domingo, 29 de junho de 2014

A última corrida

Vamos hoje dar inicio a um ciclo de trabalhos sob o tema  Mensagem paralela à de um filme. Para mais facilmente compreendermos de que filme se trata apresentaremos previamente a Sinopse e o seu original título.

                                                                  A MILLION DOLLAR BABY - Sinopse

Afastado da sua filha, Frankie (Clint Eastwood) revela uma grande dificuldade na aproximação aos outros, e apenas lhe resta o amigo Scrap (Morgan Freeman), um ex-lutador de boxe que cuida do ginásio de Frankie. É então que entra em cena, em seu ginásio, Maggie Fitzgerald (Hilary Swank), que sempre teve pouco da vida, mas que ao contrário de muitos, sabe bem o que quer e tem a determinação necessária para o alcançar. O ambos não sabem é que terão de enfrentar um desafio que irá exigir mais coragem e alma do que podem imaginar...                                                                    

A última corrida

“Estava-lhe no sangue”— diziam muitos dos que todos os dias a viam passar naquele passo determinado e convincente de que aquela vontade ainda haveria de mover montanhas. Fizesse chuva,  fizesse  sol  ou  o  vento  fosse  de  norte  ou  de  onde quer que viesse, aquela
Gostava de correr.
menina franzina fazia-se à estrada ou a qualquer caminho seco ou lamacento, sempre de olhar lúcido mas com um brilhozinho, bem lá no fundo, daqueles olhos crentes no seu esforço e dedicação. Desde bastante pequena que gostava de correr e cedo começou a fazê-lo só porque os outros não lhe igualavam a passada e ela não conseguia prescindir de satisfazer aquela vontade que lhe vinha lá de dentro. A pouco e pouco e, apesar dos parcos recursos de que dispunha, foi adquirindo uma autoestima que a compensava da deficiente alimentação e das condições de bastante pobreza em que vivia com a sua família. Os recursos que não existiam eram substituídos por uma força de vontade fora do normal.
Um dia, numa associação recreativa, lá da freguesia, assistiu à projeção de um DVD sobre a grande campeã olímpica e mundial Rosa Mota. Ela ficou maravilhada, ficou emocionada, ficou contente, ficou louca, ela ficou completamente cismada em todos os pormenores daquele filme. Nos dias que se seguiram corria, corria e as imagens, umas atrás das outras, eram as da Rosa Mota? Eram suas? O sonho passou a fazer parte da sua vida e a intermitência vivida entre ele e as condições reais da sua vida começaram a despertar nela uma lucidez até agora não sentida. Como poderia ela pintar um quadro sem tela, sem pincéis, sem tintas...
Correr podia fazê-lo em qualquer lado
A família nada tinha e a luta pela sobrevivência era já fado suficiente. Tinha que ir para a cidade e lá arranjaria trabalho para poder subsistir. Correr, podia fazê-lo em qualquer lado, precisava era de descobrir quem a ajudasse.
Um saco pequeno, pouco havia para levar, acompanhou-a na aventura de quem tudo quer mas nada tem, ou melhor, para quem sonhar se tornou num direito só porque a sua enorme vontade lhe sustentava o nada que tinha.
Passaram-se dez meses e a Helena, Lena, para os amigos e familiares, começava, finalmente, a percorrer os caminhos da vida assente numa estabilidade periclitante que ela equilibrava com a sua poderosa força de vontade. Ela tinha um sonho, correr com técnica, com saber, segundo as regras que uma campeã tem que aplicar. Para o conseguir, tinha que ultrapassar muitas carências com a sua persistência e querer. De trabalho precário em trabalho precário ia conseguindo um mínimo que lhe permitia viver num quarto partilhado com uma rapariga que como ela angariava o sustento do dia a dia. Inscrevera-se num clube de atletismo e usufruía de orientação técnica que muito estava a contribuir para melhorar as suas performances.

