segunda-feira, 28 de abril de 2014

As vivências de Deolinda com os animais

Tinha acabado o Verão. Ia começar a escola.Era hora de começar a preparar a mala com tudo o que era preciso. A mala?
Como era a mala? Era uma bolsa feita de pano riscado ou então de cotim azul-escuro, ou de lona, que apertava com um botão e tinha uma alça para pendurar ao pescoço.
O que se punha na mala? O que se podia comprar: uma lousa preta, um ponteiro e um caderno de duas linhas para se fazerem as cópias.
A lousa e os ponteiros
O caixilho da lousa tinha um buraquito para se atar um fio e na ponta deste, uma almofadita para se limpar a lousa, quando se errasse alguma conta, isto, quem tinha uma mãe habilidosa para a fazer, porque se não houvesse almofadinha, a lousa era limpa com cuspo e a manga da camisola.
Tudo isto a Deolinda tinha preparado, mas no momento de ir para a escola recebeu um recado do pai: tens de te preparar, porque não vais para a escola. Chega de malandrice; vais mas é trabalhar, que já está bem na hora.Os teus irmãos são pequenos e tu já podes fazer alguma coisa pela família.
Deolinda tinha o destino traçado pelos pais. Ia servir para a casa de uns lavradores.Era uma criança pequena para a idade; atarracada.
Logo que teve conhecimento do seu destino, não ir para a escola, que era onde ela mais gostava de andar, os seus sonos começaram a ser agitados, cheios de pesadelos, que a deixavam sempre amargurada.
Os dias passaram a ficar negros, de tanta tristeza.
Enfim; chegou o dia de se mudar para a casa dos tais lavradores. Logo pela manhã, foi ao quarto buscar o saco, onde levava a pouca roupa que tinha. Com grande tristeza despediu-se dos pequenos irmãos e da mãe.O pai foi levá-la e esse gesto fez com que nunca mais visse o progenitor com carinho.
Lá ficou entregue como se fosse uma mercadoria. Olhava para as pessoas com tristeza o que não passou despercebido à senhora da casa. Com o seu instinto maternal compreendeu-a e a partir daquele momento, fez dela uma filha. Deolinda ficou feliz.
Depois de lhe terem sido distribuídas as tarefas que tinha de fazer todos dias, ela começou a explorar outras coisas em que tinha prazer. Conheceu uma pequenina bezerra que tinha nascido há poucos dias. Foi como um brinquedo. Todos os dias depois das tarefas feitas, ia visitar a sua amiguinha. O próprio animal, quando a via, já se aproximava. Fazia-lhe muitas festinhas, conversava um pouco e só depois ia deitar-se.

sexta-feira, 18 de abril de 2014

Nós agora somos carne para canhão…

EVOLUIR agradece ao autor o envio deste texto para publicação



Nós agora somos carne para canhão. Parecemos aqueles pequenos jovens que não sabem para o que vão, os da infantaria, os primeiros a caminhar, os primeiros a morrer por uma causa que nunca foi deles.
Somos isso mesmo: carninha, uma mais arranjadinha, outra coitadinha, mas tudo à feição de entrar no canhão e BUM.
Rua do desemprego.
Bum é igual a rua. Rua do desemprego. Rua da incerteza. Rua da amargura. 
Rua que o teu posto foi extinto. Rua que não se adaptou às novas tecnologias. Rua que isto. Rua que aquilo. Rua aí vamos nós para a praça fazer a revolução dos mal pagos e revoltados.
Ninguém na praça. Deserta, e as pombas. Um casal dá-lhes migalhas de pão.
Na praça alguém pintou num banco de jardim: aqui se sentou um trabalhador despedido. Novo para a reforma. Velho para o activo. 
Quando acabou de escrever a tinta vermelha o slogan do nosso país, dedicou o resto do seu dia a pedir carimbos para apresentar no fundo de desemprego.
- Então, Senhor José, está tudo preenchido?
- Está sim, minha senhora, um carimbo por semana.
- Já se inscreveu nos novos cursos que saíram?
- Já sim, minha senhora, inscrevi-me no "Introdução à Cidadania".  A minha mulher vai fazer um de costura.
- Fizeram bem. Serão subsidiados os transportes e a alimentação. Fizeram muito bem.
- Obrigada, minha senhora.
Seis meses de tardes ocupadas. Dois meses depois recebem alguns cento e cinquenta a duzentos euros na conta bancária. VIVA 


A menina de há pouco que trabalha afincadamente para o estado porreiro que dá muitas coisas às pessoas, chega a casa e o marido que perdeu o emprego numa empresa de calçado que se mudou para a China já está a fazer o jantar.
- Cheira bem, Rodrigo.
- Fiz sopa de feijão. Para não ser sempre apenas couve branca.
- Fizeste bem, meu amor.
- Alguma sorte hoje?
- Entreguei alguns currículos. Alguém me há de chamar.
- Sim, tenho a certeza.

domingo, 13 de abril de 2014

Ficara estranha e subitamente amante de fotografia.

