sábado, 2 de março de 2013

Sem hesitação


Maria da Conceição Cação

Não Matarás – o 5º Mandamento é aquele que mais respeito, que mais temo, como se a mão divina, quando o gravou, a fogo, nas tábuas da lei, o tivesse inscrito também, de forma indelével, no meu coração.
Reconhecendo a imagem de Deus em toda a Criação, é com imensa alegria que observo na minha neta sinais da mesma sensibilidade perante a Natureza. Caracóis que surjam a percorrer os caules das suas plantinhas e se preparem para acrescentar rendilhado às folhas, corajosas sobreviventes do inverno, são por ela removidos; mas levados carinhosamente até ao parque mais próximo, onde, acredita, têm direito a viver tranquilamente. Estende estes gestos delicados a todos os animais, incluindo insectos e até aos próprios ratos, que se apressa a libertar sempre que vê algum que, seduzido pela isca, estrebucha na ratoeira


Quando nos visita, a Inês traz sempre consigo um entusiasmo incontido que comunica a tudo o que a rodeia. Tudo ganha uma nova vida: as bonecas, de roupas desalinhadas, acenam-lhe do alto das prateleiras; os livros, amarelecidos, espreitam-na por detrás dos vidros da estante; as velhas fotografias chamam-na, do fundo das gavetas; objectos esquecidos implorando-lhe que os reconheça, que lhes devolva utilidade. Correndo de uns para os outros ou rodeando-se de todos, ao mesmo tempo, a Inês parece querer sentir, nas mãos, os fios da tradição; reforçar os nós mais frouxos; encadear neles a sua própria história; enquadrar e compreender plenamente a sua própria identidade.
Mas é no quintal que a Inês mais se deslumbra. É vê-la mimar os animais; observar os batalhões de formigas; subir às árvores, com mil cuidados, para não afugentar os pássaros; colher a fruta madura; inebriar-se com o perfume do alecrim e da alfazema - impregnar-se de Natureza.
Foi num destes momentos que o inesperado aconteceu. Foi à tardinha. Gritos de aflição arrancaram-me à minha leitura. Precipitei-me para o quintal. Era a minha Inês; tinha sido atacada. Estava pálida; o coração a bater, descontrolado; as mãos trémulas; incapaz de articular palavra. Desnecessária qualquer explicação; eu tinha compreendido. A raiva invadiu-me o peito; toldou a minha mente. Não hesitei; a decisão estava tomada – ia matá-lo. Tinha de fazê-lo com as minhas próprias mãos.
Irrompi pela porta, empunhando a faca; atravessei o pátio; cheguei ao quintal. Persegui-o sem tréguas; enfrentei-o corajosamente; capturei-o; filei-o bem. Depois, insensível àquele olhar de terror, com um só golpe, degolei-o. Ali, vendo o sangue jorrar e o olhar mortiço, agonizante, senti a satisfação do dever cumprido, da vingança satisfeita, da decisão acertada.
No dia seguinte, saboreando o almoço, com um sorriso maroto, a minha doce Inês, comentou: “O arroz do galo está uma delícia, avó!”

3 comentários:

  1. "Era a minha Inês."
    Instintivamente, o argumento perfeito para atacar em nome de um ser querido que foi agredido.
    Depois virão os argumentos de justificação! Ou não!
    Mas fica o belo texto que brotou de uma emoção forte.

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  2. Pois é Conceição, a aflição foi tal que não se olhou a meios para atingir os fins.E então a marota da Inês gostou da carninha do galo.
    Lindo texto, escrito com um sentimento tão vivido.

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  3. Tenho cá em casa três dessas que nos deixam derreter quando descobrem uma formiga num carreiro e, creia São, não teria a menor dúvida em proceder de modo idêntico. Não sei é se a minha mais velha não me daria uma valente descompustura.
    Gostei muito da forma desconcertante como o titulo se encaixa no resto do texto: simplesmente adorável!

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