segunda-feira, 16 de junho de 2014

Fui ver nascer o Sol

Fui ver nascer o Sol. Tinha decidido: amanhã vou observar o nascer do sol. E ainda as árvores do meu jardim se espreguiçavam no lânguido e pesado escuro, já eu, sorrateiro, me esgueirava pela artesanal porta do quintal. Queria, por inteiro e com todo o detalhe, presenciar o aparecimento do sol, entre a penedia das fráguas, o primeiro contacto da sua luz com a cortina verde dos freixos e amieiros adjacentes às águas do rio e ver a calculada reacção da seara verde das espigas, que ondulavam na ladeira do velho monte. 
Fui ver o nascer do sol.
Antes que a familiar escuridão desse qualquer sinal de se dissipar, assaltou-me uma inconsciente apreensão do que sucederia se o sol não viesse, por se ter enganado no seu percurso, por capricho da sua natureza, por se ter enredado e entretido em amores com alguma estrela jovem, que as deve haver lindas, - fruto das últimas explosões dos buracos negros! – ou, quiçá, por se propor assustar o seu sistema solar, nomeadamente a Terra ou qualquer outro planeta mais reguila ou mais distraído. Mas a razão respondia à minha apreensão imaginária, afirmando-me com o argumento da ostensiva tradição, que, sem GPS, o astro rei, embora já com alguns truques, no seu “curriculum vitae”,- a fazer acreditar milagres, por determinismo ou ordem superior,- sempre foi fiel na sua rota, e, por isso, aceitava que a sua constância na pontualidade virá a ser por muitos milhões de séculos até se tornar insolvente de combustível, e obrigado a desaparecer por inacção ou esgotamento ou a fundir-se em ritos de magia e de esplendorosa luz. Na minha natural limitação cheguei ao cimo da enrugada e velha encosta em menos de meia hora, com passo bem meditado, e por ali fiquei, entre o contemplativo e o ansioso, a aguardar qualquer sinal anunciador da primeira réstia de luz, que testemunhasse a aproximação da força, do poder, e do fausto, do grande astro solar. 
...odor de plantas bravas
A expectativa envolveu-me, em afagos de um perfumado odor de plantas bravas, adoçando-me a derme com anunciados elementos que me pareceram de messiânica novidade de que algo ia acontecer. Ouvi com apreensão, o quebrar do silêncio ainda meio adormecido, o contínuo e manso ressonar do rio, a afirmar e a lembrar, no fundo do vale, a sua presença, com a água, que se adivinhava, a esgueirar-se do açude pela garganta das grandes pedras ali expostas pelas razões da natureza, seguindo o caminho rasgado e ajustado, nos tempos idos, pela tenaz força do caudal. A lua sorrateira já se havia recolhido no seu quarto minguante, vestida de mistérios de penumbra, cumprido o percurso, sem ter deixado qualquer mensagem meteorológica digna de apontamento. Algumas casas da aldeia com fumos enrolados a sair das chaminés, davam sinais de que alguém havia abandonado o aconchego do leito para se fazer ao dia, rente a chegar. A penumbra atenuou a sua densidade em jeito

quarta-feira, 11 de junho de 2014

Ilusão

Estendo meu olhar sobre o mar
Nesse êxtase mergulho meus sonhos
Cada onda é um desencontro
Neste turbilhão que é a vida…
Tapo os olhos com pétalas de sal
P’ra não ver
A menina da minha ilusão
Na espuma branca desaparecida!...

Olhos d’água, cabelos de luz
Cobertos por um véu
Atados por um laço de maresia
Essa menina
É agora uma mulher que corria
Atrás da vida, que teimosamente venceu…
Sua quimera um lamento
Guarda nela a ternura que lhe deu!...