E quantas vezes partia para a caça de imagens e só noite feita regressava!
Uma bela manhã, ainda o Sol se não erguera, partiu com outros fervorosos adeptos da caça de imagens únicas. Encaminharam-se para o cimo da serra, por uma cerrada mata e por um caminho de poucos conhecido.
Pararam uns momentos para degustarem a música de uma cascata que se adivinhava. A frescura que os salpicos lançavam em redor acariciava a pele sofrida pela subida. Mais que uma vez, dobrada a encosta, tinham conseguido surpreender o encanto de testemunharem o beijo da noite a despedir-se do dia que começaria o seu reinado de luz clarificadora. Uma vez tinham até estacado perante a hipótese de fixarem a imagem daquele veado que quase se deixara surpreender a matar a sede, numa alvorada já quente do mês de maio. João tinha em casa esse troféu. Fora o único a conseguir a composição perfeita e a luz excelente. Ainda hoje se interrogava sobre a expressão do olhar do animal apanhado no momento de iniciar a fuga.
O sol nascera, enfim. Ao longe, o mar era um reflexo único de um dia que se adivinhava esplendoroso. Mas no fundo dos vales que iam dar à costa, grandes rolos de nevoa ainda preguiçavam o doce aroma que a noite lançara sobre a terra. Duas boas horas já haviam passado e nem um enquadramento especial, nem um ângulo para realçar uma copa perfeita de árvore, nem uma pedra evocadora de uma figura…
Aquele grupo de caçadores de imagens porfiava serra acima. Em breve apontariam as objetivas ao trajeto ascendente do Sol, ao contraste dos variados verdes da serra ponteados por pequenos lagos tão brilhantes que simulavam os olhos da serra, espantando-se com a magnificência de mais um esplendoroso dia de maio. Não faltavam manchas de alfazema, caminhos ladeados pelo amarelo da giesta, verdes mimosos dos rebentos novos dos pinheiros, árvores a vestirem-se de folhas macias para se juntarem à festa da renovação da natureza…

quinta-feira, 10 de abril de 2014

Havia que decidir

EVOLUIR agradece ao autor o envio deste texto para publicação

Havia sido educada com princípios. Decisão tomada era para ser acatada até à sua concretização plena. Os valores morais que a enformavam eram de uma rigidez e pureza marmórea, que apenas admitia o suave retoque, tendo como alvo atingir o cume da perfeição, sem que pudesse colidir com a intrínseca natureza das coisas.
Valores morais 
O que apreendera nos livros do sistema escolar, era uma verdade dogmática. Quem escreveu aqueles textos é porque estava seguro nos princípios definidos e estava autorizado a proclamá-los porque sabia magistralmente do que falava.
As relações cívicas com quaisquer pessoas, conhecidos ou desconhecidos, exigiam sempre dela, ponderada reflexão e escrupuloso prurido, no seu contabilístico exercício de sopesar ou medir os prós e contras.
A frequência nos estudos universitários tinha sido assumida com determinação e rigor, na abertura ao conhecimento, com as conceções, expendidas nos livros, a ajustarem-se ou a acrescerem aos seus juízos de valor. A formação académica aditara-lhe uma sólida cultura, não obstante as filosóficas interrogações do seu ego em relação à sua origem e ao seu futuro.
Aceitava-se como mulher com sorte, o que exibia entre as amigas e companheiras de curso.
Aceitava-se como mulher com sorte
Após o seu mestrado, ao abrigo do programa Erasmus, em terra estrangeira, concorreu e obteve o lugar docente na escola da sua preferência.
A sua juventude despertou e começou a fazer exigências. O coração manifestava-se em desejos de preencher a lacuna que se abria, mas a razão coartava-lhe os impulsos constantes. A razão era como um freio na voracidade do sonho. A luta constante travava-se entre o dever e o ser. Tréguas não havia. Qual venceria?
A jovialidade do Heitor, a sensatez cultural do seu humor e a sua inteligência, enobreciam a boa figura física de um companheiro de escol.

