Que bom o cheiro do mato!
Passava o ano a sonhar com a época da caça: via-me a saltitar por entre os
pinheiros, a farejar as urzes rasteiras, nem sentia as picadas dos tojos de
bicos aguçados quais lanceiros em permanente emboscada. E que excitação quando
descobria o coelho alapado na lura ou escondido numa moita! Obrigava-o a sair
e, com a adrenalina ao rubro, movia-lhe uma perseguição sem tréguas que
habitualmente era coroada pelo tiro certeiro da espingarda.
A abertura da época era um
dia de festa. Mal despontava o sol, o Tó, habitualmente pouco
madrugador, cheio
de entusiasmo, fazia a chamada:” Vaidoso, Joaninha, Pintada de Fresco!” De
cauda a abanar e orelhas em riste, não contendo a nossa alegria, acercávamo-nos
do portão. Que alvoroço! Passávamos as ruas da aldeia num alarido que
despertava todas as atenções. O Beto, ainda adolescente, já ia tocando a
trompa. O que ele se divertia quando alguma dona de casa, confundindo o toque
com o do peixeiro, acorria de prato na mão. Certa vez, fingindo-se zangada, a
Ti Ressurreição, no seu jeito virulento, disparou-lhe uma rajada de palavrões.
Foi uma risada. Muito loucos aqueles rapazes!
Eu e as minhas cadelas |
O início do outono,
habitualmente soalheiro, convidava a almoço na mata. As meninas carregavam os
cestos até ao local combinado – o Padeiro. Ali, sentados nos valados musgosos, comia-se
apressadamente aquele almoço que bem merecia uma degustação mais prolongada.
Mas não havia tempo a perder.
Aqueles coelhos e perdizes... eram também os nossos troféus |
Ao pôr do sol regressávamos
a casa, cansados, mas orgulhosos – aqueles coelhos e perdizes que pendiam dos
cinturões deles eram também os nossos troféus.
O entusiasmo repetia-se
época fora aos domingos e feriados e sempre que o Manuel, ao fim do dia,
conseguia fazer uma escapadinha ao Vale Ramalheiro ou, quando muito, até ao
Monte Sol. Lá ia eu, o líder da matilha, e as minhas cadelas. Calcorreávamos os
carreiros pedregosos, galgávamos silveiras, dessedentávamo-nos nos regatos,
passávamos a vau as azinhagas já transformadas em ribeiros pelas pesadas chuvas
do inverno. Para atenuar a fome, às vezes só umas côdeas – ainda me cresce água
na boca quando penso na broa doce que a Emília fazia na época dos Santos. Nem a
fome fazia abrandar o meu entusiasmo. Mas um dia tudo mudou, um dia sinistro.
Olhem, foi no Padeiro: ia eu a correr encosta acima a perseguir um coelho, os
olhos do Manuel, encandeados pelos raios do sol, que se despedia,
confundiram-se. Senti uma saraivada de chumbo a varar-me os flancos e tombei
desamparado entre as moitas, desmaiado. Quando acordei, o sol já se escondera por
trás dos montes, um manto negro de silêncio envolveu-me a alma, que parecia
querer despedir-se do meu corpo destroçado. “Ai Vaidoso, Vaidoso, chegou a tua
hora!”
Mas, ao longe, uns sons muito vagos quebraram
o silêncio. Apurei o ouvido – sim, eram passos, duas pessoas caminhavam na
minha direcção. Depressa percebi: não me tinham abandonado, o Zé e o Manuel
vinham buscar-me. Com um poceiro da vindima a servir de maca e um cobertor a
aconchegar-me, transportaram-me até casa. Senti-me envolvido por uma imensa
onda de carinho e retribuí com um olhar meigo e, esquecido das dores, abanei a
cauda. Eu estava ali, vivo, a abraçá-los. E lá fiquei, no telheiro contíguo à
cozinha, bem perto dos olhares de todos. Foi graças a esses cuidados que tive
uma recuperação tão rápida que os surpreendeu. Lá, no meu cantinho, eu podia
ver as pessoas que entravam e saíam, os amigos, as crianças da vizinhança, os
afilhados… Enfim, uma casa sempre cheia como eu
gostava. Mas nem tudo foram
rosas: a Pintada de Fresco a pouco e pouco foi revelando mais frieza e, um dia,
vim a descobrir que andava enrabichada pelo Sarilho, um cão amarelado que por
lá aparecera e que já fazia parte do grupo. Grande desavergonhada! Ainda tentei
convencer a Joaninha a ficar comigo, mas qual quê, aquela cadela era tão
arisca! Não ligava a ninguém, entrava na cozinha para tentar a sorte, só quando
achava que estava vazia, mas se alguém a chamava, recuava a sete patas.
