domingo, 11 de maio de 2014

Isabel, a perfeita

No regresso a casa parara numa chocolataria para saborear o bolo de chocolate especial que tanto lhe agradava. Apesar da chuva que persistia em cair continuamente há uma semana, Isabel sentia-se iluminada por dentro. Tudo indicava que a sua vida seria finalmente uma viagem na autoestrada da fama com muitos sorrisos de reconhecimento, muitas manifestações de apreço. 
Sempre lutara por uma oportunidade. Como técnica com formação superior, não desejava apenas trabalhar de forma gratificante e profissional para si e para a empresa. Sentia que era
Sempre lutara por uma
oportunidade
um ser superior e um verdadeiro destaque era-lhe devido. Afável e carinhosa com todos os colegas, principalmente com os do seu departamento, ouvia muitas vezes os seus problemas, os seus desabafos… E como ela sabia ouvir! Sabia como ninguém dizer o que mais animava no momento, como ninguém, também se prontificava a sacrificar a hora do almoço para ajudar um colega a ir resolver um problema a um banco, ou a uma repartição pública. Algumas vezes chegava a acompanhar colegas ou amigos a consultas médicas para não se sentirem sós, especialmente se havia suspeitas clínicas de poder ser um caso mais grave.
Se a empresa necessitava de ir a uma feira internacional para auscultar o mercado para lançar um novo produto, naturalmente Isabel integrava o grupo. Reservada no agir profissional, chegava às reuniões de avaliação das viagens, na empresa, com observações muito pertinentes, com dados que só ela tinha observado. Brilhava perante os chefes.
Auto-estrada da fama
Aquela bondade espontânea, aquela competência profissional, aquela dedicação à empresa já lhe tinham conseguido alguns destaques: naturalmente fora ela a escolhida para ir para os Estados Unidos fazer uma especialização académica na área de gestão financeira; agora, tudo indicava, e ela tinha fontes credíveis, que seria ela a integrar o conselho de administração para substituir um membro incapacitado.
Finalmente iria trabalhar ao lado dos representantes diretos dos acionistas, iria trabalhar com pessoas que dominavam no mundo da política e da finança.
Por isso, permitiu-se aquela pausa tão íntima para saborear aquele chocolate celeste, ver em todos os espelhos do salão o reflexo do brilho interior que sentia emanar, antever o espanto e os aplausos com que a sua família sempre recebia as suas vitórias tão naturais e as suas conquistas tão merecidas.
Ter a consciência da sua indispensabilidade para colegas, amigos e familiares não era um problema para Isabel. Pelo contrário. Reconhecia em si a árvore frondosa que em dia tórrido acarinha na sua sombra e reanima o caminhante desesperado. Reconhecia em si as pilastras e os arcos de ogiva que davam sustentabilidade à catedral da sua solidariedade em que pontificava a rosácea da sua amizade fraterna. Qualquer outra pessoa poderia algum dia suspeitar que a visão de si própria a anulava, para ser muito mais uma imagem pré-definida que se transformava num fardo demasiado pesado. Para Isabel, não. Pelo contrário, a imagem de si própria como metáfora de árvore protetora e da catedral inabalável preenchiam-lhe a vida. Uns por ironia, outros por convicção chamavam-lhe até Santa Isabel de Portugal ou Santa Isabel da Hungria: o que era certo é que sentia ter herdado não apenas o nome da nossa sobrinha-neta e da sua tia-avó húngara.
Mal espreitou pela nesga entreaberta da porta, reparou num envelope deixado na pequena mesa da entrada. Chamou pelo filho, que andava absorvido pelos exames finais de ano. Não obteve resposta e foi com o envelope na mão até ao quarto onde esperava encontrá-lo estendido na cama a descansar de mais uma intensa tarde de estudo. O olhar captou pormenores de desarrumação; um cheiro a ansiedade, feito de especiarias agridoces, pairava no ar; um som misterioso e incomodativo estava a ser devolvido em eco; as suas mãos sentiram o toque de seda da pele de bebé que o filho, para ela, ainda mantinha. Sem explicação para a ausência não esperada do filho, abriu aquele envelope. Reconheceu imediatamente a sua letra bem desenhada e pôs-se a ler, sentando-se tranquilamente na cama.

