Tinha
acabado o Verão. Ia começar a escola.Era hora de começar a preparar a mala com
tudo o que era preciso. A mala?
Como
era a mala? Era uma bolsa feita de pano riscado ou então de cotim azul-escuro,
ou de lona, que apertava com um botão e tinha uma alça para pendurar ao
pescoço.
O
que se punha na mala? O que se podia comprar: uma lousa preta, um ponteiro e um
caderno de duas linhas para se fazerem as cópias.
A lousa e os ponteiros |
O
caixilho da lousa tinha um buraquito para se atar um fio e na ponta deste, uma
almofadita para se limpar a lousa, quando se errasse alguma conta, isto, quem
tinha uma mãe habilidosa para a fazer, porque se não houvesse almofadinha, a
lousa era limpa com cuspo e a manga da camisola.
Tudo
isto a Deolinda tinha preparado, mas no momento de ir para a escola recebeu um
recado do pai: tens de te preparar, porque não vais para a escola. Chega de
malandrice; vais mas é trabalhar, que já está bem na hora.Os teus irmãos são
pequenos e tu já podes fazer alguma coisa pela família.
Deolinda
tinha o destino traçado pelos pais. Ia servir para a casa de uns lavradores.Era
uma criança pequena para a idade; atarracada.
Logo
que teve conhecimento do seu destino, não ir para a escola, que era onde ela mais
gostava de andar, os seus sonos começaram a ser agitados, cheios de pesadelos,
que a deixavam sempre amargurada.
Enfim;
chegou o dia de se mudar para a casa dos tais lavradores. Logo pela manhã, foi
ao quarto buscar o saco, onde levava a pouca roupa que tinha. Com grande
tristeza despediu-se dos pequenos irmãos e da mãe.O pai foi levá-la e esse
gesto fez com que nunca mais visse o progenitor com carinho.
Lá
ficou entregue como se fosse uma mercadoria. Olhava para as pessoas com tristeza
o que não passou despercebido à senhora da casa. Com o seu instinto maternal
compreendeu-a e a partir daquele momento, fez dela uma filha. Deolinda ficou
feliz.
Depois
de lhe terem sido distribuídas as tarefas que tinha de fazer todos dias, ela começou
a explorar outras coisas em que tinha prazer. Conheceu uma pequenina bezerra
que tinha nascido há poucos dias. Foi como um brinquedo. Todos os dias depois
das tarefas feitas, ia visitar a sua amiguinha. O próprio animal, quando a via,
já se aproximava. Fazia-lhe muitas festinhas, conversava um pouco e só depois
ia deitar-se.
Os
dias, os meses, os anos foram passando. Deolinda fez-se uma mulher. Namorou,
casou e deixou a casa dos patrões, como ela lhes chamava.
Depois
de casada e com a sua própria casa, resolveu comprar uma bezerra malhada e com
ela fazia o trabalho de agricultura, que era o que lhe dava mais prazer.
Falava
com a vaquita como se de gente se tratasse. Pôs-lhe o nome de Pinta. A Pinta
fez-se adulta e começou a dar leite; portanto Deolinda tinha de ir todos os
dias à ordenha para lhe tirarem o leite.
Tantos
dias a Pinta fez o mesmo caminho para a ordenha que já o fazia sozinha, com a
dona atrás, claro. Ao fazerem esse trajeto, passavam pela casa de uma velhinha
que, não tendo família, se punha à janela para conversar com alguém que
passasse. Deolinda parava um bocadinho e conversava. Claro que a Pinta parava
imediatamente e só retomava a marcha, quando a dona mandava.
Já
era tal o hábito, que o animal fazia sempre a mesma coisa, ou seja, parava em
frente à janela da velhinha, mesmo que ela não estivesse.
Deolinda
ia vivendo estes momentos a que só ela dava valor. Quantas vezes se lembrou que
tinha um animal preso em casa; mas nem que tivesse vontade de o libertar como
podia fazer uma coisa dessas? Para onde ia a Pinta?
Os
dias foram passando e o ritual era sempre o mesmo.
Um
dia de muita chuva, Deolinda teve pena da Pinta se molhar e então lembrou-se de
lhe pôr um oleado pelas costas e amarrá-lo por baixo da barriga.
Mandou-a
seguir caminho e ela lá foi andando; como estava muito vento, o oleado fazia
barulho ao sacudir. O animal assustado começou a correr e quanto mais corria
mais barulho fazia o oleado, com o vento a passar por baixo, fazendo uma
corcova.
Foi
uma aflição para a Deolinda, porque ficou com medo de a Pinta atropelar alguém
ou ser atropelada.Tudo correu bem, pois como o animal se lembrou do caminho
para a ordenha, quando Deolinda lá chegou esfalfada, já a Pinta lá estava à
espera.
Era
a sua amiga para sempre. Mesmo que não a quisesse manter em cativeiro, também a
não podia soltar. Foi um dilema.
Júlia Sardo ©2014,Aveiro,Portugal
Uma história enternecedora de amizade entre um ser humano e um animal. Não, a Deolinda não poderia libertar a vaquinha - ligada como estava à sua dona, iria sofrer antes de conseguir adaptar-se à vida em campo aberto. Se a Pinta falasse, decerto diria que preferia aquela vida. Gostei, Julinha.
ResponderEliminarO trabalho infantil é sempre um tema recorrente neste blogue. Talvez porque assistimos ao seu desenvolvimento com a maior das naturalidades. Talvez porque não o contestámos com o rigor necessário. Mas ele aí está de novo com um belo testemunho da Julinha. Muito bonito, Julinha.
ResponderEliminarEste texto sugere-me três imagens:
ResponderEliminarDesumanidade - "Lá ficou entregue como se fosse uma mercadoria."
Sensibilidade - "Falava com a vaquita como se de gente se tratasse."
Os animais só têm instintos?... - "quando Deolinda lá chegou esfalfada, já a Pinta lá estava à espera."
Excelente trabalho. Foi o recordar as nossas meninices, as nossas traquinices, a vaca, o porco, as galinhas…
ResponderEliminarFoi o recordar as histórias que ouvíamos dos mais velhos em que os pais fizeram exatamente isso:
“ já tens muito bom corpo para ir trabalhar e não andas a fazer nada na escola”
Gostei muito Julinha.
Este texto, na minha perspetiva, tem um comentário extraordinário: o do José Luís. Peço licença para fazer minhas as palavras dele.
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