quarta-feira, 2 de abril de 2014

Eu, Vaidoso

Que bom o cheiro do mato! Passava o ano a sonhar com a época da caça: via-me a saltitar por entre os pinheiros, a farejar as urzes rasteiras, nem sentia as picadas dos tojos de bicos aguçados quais lanceiros em permanente emboscada. E que excitação quando descobria o coelho alapado na lura ou escondido numa moita! Obrigava-o a sair e, com a adrenalina ao rubro, movia-lhe uma perseguição sem tréguas que habitualmente era coroada pelo tiro certeiro da espingarda.
A abertura da época era um dia de festa. Mal despontava o sol, o Tó, habitualmente pouco
Eu e as minhas cadelas
madrugador, cheio de entusiasmo, fazia a chamada:” Vaidoso, Joaninha, Pintada de Fresco!” De cauda a abanar e orelhas em riste, não contendo a nossa alegria, acercávamo-nos do portão. Que alvoroço! Passávamos as ruas da aldeia num alarido que despertava todas as atenções. O Beto, ainda adolescente, já ia tocando a trompa. O que ele se divertia quando alguma dona de casa, confundindo o toque com o do peixeiro, acorria de prato na mão. Certa vez, fingindo-se zangada, a Ti Ressurreição, no seu jeito virulento, disparou-lhe uma rajada de palavrões. Foi uma risada. Muito loucos aqueles rapazes!
O início do outono, habitualmente soalheiro, convidava a almoço na mata. As meninas carregavam os cestos até ao local combinado – o Padeiro. Ali, sentados nos valados musgosos, comia-se apressadamente aquele almoço que bem merecia uma degustação mais prolongada. Mas não havia tempo a perder.
Aqueles coelhos e perdizes...
eram também os nossos troféus
Ao pôr do sol regressávamos a casa, cansados, mas orgulhosos – aqueles coelhos e perdizes que pendiam dos cinturões deles eram também os nossos troféus.
O entusiasmo repetia-se época fora aos domingos e feriados e sempre que o Manuel, ao fim do dia, conseguia fazer uma escapadinha ao Vale Ramalheiro ou, quando muito, até ao Monte Sol. Lá ia eu, o líder da matilha, e as minhas cadelas. Calcorreávamos os carreiros pedregosos, galgávamos silveiras, dessedentávamo-nos nos regatos, passávamos a vau as azinhagas já transformadas em ribeiros pelas pesadas chuvas do inverno. Para atenuar a fome, às vezes só umas côdeas – ainda me cresce água na boca quando penso na broa doce que a Emília fazia na época dos Santos. Nem a fome fazia abrandar o meu entusiasmo. Mas um dia tudo mudou, um dia sinistro. Olhem, foi no Padeiro: ia eu a correr encosta acima a perseguir um coelho, os olhos do Manuel, encandeados pelos raios do sol, que se despedia, confundiram-se. Senti uma saraivada de chumbo a varar-me os flancos e tombei desamparado entre as moitas, desmaiado. Quando acordei, o sol já se escondera por trás dos montes, um manto negro de silêncio envolveu-me a alma, que parecia querer despedir-se do meu corpo destroçado. “Ai Vaidoso, Vaidoso, chegou a tua hora!”