Isabel Maria ©2014,Aveiro,Portugal

terça-feira, 3 de junho de 2014

Indecisas Contradições

EVOLUIR agradece ao autor o envio deste texto para publicação


Caminhante são as contradições                    
manhã azul
vontade de trabalhar
tarde pálida
silêncio grita libertar                                 
Decide-te...
acordas
levantas-te em amor
deitas-te
adormeces em dor
Caminhante
ser é fantástico
ser é sofreviver
sempre ser é utopia
deixar de ser é agonia
Decide-te
sonhas que entras
acordas que não queres
vives que consentes
deitas-te que não te interessas
umas vezes mereces
outras vezes merecem
cedes
cedem
somos
seres que se contradizem
todos os dias
a todas as horas
porque temos medo
porque amamos
e queremos ser amados
a sábia humilde dolorosa consciência
que sozinhos somos nada
nem essência
Decide-te
preto e branco
sol e lua
bom e mau
puro e impuro
tão duro este duelo
entre ti e tu
queres ser bom mas não capacho
livre a pertencer a um lugar
este lugar plurar
incerto mas maravilhoso
Ó caminhante
que assim não o sentisses
que ruínas ficariam
se tua alma de gesso fosse?
Decide-te
se Deus ou o Diabo
vais falhando e decidindo
um dia é imenso
somos imensos
a contradição em movimento
a balança em perpétuo equilíbrio
és roda que gira
entre o arrependimento e a honra
por isso és humano
fraco e forte
e a terra gira
e tu também


Albertina Silva Monteiro ©2014,Aveiro,Portugal

sábado, 31 de maio de 2014

QUANDO ERA CRIANÇA…


Quando era criança, nos dias de verão,
Bem cedo acordava, o sol no nascente.
Corria na praia feliz e contente
Com sonhos na alma e o balde na mão.

A areia macia lembrava um colchão…
Deitava-me nela e o mar estava em frente.
A água era morna, a luz era quente
E a brisa cantava no meu coração!

Juntava mil conchas, saltava os rochedos,
Sonhava ser ave, voar sem ter medos,
Ir fundo, bem fundo, no fundo do mar!

Fazia castelos na areia molhada…
A casa voltava feliz e cansada,
Na alma lavada o sol a brilhar!...

Maria Celeste Salgueiro ©2014,Aveiro,Portugal

segunda-feira, 26 de maio de 2014

Tanto ruído e silêncio

A manhã estava cinzenta e uma chuva miudinha não sabia a nada, nem mesmo a molhado. E afinal, incomodativamente, senti que o Inverno havia chegado mesmo sabendo que estávamos em Agosto e era suposto haver calor. Uma sensação esquiva de que qualquer coisa de anormal se estava a passar instalou-se no ontem que o amanhã via chegar.
Uma caminhada em direcção a nada
e a ninguém
Uma multidão de gente que se entrecruza e se acotovela num espaço desértico de ideias e projetos. Uma caminhada em direcção a nada e a ninguém. E no fundo, no mais recôndito sítio dos passos perdidos, sem tempo e sem graça, olhei o horizonte e fiquei-me por lá, perdida num lugar e num tempo em que comunicar e fazer silêncio se assemelhavam a situações idênticas, complementares e adicionais.
Encontraram-no na manhã seguinte. Já se haviam passado alguns dias, nem sei se semanas ou, digamos mesmo, meses.
Espanto atrás de espanto, foram desvendando de quem se tratava. Um homem de negócios, chefe de várias empresas, dono de um empório comercial e industrial invejável, conhecido no mundo da alta finança, rosto habitual em manchetes de jornais diários, comunicador apreciado nos meios intelectuais e políticos. Falava e encantava quem o ouvia ou os que com ele privavam.
Pai de quatro filhos, filho de pais especiais e núcleo central de uma família onde tudo girava à sua volta e tudo parecia em harmonia circular de acordo com a comunicação e o diálogo que sempre colocava nas suas relações.
Diz-se que contava com uma enorme multidão de amigos que se rendiam à sedução da
Diz-se que contava com uma enorme
multidão de amigos...
sua palavra e ao encanto da sua visão do mundo e do futuro. Não se submetia às crises nem ao imobilismo: movia-se em torno duma ideia nova ou dum projeto inovador. Se a luta era necessária víamo-lo na primeira fila, na linha da frente; se a negociação se impunha não a enjeitava, encabeçando um diálogo que tinha de dar frutos.
Um homem filho da comunicação e pai da arte de comunicar. Falava com os olhos, falava cm as mãos, com o rosto, com o corpo. Utilizava o sorriso como uma mensagem e o riso como um aviso, utilizava a gargalhada como um recado e as lágrimas como uma advertência, utilizava o silêncio como o matraquear dum teclado na folha em branco dum livro não começado ou duma palavra inacabada.