Mãe:
Muitas vezes tive vontade de te escrever, para falarmos calmamente como mãe e filho que se sabem pessoas distintas. Nunca tive coragem suficiente e, então, nesses momentos de grandes incertezas, era ao pai que telefonava. Mesmo a tão grande distância, adivinhava as minhas angústias e dizia-me sempre para nunca abdicar de mim próprio.
Chamou pelo filho...
Este ano letivo consciencializei que não quero acabar o mestrado do “meu” curso, porque eu não quero ser gestor financeiro, como tu, apesar das boas notas que tenho em todas as cadeiras. Não te peço que aceites esta minha decisão. Nunca irás compreender o motivo de se abandonar um curso tão promissor… Quem, como tu, vive encantada com a imagem narcisista que cada espelho te devolve, nunca aceitará que eu não queira viver e morrer afogado na infantilidade de me considerar perfeito. Mãe, ajudar é dar-se. E tu, o que fazes é estares sempre disponível para que os outros segurem espelhos onde o Narciso que não quiseste abandonar na passagem para a idade adulta se reflita belo e bondoso.
A minha irmã teve a sorte de realmente querer o curso que escolheste para ela. Está independente, saiu de casa, mas faz-me muita falta. Com os meus amigos, com a minha namorada, a relação humana é, por vezes, conflituosa, claro. Principalmente quando nos confrontamos com mudanças de atitudes que julgávamos definitivamente instaladas na nossa personalidade. Não sentimos estes redimensionamentos próprios e alheios como ameaças, mas rejeitamos o terreno propício aos preconceitos sobre os outros, ao fanatismo das nossas posições e à violência mascarada de ajuda.
Mãe, à hora em que leres este bilhete, eu já estarei no voo que nos levará, a mim e à minha namorada, para o Canadá, onde, com algum apoio do pai, irei construir a minha vida.
Não se pede perdão ou desculpa por se ter a coragem de se ser uma pessoa livre com direito a procurar a felicidade.
Um grande abraço e até sempre.

...abandonou o escrito do filho
Isabel abandonou o escrito do filho e foi ver as mensagens que ouvira entrar na sua caixa de correio. Confirmava-se, se bem que ainda não oficialmente, que no dia seguinte iria ser integrada no conselho de administração da sua empresa. Não faltavam mensagens de parabéns antecipados.

O seu pensamento foi, de imediato, para a necessidade de, na manhã seguinte, sair de casa esplendorosa, para esplendorosa entrar na empresa naquele dia de glória. Dormiu tranquilamente e, ao outro dia, a chuva, envergonhada por ofuscar tanto sucesso, deu lugar a um sol radioso que emoldurava o seu triunfo pessoal.


Fernanda Reigota ©2014,Aveiro,Portugal

5 comentários:

  1. Até quando irá Isabel, a perfeita, manter a imagem? Decerto enquanto conseguir deslumbrar dos que estão à sua volta. Mas um dia tudo mudará: aos poucos a aura vai perdendo o brilho e a catedral acaba por se desmoronar. Uma análise da complexidade do ser humano, um texto muito interessante.

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  2. A vida de Isabel é, como a de tantos, um jogo em que o poder se obtém através de uma concepção de favores ou favorecimentos tantas vezes fornecidos com uma mão mas difundidos aos quatro ventos para que, à sua volta, todos possam saber da suas enormíssimas aptidões. E quem circula desta forma pela vida pode, em dado momento, deparar-se com uma perda inesperada, que, de tão imprevista, se apresenta como irrefutável e evidente. Excelente reflexão sobre o ser humano que nos leva a refletir sobre o que é e o que parece ser.

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  3. O egocentrismo de Isabel de tão forte que é, não a deixa ver o que está mais perto de si. Para ela, o filho é um dado adquirido e não tem que o conquistar.
    E um dia o reinado de Isabel vai acabar e o que restará? Uma mão cheia de nada.
    Belo texto para uma profunda reflexão.
    Obrigada Fernanda

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  4. "Isabel, a perfeita" é um pouco saber fazer em vez de ser... parecer... fazer de conta. Esta atitude nem sempre conduz aos enormes desastres que alguns de nós vaticinamos. Há muito boa gente que passa por toda uma vida num andor sonhando sem parar com a sua visão superior sobre os vulgares que os rodeia. O incrível é que essa gentinha chega mesmo a convencer-se de que o seu jogo não é percebido pelos outros. Coitados!

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  5. Quantas pessoas como a Isabel existem por aí. Quando se dão conta da vida que viveram já é muito tarde. O que passou, já não volta e aí não resta senão o arrependimento.

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