Nós agora somos carne para canhão. Parecemos aqueles
pequenos jovens que não sabem para o que vão, os da infantaria, os primeiros a
caminhar, os primeiros a morrer por uma causa que nunca foi deles.
Somos isso mesmo: carninha, uma mais
arranjadinha, outra coitadinha, mas tudo à feição de entrar no canhão e BUM.
Rua do desemprego. |
Bum é igual a rua. Rua do desemprego.
Rua da incerteza. Rua da amargura.
Rua que o teu posto foi extinto. Rua que
não se adaptou às novas tecnologias. Rua que isto. Rua que aquilo. Rua aí vamos
nós para a praça fazer a revolução dos mal pagos e revoltados.
Ninguém na praça. Deserta, e as pombas.
Um casal dá-lhes migalhas de pão.
Na praça alguém pintou num banco de
jardim: aqui se sentou um trabalhador despedido. Novo para a reforma. Velho
para o activo.
Quando acabou de escrever a tinta
vermelha o slogan do nosso país, dedicou o resto do seu dia a pedir carimbos
para apresentar no fundo de desemprego.
- Então, Senhor José, está tudo
preenchido?
- Está sim, minha senhora, um carimbo
por semana.
- Já se inscreveu nos novos cursos que
saíram?
- Já sim, minha senhora, inscrevi-me no
"Introdução à Cidadania". A minha mulher vai fazer um de
costura.
- Fizeram bem. Serão subsidiados os
transportes e a alimentação. Fizeram muito bem.
- Obrigada, minha senhora.
Seis meses de tardes ocupadas. Dois
meses depois recebem alguns cento e cinquenta a duzentos euros na conta
bancária. VIVA
A menina de há pouco que trabalha
afincadamente para o estado porreiro que dá muitas coisas às pessoas, chega a
casa e o marido que perdeu o emprego numa empresa de calçado que se mudou para
a China já está a fazer o jantar.
- Cheira bem, Rodrigo.
- Fiz sopa de feijão. Para não ser
sempre apenas couve branca.
- Fizeste bem, meu amor.
- Alguma sorte hoje?
- Entreguei alguns currículos. Alguém me
há de chamar.
- Sim, tenho a certeza.
VIVA
Um dia o casal dos cursos e o da sopa
estavam à espera do autocarro. Um em cada canto da paragem. Pelo meio uma
mulher ruiva falava alto enquanto gabava a sua esperteza que não comprava nada
nas lojas portuguesas nem nas chinesas, sim, porque os chineses agora pagam
impostos e sendo assim cobram tudo ao preço dos nossos, mandava vir tudo por um
site chinês, tudo, mas tudo, a preço de chuva, porque lá a mão de obra é
barata...E não parou de falar de peles e carteiras e sapatos e...
O casal da sopa comentou entre si
- Pois é mão de obra barata: não são os
teus filhos pequenos a ser explorados. São os filhos
VIVA
O casal dos cursos, alheios à chinesice
da ruiva observava um grupo de jovens entre os seus dezassete, dezoito anos, de
óculos escuros e mãos a abanar à espera de um autocarro, veio-se a saber que
para a cidade e depois rumo a um concerto na capital. Todos falavam com outros
amigos de longe ao telemóvel porque entre si pouco se ouvia para além de tótil
de fixe, vai ser top...
Já não aguentamos mais |
Comentaram:
- Hoje, dia útil, nem escola, nem
trabalho. Nós nesta idade vamos aprender o que poderíamos ensinar, aqui mesmo,
nesta paragem a estes miúdos. O mundo está estragado, mulher. Não vejo
volta para isto. Lembra-me de amanhã de manhã voltar ao banco de jardim e
escrever
JÁ NÃO AGUENTAMOS MAIS.
- E se nos descobrem, José?
- Deixa que descubram. Ainda me ferve o
sangue nas veias. Deixa que os quase velhos como nós lutem por este país.
O casal da sopa ouviu o casal dos
cursos. reconheceram-se dois deles. Não disseram nada. Mas ouviram alguém dos
seus trinta e cinco anos, a caminho do trabalho sussurrar
- Não fosse o medo e também gritava.
Somos carne para canhão |
Mas
Ninguém vive sem pão.
E a fome mata e já ninguém planta.
Estes tempos são outros, camaradas.
Na esquina, não há um amigo.
E isso eles sabem.
Por isto vos digo:
somos carne para canhão.
Quem nos vem deitar uma mão?
Albertina Silva Monteiro ©2014,Aveiro,Portugal
“ O país está melhor e o povo mais pobre”. Mas que raio de país é este? Que raio de políticos são estes que governam um país chamado Portugal? Que raio de futuro para nós que ainda cá andamos, para os nossos jovens e para as gerações vindouras?
ResponderEliminarUm belíssimo texto com uma realidade gritante, nua e crua.
Obrigada Albertina
"Quem nos vem deitar uma mão?" A incerteza em relação ao rumo de Portugal, ao nosso futuro a rematar um texto povoado de personagens que se movem no cenário angustiante da atualidade. Um texto muito interessante, Albertina!
ResponderEliminarA amargura de um povo retratada com o realismo gritante de quem não se limita à existência.
ResponderEliminar"Quem nos vem deitar uma mão?" Esperemos que nenhum D. Sebastião.
"Que força é essa amigo
Que te põe a bem com os outros
E de mal contigo..." Este maravilhoso poema de Sérgio Godinho, retirando toda a carga demagógica, mas assimilando todo o conteúdo de realismo, será, por ventura, uma alternativa para o nosso "pensar" tão português.
Em vésperas do 25 de Abril lamento que os jovens se sintam obrigados a denunciarem que se sentem "carne para canhão". É que, há quarenta anos, todos nos convencemos de que tinha terminado o longo túnel do esquecimento. Incompreensível é perceber que se passaram quarenta anos e que os nossos filhos continuam a sentir-se como nós, quarenta anos atrás. Agora duma coisa tenho a certeza: cada um de nós é dono do seu próprio destino e não serve de nada esperar por alguém para o modificar. Por isso mãos à obra, Albertina, a palavra também pode ser construtora de novos mundos.
ResponderEliminar"Rua que isto. Rua que aquilo. Rua aí vamos nós para a praça fazer a revolução dos mal pagos e revoltados.
ResponderEliminarNinguém na praça."
ELES programaram tão bem o silêncio das praças...
NÓS temos de saber partilhar a indignação NA PRAÇA e NAS URNAS.
Texto revelador de um bom repórter que ilumina casas, ruas e praças com a luz crua da realidade.
Quem nos vem deitar a mão? Não sei. Andamos todos um pouco perdidos. Será que há salvação? Espero que sim, para que os meus netos e os outros, tenham mais paz e tenham onde trabalhar.
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