Constava que era neta duma raposa. Não sei. Só sei que o pelo dourado, luzidio,
o focinho afilado, a cauda farta, o porte altivo e independente e aquele ar
selvagem me deixavam louco.
Eu estava ali, vivo, a abraçá-los! |
Os dias foram passando, as
dores foram-se tornando cada vez mais ligeiras e um dia arrisquei mesmo umas
passadas. Quando abriu a caça ao coelho, aquela que verdadeiramente me
interessava, eu já me sentia em forma. Nos pinhais tive de enfrentar a
concorrência do Sarilho, exímio a descobrir a caça. Ah! mas rapidamente concluí que não me chegava aos calcanhares. Eu tinha uma técnica especial, como o Beto
gostava de salientar, eu era um cão com estilo, com classe. Foi essa classe que
despertou, poucos anos mais tarde, a paixão duma cadela a quem o Tó, no ardor
dos tempos da Revolução, decidiu chamar Ditadura do Proletariado. Este nome,
que a princípio me pareceu muito arrevesado, depressa se tornou uma melodia
para os meus ouvidos. Tratava-a carinhosamente por Dita e nem imaginam como
fiquei mais tranquilo quando soube que os cães das redondezas a tratavam por
Dura.
Sozinho naqueles montes... |
Tudo mudou, porém, quando o
Tó considerou que eu já o podia acompanhar numa caçada lá para os lados da
Idanha. No final dum dia feliz, mas fatigante, ouvi a voz do dono, que me
chamava insistentemente – era o regresso a casa. O eco desorientou-me e comecei
a correr em várias direcções… Andei assim às voltas até que, tendo deixado de
ouvir o chamamento, me deixei cair extenuado em cima duns cardos. Sozinho
naqueles montes, comecei a sentir que chegara a hora de entregar a alma ao
Criador. No escuro que já se adensara, avistei uns coelhinhos que saltitavam divertidos
à volta da toca. Senti arrependimento por lhes ter feito mal e as lágrimas
brotaram dos meus olhos. “O que é isso, Vaidoso, sentimentos amaricados?! Para
com isso, campeão! “ Pronto, tinha de reagir! Consolou-me um pouco imaginar que
quando chegasse a casa o desmiolado do Tó ia ouvir das boas.
Vagueei durante dias – vi
veados, javalis, floresta e mais floresta. Era preciso caçar para comer, mas a
angústia apertava-me a garganta e matava-me o apetite. Ao fim da tarde, voltava
sempre ao local onde me tinham abandonado, na esperança de reencontrar o meu
dono. Sempre em vão. Sentia-me um deserdado. Uma noite faltaram-me as forças e
fiquei por ali no meio do mato. O frio enregelava-me os ossos. Daquele ermo, avistei
um campo santo e aí, ao abrigo dum muro caiado, ajeitei a minha cama. O sussurro
melancólico do vento
Uma caniche por companhia |
nos ciprestes e o pio
lúgubre do mocho redobraram as minhas mágoas e ali fiquei encolhido e incapaz
de soltar um uivo. Vencido pelo cansaço, adormeci para uma noite de pesadelos.
Quando acordei já o sol ia alto. Ainda mal desperto, vi uns olhinhos que me
espreitavam por entre umas frestas do muro. Pouco depois tinha na minha frente
uma graciosa cadelinha, a Dolly. Esta caniche de pelo branquinho e
encaracolado, de lacinho vermelho na cabeça já um pouco amarrotado, contou-me,
entre soluços, a sua história: fora a única companhia duma senhora rica nos
seus últimos anos, a senhora finara-se havia poucos dias e, inconsolável, vinha
carpir a sua dor junto da campa gemendo noite e dia. Enquanto isto me contava, comecei
a apaixonar-me por aqueles olhos doces e gestos delicados. Partilhados os
nossos infortúnios e derrotada a solidão, ali, entre o azul do rosmaninho e o
cheiro resinoso das estevas, declarámos o nosso amor e reinventámos a velha
história. E lá seguimos lado a lado, muito juntinhos – A Dama
e o Vagabundo.
