Júlia
Sardo
Luísa era uma menina de
cinco anos. Era gordita, de pele branquinha, loira e olhos azuis. Era filha
única, muito amada pelos pais. O pai, quando a mostrava aos amigos, mostrava um
orgulho tão grande que os olhos brilhavam.
Andava sempre cuidadosamente
vestida, com vestidinhos bem alegres que a mãe lhe fazia. Laçarote na cabeça,
branco ou de seda às riscas coloridas. Eram tão lindas essas fitas…
A Luísa tinha um carinho
muito especial pela sua avó paterna, que além de ser avó, era também a
madrinha. De forma que estava sempre ansiosa que a avó viesse passar o fim de
semana a casa. Ela trabalhava numa empresa e vivia lá durante toda a semana.
Ora, por infelicidade, a mãe
da Luísa apanhou uma tuberculose; doença muito contagiosa que, nessa época,
existia com bastante intensidade. As pessoas que a contraíam, ou tinham de se
afastar ou, então, toda a louça, onde eles comiam, era fervida e as crianças
eram afastadas.
Pois foi o que aconteceu à
Luísa. Foi viver uns tempos na empresa onde trabalhava a avó. Claro que ela
sentia muito a falta da mãe, mas como se sentia bem junto da avó, a saudade era
atenuada.
A menina brincava todo o
dia, andando atrás dos patos, que corriam por baixo das mesas, onde era posto o
bacalhau a secar, em dias de vento. Aproveitava e ia procurar os ninhos onde as
patas punham os ovos. Era uma alegria quando encontrava algum. Eram retirados
cestos cheios, todos os dias.
Luisinha, como era chamada
carinhosamente pelas pessoas amigas, conhecia todos os cantos naquela empresa.
Cada armazém tinha um nome: o armazém do peixe sujo, porque era nesse armazém
que ia ser lavado nas tinas, e posto em pilhas para ir escorrendo.
Depois de escorrido, era
então levado nos carros de mão para secar ao ar livre, mas só em dias em que
houvesse vento suficiente para a água ir evaporando e o peixe não ficar
queimado com o excesso de calor.
As empregadas tinham uma
maneira de pôr o peixe estendido nas mesas, que a menina gostava; um peixe com
a parte mais larga para um lado e outro peixe com o rabo para o outro, mas
sempre de barriga para cima; assim sucessivamente até que o peixe acabasse.
A pequenita andava sempre
atrás das mulheres para aprender as cantigas que cantavam durante todo o dia.
Eram raparigas muito alegres.
Quando o sol aquecia um pouco
mais, a avó chamava-lhe a atenção para pôr o chapéu na cabeça; mesmo que ela
estivesse longe, a avó ia ao microfone, que havia no escritório, fazendo-lhe
essa recomendação.
Por vezes, a Luisita não
tinha o chapéu à mão e eram as mulheres que lhe emprestavam o delas, para que a
avó não a castigasse e mandasse ir para a sombra.
Depois de o peixe estar seco
ia, então, para um outro armazém que se chamava armazém do peixe seco. Era
levado em canastras à cabeça. Aí a Luísa tentava ajudar as mulheres a pesar o
peixe e organizá-lo em quintais. Claro que não fazia nada de jeito mas como
tinha uma boa relação com todas, lá lhe davam aquele mimo, fingindo, que a
pesagem estava bem feita.
Aquela empresa era, para a
época, muito moderna; tinha uma creche para os filhitos das empregadas e um
posto médico, com assistência diária.
Era também um dos prazeres
da Luísa, principalmente depois de dormir a sesta, visitar as crianças que
estavam na creche. Deliciava-se, principalmente, a ver os bebés. Dormiam em
caminhas de ferro que tinham umas barras laterais, altas, para eles não caírem
quando se pusessem de pé.
Quantas vezes a Luisita
tentava dar o biberão a algum bebé, mas um pouco desajeitada, desistia.
A menina tinha uma ligação
muito forte com as empregadas. A maior parte delas já eram moças com idade de casar,
portanto, a maioria tinha os seus namorados. Combinavam muitas excursões e
levavam-na quase sempre.Quantas vezes a Luísa pedia à avó que a deixasse comer
com as raparigas, no refeitório que havia para elas fazerem as suas refeições! Era
tal a amizade, que deixava de comer uma refeição boa, para comer uma mais
simples, mas acompanhada das amigas.
Entretanto a saúde da mãe da
Luísa foi melhorando e, já sem risco de contágio, ela foi para o seio da sua
família, os pais, de quem tinha tanta saudade.
Apesar de não frequentar a
seca com tanta assiduidade, nunca deixou de ter uma verdadeira amizade pelas
amigas que deixou. Sempre que podia, procurava
saber do seu bem-estar e não deixava de lhes fazer umas visitas.
Lembro-me tão bem das amigas da Luisinha! Às seis da manhã passavam à minha porta em ranchos de 15 a 20 mulheres. Já levavam 8 ou 10 Km percorridos a pé e ainda lhes faltava uma boa meia dúzia mais.
ResponderEliminarQuando havia grandes panelas de ferro com as chamadas batatas dos porcos cozidas durante a noite, à beira da ria, (são hoje as batatinhas para alourar no forno), elas tiravam algumas e lá as iam pelando pelo caminho e aquecendo o estômago.
À noite regressavam a cantar! Lá vão as mulheres da seca.
Julinha com este testemunho da Luisinha, fizeste-me recuar aos meus tempos de criança. Também eu passava horas infindas a ver as "mulheres da seca" a porem o bacalhau a secar. Mas ao contrário da Luisinha, eu estava do lado de fora da seca. Pareciam máquinas humanas. E, das poucas fotografiuas de criança, consegui recuperar uma, precisamente nesse sítio. Obrigada por este bocadinho
ResponderEliminarAinda bem que há Luisinhas que conseguem transmitir as suas vivências duma forma tão minuciosa e tão serena que nos fazem transportar a um tempo e um espaço que desapareceu graças ao tão proclamado "progresso". São relatos como estes que perservam na nossa memória coletiva um tempo em que as pessoas trabalhavam com alegria.
ResponderEliminarFiquei muito feliz com as fotografias que foram utilizadas. Também as tenho no livro de Maria Lamas. Obrigada.
EliminarNão imaginava a Luisinha que a sua história perduraria na memória de alguém que, passados tantos anos aqui está a contá-la. E que bem a conta, Júlia!
ResponderEliminar