quarta-feira, 21 de maio de 2014

ENGANO

EVOLUIR agradece ao autor o envio deste texto para publicação
Julguei que tinha asas para voar

Julguei que era Mentira uma Verdade,
Tomei por Alvorada o Sol Poente;
Senti uma Certeza e fui descrente
E na Ilusão eu vi a Realidade!

Julguei-me caridosa e foi Vaidade
Na ânsia de ser outra bem dif´rente;
Orgulho eu o tomei por Humildade,
No fundo quis ser mais que toda a gente!

Julguei que tinha asas p´ra voar,
Que era capaz de altiva caminhar,
Levando como escudo a minha Dor!

Julguei que tinha Tudo sem ter Nada,
Pensei ter a Razão e estava errada,
Julguei que te odiava e era Amor!...    

Maria Celeste Salgueiro ©2014,Aveiro,Portugal
   

sábado, 17 de maio de 2014

O muro cego do poder

EVOLUIR agradece ao autor o envio deste texto para publicação.


E o corpo é um barco ancorado a uma liberdade a perder-se…
Cruzam-se as palavras na noite comprida
Sem soletrar à alma que o mundo se esvazia pelas dobras das mãos…
Engolem-nos os sonhos
Caiem de cansaço
Estreitam-se amargas pelas paredes
Que os dias desluzem…
Gritam-nos dores persistentes
Entranhadas e abafadas na pele…
Muralham-nos os olhos
Vestem-nos de ruas sombrias
Peregrinos de esquinas encurtadas ao tempo…
Rotina que marca um silêncio mastigado…
Um despejo das garras dos abutres
Soterram-nos a palavra que dançava na garganta
O fulgor dos dias claros
Secam-nos as lágrimas
Emudecem-nos as palavras
Arrastam-nos já áridos por um rio a fugir-nos do rosto
E o corpo é um barco ancorado a uma liberdade a perder-se…