quinta-feira, 27 de março de 2014

Virar o mundo ao contrário

EVOLUIR agradece ao autor o envio deste texto para publicação

Que linda a foca criança de pelugem branca, fica-lhe o vermelho cor sangue tão mal. E o cavalo, negro, castanho, malhado, tantos filmes, tanto espectáculo, e o burro de carga, a mula
A foca criança
da cooperativa, tanta história, tanta estrada.
Senhores, como me apraz o elevar da suricata, atenta, sagaz a qualquer predador atrevido que queira entrar no seu dominar, debaixo da terra, a sua família secreta. Lá ao longe, uma explosão de pó atravessa o horizonte, búfalos, bisontes, manadas a deixar para trás terra calcada à procura de outra morada, uns ficam outros seguem, envolvidos numa nuvem de força unida.
Porém tenho medo do tubarão branco, da baleia assassina, da enorme anaconda, e da peluda tarântula, patuda, gorducha, silenciosa, até me arrepio agora. E toda esta macacada faz-me lembrar do macaco piolhudo, então o narigudo é uma mossa, o malandro. Porém, o gorila que eu amo canta o fado, já quase sem ninguém, valha-lhe o Godzilla e a loira na mão, e quem já os olhou nos olhos, eu já, na televisão, sentem a (des) emoção de testemunhar uma futura memória.
O que são inocentes?
Porquê o fado, pergunta o pequeno, no gorila e no resto da turma, chama-se extinção, pela expansão, ambição, maldade e muita transgressão, dos outros. Digo-te quem no final. Agora os animais fogem, todos, e não há Arca de Noé, vão e outros ficam, porque chora o elefante junto à cria infinitamente, é comovente, parecem-se a nós. Quem sabe não andam em conversações os dragões que habitam numa ilha da Indonésia, os leões reis da selva, e o Nessie, vale tudo, combinando uma invasão, quem sabe uma revolução, não, claro que não. Seria um mundo ao contrário, claro que não. O mundo certo é assim: nós vemos os animais, que são maravilhosos, depois vemos os assassinos, que é um horror, e depois a nós, todos juntos envoltos num fedor de culpa que agora não interessa para nada.

sábado, 22 de março de 2014

PALAVRAS DE AMOR

EVOLUIR agradece ao autor o envio deste texto para publicação



                                      É Primavera, Amor, A Natureza
Mudou o seu aspecto, o seu vestido:
É verde em vários tons, todo florido,
Tem aroma, tem cor e tem beleza!

No ar que respiramos  há leveza,
Vibra meu coração entontecido;
Tua voz é canção no meu ouvido,
Não há mais ansiedade nem tristeza!

Anda comigo, vem, vamos lançar
Sorrisos de ternura a quem passar
Como se fossem pétalas de flor!

Meus olhos nos teus olhos, as mãos dadas,
Com palavras suaves, perfumadas,
Quero gritar bem alto o nosso amor!...

Maria Celeste Salgueiro ©2014,Aveiro,Portugal

quarta-feira, 19 de março de 2014

O MAIOR AMIGO


EVOLUIR agradece ao autor o envio deste texto para publicação




Às vezes , nos momentos de lazer,
Fecho os olhos e apago o meu presente.
Depois deixo as memórias reviver,
Deixo-as passar com força na corrente.

Então o meu passado volta a ser
E tu surges, meu Pai , à minha frente.
E deixo-me em teus braços me envolver
E sinto o teu abraço forte e quente.

Lembro os nossos passeios, lado a lado,
Os teus sábios conselhos, tua calma,
Todo esse teu amor desinteressado;

A dor, tal como um rio, ainda corre,
Mas tu vives comigo na minh’alma:
Quem tiver um Amigo, nunca morre!

Maria Celeste Salgueiro ©2014,Aveiro,Portugal

domingo, 16 de março de 2014

Os animais são nossos amigos

Era dia de festa em nossa casa. O Pluto, um cãozinho rafeiro com dois meses de idade, natural de Vagos, começava nesse dia a fazer parte da família.
Era traquinas, nos primeiros tempos roeu tudo o que lhe aparecia pela frente mas, com o avançar do tempo, aprendeu a ser controlado, educado e muito, mas muito meigo.
Viveu connosco cerca de dezasseis anos, deu-nos muitas alegrias, muito carinho e algumas preocupações.
É que ele está apaixonadíssimo
pela minha cadela...
As preocupações deviam-se ao seu apurado sentido de independência que o levava a sair de casa e desaparecer por vários dias. Até que nos habituássemos às suas ausências sofraemos bastante. Fazíamos de carro e a pé grandes percursos à sua procura. Era um cão que se apaixonava com grande facilidade, e quando assim acontecia ficava junto da companheira sem vir para casa.
Um dia recebemos um telefonema:
Os senhores por acaso são donos dum cãozinho que tem uma placa ao pescoço com este número? É que ele está apaixonadíssimo pela minha cadela, não sai de junto dela e nem se alimenta.
Claro que era o nosso Pluto, fomos buscá-lo e tivemos que fazer esse caminho mais algumas vezes porque ele não desistia. Era sem dúvida um povoador, não lhe escapava cadela que ele quisesse e comparticipou em larga medida para a continuação da espécie.
Por vezes parecia uma criança, amuava sempre que íamos de férias. No nosso regresso a casa, ignorava-nos completamente, virava a cabeça quando lhe falávamos e assim se mantinha durante algum tempo.
Pressentia quando um dos elementos da família estava doente, deitava-se junto do doente, lambia-nos as mãos e não saía de junto de nós.
Quando os amigos nos procuravam na casa que habitávamos durante o verão na praia, ele passava à frente deles e guiava-os para o local onde nos encontrávamos.
Era um companheirão
Brincava às escondidas com a nossa filha, só mesmo presenciando é que se podia acreditar.
Era um companheirão, foi o primeiro cão que tive e fez-me acreditar que a presença de um animal em casa é salutar, faz bem às crianças e gera à sua volta um ambiente de alegria e entusiasmo para além de ajudar as crianças a sentirem-se responsáveis.

