estás na rua, já te injectaste ou embebedaste, e outros dão-te de comer.
Um
dia estás numa esquina, já te penetraram, talvez após o acto te tenhas drogado
ou embebedado, e outros dão-te de comer.
Um
dia estás no quarto e vais-te cortando e escondendo, o braço, a perna, o peito,
e ninguém vê.
Um
dia comes e vomitas, comes e vomitas, e ninguém vê.
Um
dia comes, tiras da boca e escondes, comes, tiras da boca e escondes, e ninguém
vê.
Um
dia vais para o quarto, da casa que ainda tens, ou alugado, ou abandonado, ou o
quarto da rua, e começas a pensar. Durante alguns intervalos, muitos ao longo
da tua própria violência, a mente deixa-te pensar que queres parar, que queres
voltar a ser quem eras, que queres ser melhor, porque sabes-te melhor, porque
em ti está o teu mundo, e porque a dor tem que ter um fim, sabes que te podem
ajudar, sabes que querem, e no dia seguinte decides passar por lá e pedir
ajuda, é o que tu queres, e adormeces nesse querer, sozinho.
Já
é outro dia, a mente acorda e tu fazes tudo outra vez, uma pedra calca a tua
vontade, sufocas dentro de ti, não podes matar-te, mas querias, não queres
continuar, mas a mente atrasa-te.
Calma.
O
coração ainda comanda o sangue que te corre nas veias.
Um
dia pediste ajuda. Um dia pisaste o caminho oposto, lançaste-te sobre o
infinito da tua força interior.
Meu
herói. Minha heroína.
Nós
agora podíamos divagar, somos tão bons a observar a dor alheia, a enriquecê-la
com substantivos, a explicar o impossível porque não o sentimos, a não ser que
alguém que me leia seja um herói, uma heroína. Muito prazer.
Há
muitos heróis, de muitas dores, de muitas causas, mas todos foram vítimas da
sua própria
mente, que sem mãos, sem cinto, sem voz, os torturou violentamente.
Somos todos heróis da nossa mente |
Há
muitos heróis. Somos todos um bocadinho heróis da nossa mente. Mas há uns que
merecem a medalha de ouro, um lugar no pódio, o aplauso em pé, o aperto de mão
do presidente, do papa, de todos nós.
Tive
a honra de conhecer alguns destes heróis, de aprender com eles, e eles, a
ensinar-me a humildade, não se aperceberam de que foi uma honra, para mim.
Mudaram-me.
Não sou a mesma. Não sou melhor ou pior desde o momento que os conheci, apenas
diferente na maneira de lidar com a sociedade, com a futilidade, com a vida,
comigo.
Heróis,
heroínas, homens, mulheres, crianças, que conseguiram ultrapassar a violência,
que conseguiram educar a mente, vencer a vergonha do fracasso, começar de novo,
outra vez, outra vez e mais uma vez.
Mesmo
agora, neste momento, muitos lutam, nós lutamos. A mente que nos prende, é a
mente que nos devolve: a vida.
Albertina Silva Monteiro ©2014,Aveiro,Portugal
Excelente texto. Obrigada.
ResponderEliminarUm momento pleno de inconformidade com gritos silenciosos que perfuram os tímpanos da mente. Excelente, como aqui já foi escrito.
ResponderEliminarLindo. Não consegui tirar os olhos desta leitura enquanto não acabei. É uma realidade da vida. Obrigada por me ter proporcionado tão belo texto.
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ResponderEliminarUm estilo incisivo, a apologia da vontade, da insubmissão... Um grande aplauso para os seres humanos que se erguem da lama, que renascem das cinzas. Excelente texto, Albertina.
Um tema muito bem elaborado que nos obriga a uma introspecção e nos conduz pelos caminhos insondáveis dum eu que, sendo nosso, se transforma e se transfigura quando – inexplicavelmente - nos infringimos violências sem sentido e sem direcção. Às vezes nem sabemos porque o fazemos; às vezes gostamos de, sadicamente, apreciar o que destruímos. E, como refere a Albertina, caminhamos de violência em violência até ao dia em que – herói ou heroína – nos conseguimos libertar. Este seu trabalho obrigou-me, como sempre, a reflectir imenso – obrigada, Albertina.
ResponderEliminarPara grandes males grandes remédios. Texto espetacularmente violento mexendo com a serenidade dos conformados. Por vezes, aparecem denúncias, que se confundem com um certo sentido de compreensão, embora, distante, insuportavelmente complacentes.
ResponderEliminar"COMEÇAR DE NOVO" é maravilhosamente combativo e de denúncia deveras coerente com o tema que aborda.
Li e reli este magnifico texto. "... a violência pode ser um acto solitário". E quantos querem ser heróis e não conseguem? Li, reli, parei e pensei. Obrigada Albertina.
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