Conceição Cação ©2014,Aveiro,Portugal
Que texto tão bom de ler, São. Pois fez-me ver todas aquelas caminhadas atribuladas para encontrar a caça tão desejada. Coitado do animal que fazia olhos meigos à amada sem obter resultado. Gostei muito.
ResponderEliminarObrigada, Julinha.
ResponderEliminarAbandonar um animal quando envelhece e deixa de ter utilidade é, de certeza, a forma mais cruel de reconhecer a dedicação dum amigo. Infelizmente, e se quisermos fazer uma analogia com os seres humanos, é fácil encontrar velhos, doentes, estropiados a serem tão ou mais abandonados do que qualquer animal. Efectivamente, quem quer afastar-se de alguém, fá-lo sem o menor dos escrúpulos, seja ele humano ou animal. Excelente trabalho, São. Gostei muito da forma como colocou um animal a experienciar atitudes, sentimentos e gestos que tanto paralelismo têm com certas pessoas que, ao nosso lado, vão caminhando sem sequer darem conta de que estão a pisar quem vai conferindo sentido ao seu dia a dia.
ResponderEliminarObrigada, Albertina. Só queria esclarecer um aspeto para não ser injusta com o Tó: ele não quis abandonar o Vaidoso, ele foi imprudente ("desmiolado") ao levá-lo para um espaço tão amplo, que ele desconhecia, e onde teve dificuldade em orientar-se. Acrescente-se ainda, em abono da verdade, que o Tó e outros amigos do Vaidoso voltaram várias vezes ao local, mas não conseguiram encontrá-lo, por essa altura já ele andava muito feliz a curtir com a Dolly.
EliminarEste belo texto sobre cães remeteu-me para uma brincadeira a que há quarenta anos chamávamos a sociedade dos cães. Esta história poderia então ser assim: Após apressada cãomezaina lá seguiu a cãopanhia dos cãos para grande cãominhada e cãorreria a fim de conseguir boa cãoçada de perdizes e cãoelhos. Cãoçadores encãodeados dispararam sobre o Vaidoso, cão cãomandante da cãopanhia. Era como se fosse um cãopitão!
ResponderEliminarOs cãoçadores amigos e cãopanheiros do Vaidoso envolveram-no por uma imensa onda de cãorinho o que não aconteceu com a Pintada de Fresco que se enrabichou pelo Sarilho e cãorneou o ex amado. Na caça a cãocorrência entre o Vaidoso e o Sarilho fez realçar o verdadeiro cãopião que continuava a ser o grande cãomandante. Mas não há bela sem secão... Abandonado sem cãoridade, vencido pelo cãosaço, cãolapsou junto a um muro caiado. Ali dormiu. Quando acordou encarou uns lindos olhinhos de uma cãodelinha cãoniche de pelo branquinho e encãoracolado. Ela tinha sido a cãopanhia de uma senhora rica nos últimos tempos de vida e agora vinha incãosolavel cãorpir a sua dor junto da campa onde a tinham sepultado. O Vaidoso cãomovido e deslumbrado com ela cãomeçou logo a ficar apaixonado e com tanto amor já declãorado cãozaram-se.
Parabéns, Conceição. Nunca é demais enaltecermos valores que até os cães nos exibem. Quem dera que os homens aprendessem com eles, alguma coisa, mesmo que cãosuisticamente.
Obrigada, Zé Luís. Diverti-me com a sua narracão. Em jeito de cãoclusão: o Vaidoso cãosseguiu a sua libertacão e cãortir a vida, já estava farto de tanta colaboracão cão os cãoçadores que ele já cãomeçava a sentir cãomo uma exploração. Esta é a licão.
EliminarO cãoputador insistiu em acrescentar a cedilha. Repito: exploracão.
EliminarAssim fossem todas as histórias de cães, ou outros animais, que guardamos na memória. Mas, para mim, não foram! Tirando o tiro, o Vaidoso teve sempre uma vida "vaidosa" e uma relação com o homem como seria de desejar para todos os animais.
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