sexta-feira, 22 de março de 2013

A ÚLTIMA ÁRVORE DO BOSQUE


Conceição Cação

Sinto-me só, muito só
Sinto-me só, muito só. Olho ao redor - no chão gretado, rastejam apenas os tojos e cardos raquíticos de picos ainda mais aguçados pela longa seca; nas velhas fábricas, as máquinas choram a sua inutilidade entre os telhados prostrados e as paredes esmaecidas; ao longe, a aldeia assombrada pelos fantasmas dos operários que agora labutam em terras longínquas; portas e janelas cerradas; fechaduras enferrujadas
Cresci vigorosa e saudável
Vou-me alimentando de memórias entrelaçadas de saudade. Inebriava-me o cheiro da terra húmida que me acolheu no seu seio quando eu não passava duma plantinha franzina, nascida da barriga de aluguer dum horto municipal. Cresci vigorosa e saudável entre as minhas companheiras. Os corvos, as rolas e os pombos bravos descansavam nos meus ramos. Na primavera, a brisa suave vinda do mar embalava os passarinhos que, aninhados nas camas fofas, esperavam o momento tão desejado em que, amparados pelos pais, se lançariam na aventura do ar. Os coelhos e as lebres abrigavam-se nas suas luras, cavadas no mato mais espesso. Quantas vezes estremeci ao ver cair morto um animalzinho atingido pelo chumbo disparado por arma impiedosa! Este bosque foi também paraíso de namorados. Ah! Tantos segredos guardaram as minhas folhas! No meu tronco, protegi do tempo destruidor, gravadas em sulcos profundos, juras de amor eterno. E, a anunciar essa união, chegavam, mais tarde, até mim as badaladas festivas do sino.

Reencarnei neste mesmo lugar
Mas vieram tempos de dor. Assisti, sem nada poder fazer, ao sofrimento de muitos dos meus vizinhos – pinheiros bravos – dizimados pelo inseto implacável. As chamas aterradoras invadiram várias vezes o nosso espaço: chão coberto de cinzas, árvores de braços enegrecidos como cruzes num campo santo. Embora com as folhas e ramos feridos, sobrevivi aos ataques do fogo devastador.
Todavia não fui poupada: tal como muitos dos meus amigos, fui abatida, sem piedade, pelo machado insensato. Senti-me a ser transportado para o Além, mas, graças à persistência da minha alma e à robustez da minha seiva, reencarnei neste mesmo lugar; renasci do velho cepo de raízes profundas. E não estou só, tenho mais dois irmãozinhos gémeos. Vamos crescer juntos e das nossas sementes vão nascer novas árvores, criar um novo bosque. Desiludam-se os que pensavam que eu ia morrer, não me rendo à tristeza. Sou forte, comigo mora a esperança.



4 comentários:

  1. As árvores nem sempre morrem de pé... São muitas vezes - mesmo muitas - abatidas pelos que, desejosos de fortuna, de todos os meios se servem para atingir fins. Às vezes, até morrem queimadas e elas não sabem inflamar um fósforo...

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  2. Pois na natureza, tudo se transforma. Claro que há árvores que duram uma eternidade, até ficarem mesmo velhinhas.São essas essas que nos trazem tantas recordações. Lindo texto, Conceição.

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  3. Uma lufada de ar fresco com este texto de esperança. Que alma de poeta glosará as duas frases finais do texto que é um autêntico mote?
    "Desiludam-se os que pensavam que eu ia morrer,
    Não me rendo à tristeza.
    Sou forte, comigo mora a esperança."
    Está lançado o desafio. Sei que haverá resposta.

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  4. Há palavras que falam quando se escutam e palavras que renascem cada vez que o sol se põe. Gostava de reforçar uma ideia que me assaltou mal acabei de apreciar este trabalho - "reencarnei neste lugar, renasci do velho cepo de raizes profundas!"
    Que força emana do que escreveu e que bem que o soube transmitir. Obrigado, São.

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