Morreu velhinho quase cego, atropelado em frente à casa. Foi o primeiro desgosto que tivemos com a morte de um animal de estimação, era um membro da nossa família muito dedicado a nós, sentimos muito a sua falta.

Dores Topete ©2014,Aveiro,Portugal

segunda-feira, 10 de março de 2014

O meu menino

Está frio, hoje! Este tempo anda esquisito: ora chove ou faz um calor sem limites. Mas hoje estou mesmo cansado: calcorreei quase toda a cidade e nada me agrada. Nem um sítio, nem um banco de praça, nem um vão de escada… Falta-me qualquer coisa, falta-me um calor que não é quente ou uma brisa que não é vento.
Que saudades daquele menino
Que saudades daquele menino: dava-me vontade voltar lá só para o ver, só para rir com o seu sorriso e brincar com as suas mãozitas. Éramos amigos, muito amigos mesmo. Quando ele nasceu eu era ainda muito pequenino mas percebi logo que tinha perdido o meu lugar no centro das atenções daquela família. Depressa, porém, compreendi que uma criança é um raio de sol que entra casa adentro. Eu também gostei de o ouvir chorar pela primeira vez. Eu também gostei de espreitar para o berço e ver as mãozitas dele, muito pequeninas, a agarrar o espaço e a abrirem-se e a fecharem-se como se o mundo coubesse dentro delas. Deu-me vontade de o abraçar e sem ninguém dar conta dei-lhe a minha mão e deixei-o brincar com ela. Devagarinho porque ele é muito pequenino e eu tive medo de o magoar.
Se vissem: quando eu chegava, olhava para ele, fazia-lhe umas caretas e, certo e sabido,
...aquela criança gostava de mim
deixava de chorar. Eles nem compreendiam o que se passava mas o que é verdade é que aquela criança gostava de mim. Podem crer: gostava mesmo! Assisti ao seu primeiro choro, à mudança da primeira fralda, ao vestir da primeira roupinha, ao primeiro brinquedo que fazia dlim-dlão… Era um bebé tão lindo! Depois começou a gatinhar pela casa fora e eu sempre ao seu lado arrastava-me pelo chão a fingir que andava mais devagar do que ele. Um dia sentou-se e foi uma festa: bateram-se palmas, cantaram-se as canções de que ele gostava mais e houve direito a sobremesa melhorada. Até eu usufrui da alegria geral e lá comi o que todos comeram e saltei como todas as crianças e com os adultos que fizeram de crianças e corri pela casa fora.

sábado, 8 de março de 2014

MIGALHA DE GENTE

E porque hoje se celebra o dia internacional da Mulher,  o EVOLUIR  não pode deixar de assinalar esta data, agradecendo ao autor o envio deste poema.

Criança eu já fui e  já tive na mão
Um mundo dif´rente a todos vedado;
Já tive bonecas, já tive um pião
E já fui princesa num reino encantado.

Cresci, fui mulher e senti a paixão;
Depois, com amor, outro ser foi gerado.
Porém perdi tudo… veio a solidão,
Fui barco à deriva num mar encrespado.

Então tu vieste, migalha de gente,
Teus braços abertos , puxando-me em frente,
Teus olhos azuis a falar de esper´rança.

Contigo de novo voltei a brincar…
Entrei no teu mundo por muito te amar
E avó me tornei e outra vez criança!

Maria Celeste ©2014,Aveiro,Portugal

quarta-feira, 5 de março de 2014

É muito bom ouvir isso.

