sexta-feira, 29 de março de 2013

Avós do meu país


Júlia Sardo

Maria era uma criança gorduchinha de cabelo comprido sempre penteado em trancinhas e presas em feitio de mala. Vestia pobremente, umas sainhas de chita e umas blusinhas com flores, de manga comprida e franzido na cinta, feito com elástico. Era a filha do meio, de um grupo de cinco irmãos. Os pais eram pessoas muito humildes, viviam com muitas dificuldades, por isso não podiam dar uma boa refeição aos filhos. 
Trabalhavam de sol a sol
Trabalhavam de sol a sol e, mesmo assim, tinham de poupar de uns dias para os outros. Coziam o pão de milho, de semana a semana, que era guardado numa caixa de madeira, da mesma maneira que eram outros alimentos.A alimentação deles era quase sempre peixe, que o pai pescava, e batatas, que a mãe semeava no aido, ou uma sopinha de feijão sem ser adubada com carne. Quando o peixe era frito, guardava-se num prato de barro, dentro dum armário pequeno, por causa das moscas, fixo na parede, o chamado mosqueiro.
Dos cinco irmãos, as duas mais velhitas eram as mais sacrificadas, porque não foram aprender as letras, para a escola. Não era obrigatório ir aprender a ler e escrever; isso era um luxo, só para os filhos dos ricos.Ficavam em casa, tratando dos irmãos; faziam alguma coisa para comerem, enquanto os pais trabalhavam até ser noite.


Lavava a roupa
Além da Maria, havia a Custódia, que era a mais velha, a Joana, a Glória e o Manuel, também chamado Manatum, não sei porquê; talvez por ter nascido muito depois das irmãs e ser novito, em relação a elas.
Pois, continuando a falar de Maria; ela foi crescendo e trabalhando para ajudar na lida da casa que, apesar de ser pobre, tinha de ser limpa. O chão da pequena casa era de terra, coberto de junco, que iam buscar aos juncais perto da ria, a borda, como vulgarmente chamavam, e este tinha de ser mexido ou substituído com regularidade. Lavava a roupa, no tripé de madeira, com a água que tirava do poço, com um balde amarrado a uma corda. Punha a roupa lavada numa celha de madeira, para ir secar ou, então, alguma mais suja, tinha de ser posta a corar.
Os irmãos davam-lhe muita canseira. Eram traquinas e podiam-lhe fugir, para a borda da ria, para brincar.
Entretanto, os anos foram passando; ela fez-se uma adulta em ponto pequeno, apressadamente, começando a querer fazer como a mãe; fazer-se peixeira.
Maria - menina
Começou a namorar, novita, com o seu Manel, também ele pobre; passados meses resolveram casar para formar a sua família.Conseguiram construir uma casinha pequena, só com o essencial, para poderem viver. Ele fez-se pescador dos barcos de pesca longínqua e lá foram organizando a vida deles. Tiveram cinco filhos e foram vivendo, com o auxílio do dinheiro que Maria ganhava na venda do peixe.
Todos os dias ela lavava os utensílios que utilizava no transporte do peixe: a canastra, o oleado que punha por cima da canastra, para que a água não escorresse e a molhasse, a serapilheira que era para tapar o peixe, depois de molhada, para que o peixe estivesse sempre fresquinho.
Coitada, ela tinha alguma dificuldade em organizar as suas vendas; como não frequentou a escola, não sabia ler nem contar; então como podia fixar quem lhe ficava a dever dinheiro?
Sim, porque como as pessoas viviam com muita dificuldade, havia muitos fiados e só pagavam quando os homens vinham do mar ou mesmo quando acabava a faina da marinha.
Tanto pensou, que lá conseguiu arranjar uma maneira, simples, de saber os débitos;
Maria fez-se peixeira
O vestuário de Maria continuava a ser simples; uma saia, uma blusa e por cima da saia, um avental bem rodado, com uma algibeira bem funda, onde guardava, além de outras coisas, um pequenino livro preto e um lápis de ponta afiada e o dinheiro que conseguia receber. O bolso, pelo sim pelo não, era fechado com uma pregadeira.
Quando recebia o dinheiro da primeira venda, benzia-se, dizendo que era para ter sorte.
Cada freguesa era sinalizada com um símbolo, que só ela conhecia, e o débito era feito com risquinhos, no tal livrinho preto.Assim, foi orientando a sua vida, os filhos foram crescendo e formando as suas famílias.Tornou-se uma mãe e uma avó maravilhosa, compreensiva e muito amiga, boa conselheira.
Era uma delícia pedir-lhe conselhos. Tinha sempre uma opinião para dar, mesmo com uma forma simples de linguagem, que a todos agradava.
Avós do meu país
Era tão reta na sua maneira de ser, que se tornou a fiadora e garante, das colegas de profissão, que não tinham dinheiro para pagar, na lota, o peixe que compravam para depois vender.
Foi sempre uma pessoa muito simples, mas muito amiga.


6 comentários:

  1. A palavra pobre é, muitas vezes, utilizada, talvez, duma forma demasiado fácil,banal,simplista, retirando à palavra o seu mais profundo significado.Este texto, retrata minuciosa e pormenorizadamente o verdadeiro significado da pobreza e não só. Ser pobre, não é, não ser, trabalhador!

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  2. Julinha como foi bom ler o teu texto. A tua memória é de elefante. Lendo-o é como a passagem de um filme a preto e branco de imagens bens reais.Para os mais novos que nem lhes passa pela cabeça o viver de antigamente, está tudo pormenorizado.
    Na sua maioria, as pessoas eram pobres de bens materiais, mas de uma riqueza interior impar. Talvez por isso e como já passámos por algumas gerações, podemos fazer tão bem a análise de valores do antigamente e dos de agora.

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    1. Foi mesmo isso que tentei tetratar. Foi a realidade. Agradeço-vos o comentário e à querida Albertina a delicadeza com que escolhe as fotos. Gostei tanto...

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  3. Quando me dá o prazer de partilhar as suas publicações quase que fico parada no espaço e no tempo: os cenários de que nos fala são tão reais que quase me sinto transportada a uma realidade que não vivi mas que as suas palavras me retratam duma forma tão minuciosa quase como se tivesse a olhar uma tela numa paleta de pintor. Nesta caso pintora,Julinha... e percebo então que as nossas vivências se refletem sempre em tudo o que fazemos: na tela, no papel, na vida.

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  4. Bom retrato, Júlia!Esta Maria faz-me lembrar as Marias da minha terra: começavam a trabalhar muito pequeninas, sem direito a frequentar a escola. Cuidavam dos filhos, da casa e acompanhavam os maridos nas fainas agrícolas. Gente que lutava corajosamente contra a pobreza e que tudo o que conseguia era sobreviver. Quem nos dera que todo o nosso povo ainda mantivesse as qualidades desta Maria e, sobretudo, que os nossos governantes fossem verdadeiros líderes!

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  5. A felicidade é uma intermitência de pontos de luz projetados na escuridão.
    Um ponto de luz assumiu-se no espaço e logo outros acorreram a dialogar.
    Isto já é a FELICIDADE.

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