Havia sido educada com princípios. Decisão
tomada era para ser acatada até à sua concretização plena. Os valores morais
que a enformavam eram de uma rigidez e pureza marmórea, que apenas admitia o
suave retoque, tendo como alvo atingir o cume da perfeição, sem que pudesse
colidir com a intrínseca natureza das coisas.
Valores morais |
O que apreendera nos livros do sistema
escolar, era uma verdade dogmática. Quem escreveu aqueles textos é porque
estava seguro nos princípios definidos e estava autorizado a proclamá-los
porque sabia magistralmente do que falava.
As relações cívicas com quaisquer
pessoas, conhecidos ou desconhecidos, exigiam sempre dela, ponderada reflexão e
escrupuloso prurido, no seu contabilístico exercício de sopesar ou medir os
prós e contras.
A frequência nos estudos
universitários tinha sido assumida com determinação e rigor, na abertura ao
conhecimento, com as conceções, expendidas nos livros, a ajustarem-se ou a
acrescerem aos seus juízos de valor. A formação académica aditara-lhe uma
sólida cultura, não obstante as filosóficas interrogações do seu ego em relação
à sua origem e ao seu futuro.
Aceitava-se como mulher com sorte, o
que exibia entre as amigas e companheiras de curso.
Aceitava-se como mulher com sorte |
Após o seu mestrado, ao abrigo do
programa Erasmus, em terra estrangeira, concorreu e obteve o lugar docente na
escola da sua preferência.
A sua juventude despertou e começou a
fazer exigências. O coração manifestava-se em desejos de preencher a lacuna que
se abria, mas a razão coartava-lhe os impulsos constantes. A razão era como um
freio na voracidade do sonho. A luta constante travava-se entre o dever e o
ser. Tréguas não havia. Qual venceria?
A jovialidade do Heitor, a sensatez
cultural do seu humor e a sua inteligência, enobreciam a boa figura física de
um companheiro de escol.
Ela estudou-lhe o carater, triturando
todos os items aparentes e hipotéticos da sua personalidade, avaliando-o como
homem sem interesse pessoal.
O ruminar da relação não foi tarefa
fácil. Como na flor que se observasse, nele não havia espinhos que a magoassem
mas o aroma extrovertido era de doçura discreta mas permanente.
Quando acordou... |
Sem que ela se apercebesse, o Heitor
cativou-a, embalando-a na letargia de um sonho de casamento consumado. Quando
acordou sentiu-se acorrentada num casamento que não ponderara como julgava
dever fazer. Mas, o casamento estava realizado.
Ela e Heitor eram duas cabeças
pensantes, com alicerces culturais muito próximos, com princípios orientadores
da ação muito bem definidos, não obstante algumas particularidades pessoais. Enredados
no mesmo objetivo, agiam de modo a construir, dia após dia, pedra com pedra, o
edifício da felicidade do outro.
Os passos eram programados e
executados na mesma direção.
Um dia o exame médico revelou a
infertilidade do Heitor.
E o fosso abriu-se. Ela caía
constantemente na atribuição, a si, de culpa por não ter exigido
previamente ao
casamento o exame médico.
E o fosso abriu-se. |
Essa imputação passou a triturar-lhe o
pensamento.
E depois veio a pergunta: manter um
casamento assim? Sem filhos? Por que não a inseminação artificial? E os seus
princípios morais?
Poderia ou deveria ultrapassar a falta
de um filho com a sublimação de outros motivos? Ou a sua vontade de procriar,
de se reproduzir, era insuperável?
A luta interior passou a tomá-la dia e
noite. Uma onda depressiva tomou-lhe o corpo e a alma. A frustração passou a
ser um peso insuperável. Numa manhã acordou decidida. Determinada, soletrou ao
marido como que a soltar amarras. Não aguento mais. Heitor, quero divorciar-me.
J. Carreto Lages ©2014,Aveiro,Portugal
Estranhas formas de viver a vida num mundo em que a evolução científica nos ajuda a sedimentar o que é realmente um valor. Será que um conceito teórico que nos amarra a uma filosofia é mais moral do que a busca da felicidade? E será que essa busca se compadece com uma desistência de dialogar com o outro e decidir sem dar e receber? E valores morais são sempre valores religiosos ou os valores morais pertencem a um conjunto de indivíduos - a que deliberámos chamar sociedade - e foram acertados por acordo livre entre todos?
ResponderEliminarEste texto sugere-me muitas questões e tem a virtude de nos pôr a pensar.