Ainda não eram seis da manhã e a porta do curral das vacas rangia. obedecendo ao empurrão daquele homem que tão cedo começava o dia. Lá dentro, duas vacas que reagiam com um olhar sereno de quem não se surpreende e pareciam já esperar a visita daquele amigo que, antes de ele comer, lhes ia sempre deitar qualquer coisa na manjedoura. No meio de ambas, falava-lhes e acariciava uma e outra com umas festas na barbela e umas pancaditas carinhosas no dorso. 
Agradeciam com umas lambedelas que, esperavam, estimulassem o dono a servir-lhes o mimo matinal, normalmente um pouco de milharada que elas tanto apreciavam. Tratadas as vacas já podia ir comer ele para, de seguida, iniciar a faina de um dia de trabalho que agora lhe era bem mais pesado do que há uns anos atrás. Pequeno agricultor fazia algumas terras herdadas, outras de renda e uma muito especial, a “regadinha”, fruto do roubado ao estômago e aos luxos proibidos de quem neles nem sequer poderia pensar. Aqueles animais, dois porcos que criavam todos os anos, um para vender e outro para matar para casa, juntamente com o resultado do amanho das terras, perfaziam a totalidade dos parcos rendimentos daquela família. As vacas, uma de leite e outra de trabalho, eram peças importantes desta microeconomia. A venda do leite e de um ou dois bezerritos por ano eram essenciais ao regular funcionamento da engrenagem que dava sustento a uma família de quatro pessoas. As vacas, sendo da mesma espécie, eram de raças diferentes e, coabitando o mesmo estábulo, isso fazia-as sentir o que de diferente era a vida delas. A frísia, outrora conhecida por leiteira, era ali uma verdadeira princesa a quem tudo serviam sem fazer rigorosamente nada, limitando-se a comer do bom e do melhor. Esta era a opinião da de trabalho, outrora, amarela e agora marinhoa. A frísia, entretanto, observava: 
— És uma ciumenta… Ainda não percebeste que eu é que dou dinheiro a esta casa? Tu serves para trabalhar e pouco mais…
— “Para trabalhar e pouco mais”. Sou eu que todos os dias carrego com a erva que tu hás-de comer. Ingrata é o que tu és, nem sequer sabes agradecer…
— Olha, eu não tenho culpa é que tu não entendas nada. Eu estou sempre aqui fechada e o que querem é que eu passe a vida a comer para depois me esvair em leite.

domingo, 2 de março de 2014

O Palhacinho

EVOLUIR agradece ao autor o envio deste texto para publicação


Era um cão doce, muito doce. Tinha o pelo preto, em novelos de algodão que se ofereciam para receber carícias. Segurava-se em pé, nas patinhas detrás, e percorria as distâncias que o separavam daqueles que ele amava. Eu tive a sorte de ser querida por ele e, quando o chamava, os dentes do Palhacinho entreabriam-se num sorriso cativante. Depois, deitava-se em rodilha à espera de mimos que o faziam alongar as patinhas e estender a língua em carícias. Quando veio para minha casa, já era velhinho pois vivera com outro dono que o
Quando nos vimos pela primeira vez ficámos
logo amigos
recolhera do canil. Quando nos vimos pela primeira vez, não nos estranhámos e ficámos logo amigos. Escolhemos juntos o seu canto para descansar e o seu espaço para deambular. Quando eu saía de casa, despedia-se de mim com os seus caninos em festa e ia para o seu cestinho dormir. Quando estava calor, quase derretia ao sol, junto à porta da cozinha, sempre à espera de um olá. Nessa altura, saltava na pontinha das patas e dançava ao sabor dos meus chamados, elogios e ternuras. E assim vivemos meses e anos. Nas férias, quando me ausentava por algum tempo, ficava ao cuidado dos meus filhos que o consideravam também como seu. Numa dessas ocasiões, uma amiga da minha filha levou-o com ela para uma quinta, no Douro. Eu estava, na altura, nos Açores. Todos os dias perguntava por ele à minha filha que me punha ao corrente do que se ia passando com o Palhacinho. E assim foram passando os dias, longe do meu doce amigo, é certo, mas descansada por saber que ele estava bem.
Um dia, recebi um telefonema estranho. Perguntei pelo Palhacinho e do outro lado do oceano disseram-me que ele não aguentara o calor tórrido daquele verão. Como devem imaginar, o meu coração ficou muito triste; não reencontraria o meu querido e doce amigo quando regressasse.

Ainda tentei encontrar outro cãozinho que me ajudasse a superar o meu desgosto, mas não consegui. O Palhacinho, ainda hoje, passados muitos anos, continua no meu coração.

