Maria
da Conceição Cação
Não Matarás – o 5º Mandamento é aquele que mais respeito, que
mais temo, como se a mão divina, quando o gravou, a fogo, nas tábuas da lei, o
tivesse inscrito também, de forma indelével, no meu coração.
Reconhecendo a imagem de Deus em toda a Criação, é com imensa
alegria que observo na minha neta sinais da mesma sensibilidade perante a Natureza.
Caracóis que surjam a percorrer os caules das suas plantinhas e se preparem
para acrescentar rendilhado às folhas, corajosas sobreviventes do inverno, são
por ela removidos; mas levados carinhosamente até ao parque mais próximo, onde,
acredita, têm direito a viver tranquilamente. Estende estes gestos delicados a
todos os animais, incluindo insectos e até aos próprios ratos, que se apressa a
libertar sempre que vê algum que, seduzido pela isca, estrebucha na ratoeira
Quando nos visita, a Inês traz sempre consigo um entusiasmo
incontido que comunica a tudo o que a rodeia. Tudo ganha uma nova vida: as
bonecas, de roupas desalinhadas, acenam-lhe do alto das prateleiras; os livros,
amarelecidos, espreitam-na por detrás dos vidros da estante; as velhas
fotografias chamam-na, do fundo das gavetas; objectos esquecidos implorando-lhe
que os reconheça, que lhes devolva utilidade. Correndo de uns para os outros ou
rodeando-se de todos, ao mesmo tempo, a Inês parece querer sentir, nas mãos, os
fios da tradição; reforçar os nós mais frouxos; encadear neles a sua própria
história; enquadrar e compreender plenamente a sua própria identidade.
Mas é no quintal que a Inês mais se deslumbra. É vê-la mimar
os animais; observar os batalhões de formigas; subir às árvores, com mil cuidados,
para não afugentar os pássaros; colher a fruta madura; inebriar-se com o
perfume do alecrim e da alfazema - impregnar-se de Natureza.
Foi num destes
momentos que o inesperado aconteceu. Foi à tardinha. Gritos de aflição
arrancaram-me à minha leitura. Precipitei-me para o quintal. Era a minha Inês;
tinha sido atacada. Estava pálida; o coração a bater, descontrolado; as mãos
trémulas; incapaz de articular palavra. Desnecessária qualquer explicação; eu
tinha compreendido. A raiva invadiu-me o peito; toldou a minha mente. Não
hesitei; a decisão estava tomada – ia matá-lo. Tinha de fazê-lo com as minhas
próprias mãos.
Irrompi pela porta, empunhando a faca; atravessei o pátio;
cheguei ao quintal. Persegui-o sem tréguas; enfrentei-o corajosamente;
capturei-o; filei-o bem. Depois, insensível àquele olhar de terror, com um só
golpe, degolei-o. Ali, vendo o sangue jorrar e o olhar mortiço, agonizante,
senti a satisfação do dever cumprido, da vingança satisfeita, da decisão
acertada.
No dia seguinte, saboreando o almoço, com um sorriso maroto,
a minha doce Inês, comentou: “O arroz do galo está uma delícia, avó!”
"Era a minha Inês."
ResponderEliminarInstintivamente, o argumento perfeito para atacar em nome de um ser querido que foi agredido.
Depois virão os argumentos de justificação! Ou não!
Mas fica o belo texto que brotou de uma emoção forte.
Pois é Conceição, a aflição foi tal que não se olhou a meios para atingir os fins.E então a marota da Inês gostou da carninha do galo.
ResponderEliminarLindo texto, escrito com um sentimento tão vivido.
Tenho cá em casa três dessas que nos deixam derreter quando descobrem uma formiga num carreiro e, creia São, não teria a menor dúvida em proceder de modo idêntico. Não sei é se a minha mais velha não me daria uma valente descompustura.
ResponderEliminarGostei muito da forma desconcertante como o titulo se encaixa no resto do texto: simplesmente adorável!