Somos o medo desmemoriado de Ser…

Rosa Fonseca ©2014,Aveiro,Portugal


domingo, 11 de maio de 2014

Isabel, a perfeita

No regresso a casa parara numa chocolataria para saborear o bolo de chocolate especial que tanto lhe agradava. Apesar da chuva que persistia em cair continuamente há uma semana, Isabel sentia-se iluminada por dentro. Tudo indicava que a sua vida seria finalmente uma viagem na autoestrada da fama com muitos sorrisos de reconhecimento, muitas manifestações de apreço. 
Sempre lutara por uma oportunidade. Como técnica com formação superior, não desejava apenas trabalhar de forma gratificante e profissional para si e para a empresa. Sentia que era
Sempre lutara por uma
oportunidade
um ser superior e um verdadeiro destaque era-lhe devido. Afável e carinhosa com todos os colegas, principalmente com os do seu departamento, ouvia muitas vezes os seus problemas, os seus desabafos… E como ela sabia ouvir! Sabia como ninguém dizer o que mais animava no momento, como ninguém, também se prontificava a sacrificar a hora do almoço para ajudar um colega a ir resolver um problema a um banco, ou a uma repartição pública. Algumas vezes chegava a acompanhar colegas ou amigos a consultas médicas para não se sentirem sós, especialmente se havia suspeitas clínicas de poder ser um caso mais grave.
Se a empresa necessitava de ir a uma feira internacional para auscultar o mercado para lançar um novo produto, naturalmente Isabel integrava o grupo. Reservada no agir profissional, chegava às reuniões de avaliação das viagens, na empresa, com observações muito pertinentes, com dados que só ela tinha observado. Brilhava perante os chefes.
Auto-estrada da fama
Aquela bondade espontânea, aquela competência profissional, aquela dedicação à empresa já lhe tinham conseguido alguns destaques: naturalmente fora ela a escolhida para ir para os Estados Unidos fazer uma especialização académica na área de gestão financeira; agora, tudo indicava, e ela tinha fontes credíveis, que seria ela a integrar o conselho de administração para substituir um membro incapacitado.
Finalmente iria trabalhar ao lado dos representantes diretos dos acionistas, iria trabalhar com pessoas que dominavam no mundo da política e da finança.
Por isso, permitiu-se aquela pausa tão íntima para saborear aquele chocolate celeste, ver em todos os espelhos do salão o reflexo do brilho interior que sentia emanar, antever o espanto e os aplausos com que a sua família sempre recebia as suas vitórias tão naturais e as suas conquistas tão merecidas.

segunda-feira, 5 de maio de 2014

Ser ou não ser solidário

Vamos hoje dar inicio a um ciclo de publicações que denominámos –  Contradições do ser humano. Todos os que queiram colaborar podem enviar os seus trabalhos para os contactos do Evoluir que aparecem na página do blogue.


Começava o dia a acordar com aquela sensação horrível. Uma tempestade de chuva desvairada tocada por um vento sem destino que tudo arrastava. O barulho era ensurdecedor, estores, portas e tudo que abanasse faziam uma sinfonia completamente desafinada. Ainda na cama pensava:
Quantos não procuram um abrigo...
— Quantos não serão os que a esta hora resistem, procuram um abrigo, um plástico, a ponte ou o pontão mais próximo… A minha capacidade de ser solidário esfumava-se como o fumo que foge e se perde lá longe. E estava eu convencido de que era um ser solidário…
Arranjei-me e saí. Conduzia o meu automóvel com algum cuidado. A intempérie era assustadoramente violenta e podia atraiçoar o mais atento. De rádio ligado ouvia notícias nada animadoras sobre o que estava a acontecer por todo o país. O trânsito aumentava a todo o momento, congestionando a estrada — autêntica ribeira — que para alguns continuava a ser a pista de velocidade do dia-a-dia. Alguns quilómetros volvidos e na berma da estrada alguém me pedia boleia. A péssima aparência da pessoa amedrontou-me e hesitei entre o travar e acelerar. E, seguramente, passei por aquele homem de cabelos compridos, completamente encharcado, com a consciência a encontrar os habituais medos de circunstância: e se fosse um gatuno? Não, dar boleia não, o seguro não contemplaria qualquer acidente… nestas alturas temos que ser racionais… O meu egoísmo protegeu-se por inteiro, a minha pessoa não protegeu ninguém.
Era agora ultrapassado por uma ambulância do INEM que seguia atrás de um carro da
Ser solidário
mesma organização. Mais alguns quilómetros e lá estava um brutal acidente. Parei mais à frente e decididamente fui inteirar-me da dimensão da tragédia. Um carro desgovernado veio embater num outro, que seguia em sentido oposto, tendo ficado ambos abraçados numa medonha amálgama de latas. Foi uma ambulância com uma senhora, depois outra com um rapaz, ainda novo, uma outra com um homem calvo muito mal tratado, enfim, uma tragédia lavada e agravada pela forte chuva que teimava   em continuar.
Perto de mim alguém chorava quase sem se notar. Era um choro sofrido de angústia que vinha lá muito do íntimo de uma senhora que já não era criança e que ali junto à estrada anonimamente se limitava à única coisa que lhe restava: chorar.

domingo, 4 de maio de 2014

DIA DE ANOS

EVOLUIR agradece ao autor o envio deste texto para publicação



Hoje fazias anos, minha Mãe!
Se ainda fosses viva, que alegria!
Um ramo todo em rosas te daria,
Um ramo igual a tantos que te dei!