Maria Cacilda Marado ©2014,Aveiro,Portugal

quinta-feira, 27 de fevereiro de 2014

Afeição pelos animais

Numa aldeia, humilde como tantas outras, vivia uma criança, franzina e pequena para a sua idade, de seu nome Lídia.Como os pais eram lavradores pobres, ela não tinha tempo de brincar como as outras crianças.
Foi para a escola, mas pouco tempo; tudo o que aprendeu foi porque tinha mesmo muita
A família vivia com
grandes dificuldades
curiosidade e procurava quem lhe explicasse. E como ela tinha vontade de saber mais e andar mais tempo na escola como os outros meninos!
A família vivia com grandes dificuldades; lavradores, com muitos filhos, comendo só o que a terra produzisse e mesmo assim era pouco.
Tinha oito irmãos mais novos que ela. Ajudava os pais no que podia, mas tão pequenina era, que pouco ajudava.
Como referi, andou pouco tempo na escola e logo teve que se fazer à vida, para ajudar no sustento dos irmãos. Mesmo assim aprendeu a ler e a escrever, não se esquecendo das histórias do livro da terceira classe, porque as achava bonitas e também não teve ninguém que lhe ensinasse .Ensinaram-lhe sim, a fazer os trabalhos dos adultos.
Os pais puseram-na a morar, ou seja, ela foi viver e trabalhar para casa de outros lavradores para se sustentar e angariar mais alguma coisa para os irmãos.
Qual era o trabalho desta criança que tinha apenas dez anos, ou menos?
Ela sonhava ser como as outras crianças que andavam na rua a brincar à macaca, a saltar à corda, enfim, brincadeiras que todos gostavam.

domingo, 23 de fevereiro de 2014

Livre como os pássaros que me habitam

Vamos hoje dar inicio a um ciclo de publicações que denominámos - Relação entre o homem e o animal. Aproveitamos para convidar todos os que queiram colaborar para o fazerem, na medida em que ainda estão a tempo de remeter os vossos trabalhos para os contactos do Evoluir que aparecem na página do blogue.


Olhos castanhos profundos, pele muito bronzeada, contrastando com os seus cabelos muito louros, postura descontraída de quem observa: menino quase homem, homem ainda menino a interrogar o sentido da vida que já pressente muito diferente de todos os seus sonhos de criança.
Rui estava a passar o fim daquele dia de verão, que queria ficar lembrado pelo calor excessivo, à beira da piscina. O vento fora sempre quente, parecendo soprado de uma enorme fornalha. Tinha sido um dia de muitos mergulhos, muita conversa com os amigos, com desconhecidos e família. Dentro de água, as pessoas riem sem saber bem de quê, conversam como se todos se conhecessem, irmanam-se como se tivessem de vencer num só mergulho toda a timidez a que a rotina de um ano de trabalho obriga.
Ao longe, estendiam-se campos, onde pontuavam algumas manchas verdes de árvores de copas largas e folhas abundantes.
Os pássaros tinham ali um refúgio natural. Não tardaria, começariam a esvoaçar para se refrescarem numa pouca de água, procurarem alguma comida e ficarem tranquilos para passarem a noite.
Ele reconhecia o canto de todas as espécies da região. E os seus olhos expressivos iam pousando nas pessoas que se haviam aquietado: o regresso a casa estava iminente. Naquele silêncio conjugador de efabulações, naquela dormência gostosa de fim de tarde, Rui fixava uma pessoa e logo ela se punha a esvoaçar… A determinada altura, o recinto da piscina era um tumulto de sons dissonantes: o entorpecimento, em que se aquietara, fizera-o transformar a piscina num riacho onde as pessoas passaram a ser pássaros que se refrescavam alegremente depois daquele dia de calor intenso.
Quando ouviu a voz da mãe, abriu os olhos e sorriu. Muitas pessoas já tinham partido. Em casa esperava-o uma tarefa rotineira: ele e o pai tinham de cuidar dos muitos pássaros que possuíam.
O Rouxinol do Japão
Havia o viveiro dos pequenotes, assim chamado por nele habitarem pássaros de pequeno porte, como o Pintassilgo, o Dom Fafe, o Verdilhão, o Rouxinol do Japão, ou o Canário Arlequim Português.
A Catatua de Crista Amarela estava bem representada noutro viveiro: aves com um grande sentido gregário entre si, estabelecem também relacionamento rápido com os seres humanos, deixando-se domesticar.
Por ouvir o pai e por investigação autónoma, o Rui era já um conhecedor de aves, pelo menos esclarecido.

quinta-feira, 20 de fevereiro de 2014

A procissão

EVOLUIR agradece ao autor o envio deste texto para publicação


A procissão - Angeja, 1973
Está quase chegando à Igreja, de passagem pela Praça, centro cívico da Vila, onde fez mais uma pausa, para os devotos colocarem uma nota - de valor pecuniário, com um alfinete sobre uma das fitas que esticadas descem das pontas do manto da padroeira até à base do andor, - passando de seguida por baixo do mesmo, como complemento da promessa; ao lado, de opa branca como as demais, que as vermelhas já passaram com os estandartes e pendões, um mordomo de bandeja na mão estende-a aos que a veem passar, juntando mais umas moedas que complementarão o estendal de notas, das mais variadas, de pequeno e grande valor, nacionais e estrangeiras, estas daqueles que, emigrados, regressaram para férias. A Banda de Música da Vila em festa, está ainda tocando a sua vez, depois de o ter feito a Banda convidada vinda de fora, como tocando estão os sinos da Igreja; colchas e colgaduras qual delas a mais vistosa pendem das janelas, e no ar que se respira, há um cheiro a carne assada - matou-se a cabra para a festa (1) - saindo ele também pelas janelas das cozinhas, misturando-se com o cheiro que evola, da erva doce que atapeta a rua - escorregadia de paralelipípedos de granito polido - esmagada pelos calcantes de todo este cortejo, até ao pálio que cobre o Pároco local, e um padre convidado que veio para a missa; agora, também um cheiro a incenso, saído do turíbulo fumegante que um acólito transporta. A Banda de fora acentua o ritmo de marcha, com o tré, tré, tré, trr..é, na tarola do músico ao lado do que toca o bombo, e este a dado passo, dá dois toques na pele esticada e redonda, que outrora também de cabra foi, e a música irrompe uma vez mais; atrás o povo caminha, mais mulheres que homens, e muitas destas vão descalças, algumas vão de costas para a frente, agarradas por uma de cada lado, em penitência como que contando os passos, que a Igreja está mesmo ali à vista, e já estralejam foguetes.

(1) Aqui não posso esquecer o desfile do rebanho, chocalhando pelas ruas ainda poeirentas da vila, em semana de festa, fins dos anos cinquenta, para serem vendidas porta a porta, e mortas para o almoço do domingo de festa.
Nota: Texto escrito pelo autor em 19 de Julho de 2011
                                                                      Manuel Oliveira Costa©2014,Aveiro,Portugal

domingo, 16 de fevereiro de 2014

A tradição já não é o que era!

Era uma vez, uma velha, muito velha que contava uma história sobre uma sociedade de recreio que existiu em Lisboa, designada BPN — Bando de Palhaços Notáveis. As práticas
Era uma vez uma velha, muito velha
de gestão fraudulenta tinham sido tantas que o assunto acabou por ser debatido numa assembleia extraordinária. O presidente da assembleia era, na altura, um jurista muito conhecido naquele tempo que dava pelo nome de Marinho Tinto. Muitas e complicadas histórias se contavam em plena rua de falcatruas e desmandos que implicavam principalmente quatro elementos que detinham lugares de destaque ou ocupavam posição de relevo nacional. Depois de abertos os trabalhos, Marinho Tinto, homem sem papas na língua, disse que estavam todos fartos de boatos e maledicências e havia que esclarecer tudo interrogando os perseguidos para dizerem de sua justiça. Dirigiu-se a um tal Videira e Costa que era há muito tempo o administrador de serviço.
— Então o Sr. tinha poderes para pôr em prática as medidas arbitrárias que tomou?
— Ó Sr. doutor, obviamente que sim. As atas estipulam tudo.
— Bem… O Sr. Manuel Dias Toureiro, que nos pode contar sobre aqueles negócios…
— Sr. doutor, eu não tenho nada a ver com isso. Esses negócios foram todos feitos por ele. E apontava o dedo para o tal Videira e Costa.

sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014

MILAGRE

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Passaste e eis que um sopro de magia
Passou tambem contigo e tudo encheu;
Teve mais brilho o brilho da alegria,
Tornou-se mais azul o azul do céu!

Na luz dessa manhã triste e sombria
Não sei quem tantas luzes acendeu!
No ar vibram murmúrios de poesia,
Um estranho milagre aconteceu!

Não sei o que em verdade se passou,
Como tudo num instante se mudou
Só porque tu passaste,meu amor!

Vejo tudo dif´rente e renovado…
E até na humildade do valado
Há pérolas de orvalho em cada flor!

Maria Celeste ©2014,Aveiro,Portugal
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