Mas as coisas não mudam, bem o sei
E estar a imaginar o que faria,
É como pôr mais fogo na agonia,
Neste desgosto imenso que eu calei.

Hoje fazias anos, é verdade
E eu só posso ofertar-te esta saudade,
Esta minha afeição amargurada.

Por tudo o que me deste ainda em vida,
Neste dia, minh´alma agradecida,
Te diz: Oh! minha Mãe, muito obrigada!

Maria Celeste Salgueiro©2014,Aveiro,Portugal

segunda-feira, 28 de abril de 2014

As vivências de Deolinda com os animais

Tinha acabado o Verão. Ia começar a escola.Era hora de começar a preparar a mala com tudo o que era preciso. A mala?
Como era a mala? Era uma bolsa feita de pano riscado ou então de cotim azul-escuro, ou de lona, que apertava com um botão e tinha uma alça para pendurar ao pescoço.
O que se punha na mala? O que se podia comprar: uma lousa preta, um ponteiro e um caderno de duas linhas para se fazerem as cópias.
A lousa e os ponteiros
O caixilho da lousa tinha um buraquito para se atar um fio e na ponta deste, uma almofadita para se limpar a lousa, quando se errasse alguma conta, isto, quem tinha uma mãe habilidosa para a fazer, porque se não houvesse almofadinha, a lousa era limpa com cuspo e a manga da camisola.
Tudo isto a Deolinda tinha preparado, mas no momento de ir para a escola recebeu um recado do pai: tens de te preparar, porque não vais para a escola. Chega de malandrice; vais mas é trabalhar, que já está bem na hora.Os teus irmãos são pequenos e tu já podes fazer alguma coisa pela família.
Deolinda tinha o destino traçado pelos pais. Ia servir para a casa de uns lavradores.Era uma criança pequena para a idade; atarracada.
Logo que teve conhecimento do seu destino, não ir para a escola, que era onde ela mais gostava de andar, os seus sonos começaram a ser agitados, cheios de pesadelos, que a deixavam sempre amargurada.
Os dias passaram a ficar negros, de tanta tristeza.
Enfim; chegou o dia de se mudar para a casa dos tais lavradores. Logo pela manhã, foi ao quarto buscar o saco, onde levava a pouca roupa que tinha. Com grande tristeza despediu-se dos pequenos irmãos e da mãe.O pai foi levá-la e esse gesto fez com que nunca mais visse o progenitor com carinho.
Lá ficou entregue como se fosse uma mercadoria. Olhava para as pessoas com tristeza o que não passou despercebido à senhora da casa. Com o seu instinto maternal compreendeu-a e a partir daquele momento, fez dela uma filha. Deolinda ficou feliz.
Depois de lhe terem sido distribuídas as tarefas que tinha de fazer todos dias, ela começou a explorar outras coisas em que tinha prazer. Conheceu uma pequenina bezerra que tinha nascido há poucos dias. Foi como um brinquedo. Todos os dias depois das tarefas feitas, ia visitar a sua amiguinha. O próprio animal, quando a via, já se aproximava. Fazia-lhe muitas festinhas, conversava um pouco e só depois ia deitar-se.

sexta-feira, 18 de abril de 2014

Nós agora somos carne para canhão…

EVOLUIR agradece ao autor o envio deste texto para publicação



Nós agora somos carne para canhão. Parecemos aqueles pequenos jovens que não sabem para o que vão, os da infantaria, os primeiros a caminhar, os primeiros a morrer por uma causa que nunca foi deles.
Somos isso mesmo: carninha, uma mais arranjadinha, outra coitadinha, mas tudo à feição de entrar no canhão e BUM.
Rua do desemprego.
Bum é igual a rua. Rua do desemprego. Rua da incerteza. Rua da amargura. 
Rua que o teu posto foi extinto. Rua que não se adaptou às novas tecnologias. Rua que isto. Rua que aquilo. Rua aí vamos nós para a praça fazer a revolução dos mal pagos e revoltados.
Ninguém na praça. Deserta, e as pombas. Um casal dá-lhes migalhas de pão.
Na praça alguém pintou num banco de jardim: aqui se sentou um trabalhador despedido. Novo para a reforma. Velho para o activo. 
Quando acabou de escrever a tinta vermelha o slogan do nosso país, dedicou o resto do seu dia a pedir carimbos para apresentar no fundo de desemprego.
- Então, Senhor José, está tudo preenchido?
- Está sim, minha senhora, um carimbo por semana.
- Já se inscreveu nos novos cursos que saíram?
- Já sim, minha senhora, inscrevi-me no "Introdução à Cidadania".  A minha mulher vai fazer um de costura.
- Fizeram bem. Serão subsidiados os transportes e a alimentação. Fizeram muito bem.
- Obrigada, minha senhora.
Seis meses de tardes ocupadas. Dois meses depois recebem alguns cento e cinquenta a duzentos euros na conta bancária. VIVA 


A menina de há pouco que trabalha afincadamente para o estado porreiro que dá muitas coisas às pessoas, chega a casa e o marido que perdeu o emprego numa empresa de calçado que se mudou para a China já está a fazer o jantar.
- Cheira bem, Rodrigo.
- Fiz sopa de feijão. Para não ser sempre apenas couve branca.
- Fizeste bem, meu amor.
- Alguma sorte hoje?
- Entreguei alguns currículos. Alguém me há de chamar.
- Sim, tenho a certeza.

domingo, 13 de abril de 2014

Ficara estranha e subitamente amante de fotografia.

E quantas vezes partia para a caça de imagens e só noite feita regressava!
Uma bela manhã, ainda o Sol se não erguera, partiu com outros fervorosos adeptos da caça de imagens únicas. Encaminharam-se para o cimo da serra, por uma cerrada mata e por um caminho de poucos conhecido.
Pararam uns momentos para degustarem a música de uma cascata que se adivinhava. A frescura que os salpicos lançavam em redor acariciava a pele sofrida pela subida. Mais que uma vez, dobrada a encosta, tinham conseguido surpreender o encanto de testemunharem o beijo da noite a despedir-se do dia que começaria o seu reinado de luz clarificadora. Uma vez tinham até estacado perante a hipótese de fixarem a imagem daquele veado que quase se deixara surpreender a matar a sede, numa alvorada já quente do mês de maio. João tinha em casa esse troféu. Fora o único a conseguir a composição perfeita e a luz excelente. Ainda hoje se interrogava sobre a expressão do olhar do animal apanhado no momento de iniciar a fuga.
O sol nascera, enfim. Ao longe, o mar era um reflexo único de um dia que se adivinhava esplendoroso. Mas no fundo dos vales que iam dar à costa, grandes rolos de nevoa ainda preguiçavam o doce aroma que a noite lançara sobre a terra. Duas boas horas já haviam passado e nem um enquadramento especial, nem um ângulo para realçar uma copa perfeita de árvore, nem uma pedra evocadora de uma figura…
Aquele grupo de caçadores de imagens porfiava serra acima. Em breve apontariam as objetivas ao trajeto ascendente do Sol, ao contraste dos variados verdes da serra ponteados por pequenos lagos tão brilhantes que simulavam os olhos da serra, espantando-se com a magnificência de mais um esplendoroso dia de maio. Não faltavam manchas de alfazema, caminhos ladeados pelo amarelo da giesta, verdes mimosos dos rebentos novos dos pinheiros, árvores a vestirem-se de folhas macias para se juntarem à festa da renovação da natureza…
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