Vamos
hoje dar inicio a um ciclo de publicações que denominámos – Contradições
do ser humano.
Todos os que queiram colaborar podem enviar os seus trabalhos para os contactos
do Evoluir que aparecem na página do blogue.
Começava
o dia a acordar com aquela sensação horrível. Uma tempestade de chuva
desvairada tocada por um vento sem destino que tudo arrastava. O barulho era
ensurdecedor, estores, portas e tudo que abanasse faziam uma sinfonia completamente
desafinada. Ainda na cama pensava:
Quantos não procuram um abrigo... |
—
Quantos não serão os que a esta hora resistem, procuram um abrigo, um plástico,
a ponte ou o pontão mais próximo… A minha capacidade de ser solidário
esfumava-se como o fumo que foge e se perde lá longe. E estava eu convencido de
que era um ser solidário…
Arranjei-me
e saí. Conduzia o meu automóvel com algum cuidado. A intempérie era
assustadoramente violenta e podia atraiçoar o mais atento. De rádio ligado
ouvia notícias nada animadoras sobre o que estava a acontecer por todo o país.
O trânsito aumentava a todo o momento, congestionando a estrada — autêntica
ribeira — que para alguns continuava a ser a pista de velocidade do dia-a-dia.
Alguns quilómetros volvidos e na berma da estrada alguém me pedia boleia. A
péssima aparência da pessoa amedrontou-me e hesitei entre o travar e acelerar.
E, seguramente, passei por aquele homem de cabelos compridos, completamente
encharcado, com a consciência a encontrar os habituais medos de circunstância: e
se fosse um gatuno? Não, dar boleia não, o seguro não contemplaria qualquer
acidente… nestas alturas temos que ser racionais… O meu egoísmo protegeu-se por
inteiro, a minha pessoa não protegeu ninguém.
Era
agora ultrapassado por uma ambulância do INEM que seguia atrás de um carro da
mesma organização. Mais alguns quilómetros e lá estava um brutal acidente.
Parei mais à frente e decididamente fui inteirar-me da dimensão da tragédia. Um
carro desgovernado veio embater num outro, que seguia em sentido oposto, tendo
ficado ambos abraçados numa medonha amálgama de latas. Foi uma ambulância com
uma senhora, depois outra com um rapaz, ainda novo, uma outra com um homem calvo
muito mal tratado, enfim, uma tragédia lavada e agravada pela forte chuva que
teimava em continuar.
Ser solidário |
Perto
de mim alguém chorava quase sem se notar. Era um choro sofrido de angústia que
vinha lá muito do íntimo de uma senhora que já não era criança e que ali junto
à estrada anonimamente se limitava à única coisa que lhe restava: chorar.
Perguntei-lhe:
— A
senhora vinha num dos automóveis?
Respondeu
que sim, lamentando a sua sorte:
—
Vou perder o meu filho e o meu marido, como posso eu resistir a tudo isto?
Percebi
então que aquela senhora ficou ali sem qualquer apoio e o marido e filho estariam
num hospital onde, naturalmente, ela gostaria de se dirigir para se inteirar do
seu estado de saúde. Desta vez, não hesitei e disse-lhe:
— A
senhora gostaria de ir ao hospital onde eles se encontram?
A
resposta foi imediata:
—
Lá, é que eu queria estar… — e chorando, intensamente, acrescentou: — Para ir
saber sabe-se lá o quê.
Aceite
a minha oferta, conduzi-a até ao hospital onde deixei uma pessoa aflita e muito
agradecida que continuava angustiada, mas mais perto dos seus.
O egoismo |
O
sentido da viagem para o hospital era exactamente o oposto àquele que havia
poucos minutos passados eu tinha feito. Sem hesitar procurei pelo senhor de mau
aspeto, de cabelos compridos desgrenhados ao vento e à chuva. Desta vez, já não
o vi. Alguém, diferente de mim, não ponderou e atuou sem dúvidas ou medos.
“Aprendi
que um homem só tem o direito de olhar um outro de cima para baixo para
ajudá-lo a levantar-se.” Gabriel Garcia Marquez.
Ser
ou não ser solidário?
No
nosso ADN podemos já conter essa herança. Mas é, essencialmente, no processo
educativo que vamos interiorizar ou não uma atitude solidária. Através dos
exemplos e ensinamentos em casa e na escola passamos a assumir uma postura
perante a vida que nos envolve e que acaba por nos caracterizar. A
solidariedade — predisposição natural para estender a mão ao nosso semelhante —
está, na sociedade, que todos os dias construímos, a tornar-se em algo quase
utópico. Os objectivos estabelecidos no ensino ou em qualquer concurso
determinam a exigência única de ser primeiro. A obsessão criada nos alunos
concorrentes mais legitima um egoísmo eficaz do que qualquer outra atitude. O
facto de haver legislação que nos inibe de “dar uma boleia”, ou de mexer num
corpo prostrado na rua, sabe-se lá porquê, transforma-se numa linha de conduta
que cada vez mais nos afasta da solidariedade.
Ser
solidário é um estado de alma e não a representação de qualquer papel a troco
daquilo que muito poucos ganham.
Ser
solidário é um estado de espírito sempre disponível para a partilha e para o
dar sem esperar receber.
Ser
solidário é a capacidade de apoiar quem já está na “fossa” e nunca em qualquer
circunstância exibir a sua intervenção.
Ser
solidário, caminha a passos largos para um conceito de loucura ou mesmo de
alguém a quem falta o juízo. Observemos o que já se está a passar com a atitude
altamente solidária do voluntariado.
Às vezes basta uma flor. |
A
introdução de acções de voluntariado num curriculum vitae de um estudante começou
a ser valorizada por universidades e outras entidades. Esta atitude quase que
de imediato foi completamente pervertida por empresários sem escrúpulos, que,
aproveitando-se da ideia, passaram a obter serviços não gratificados por parte
de gente jovem absolutamente exposta a chantagens vergonhosas e degradantes.
O
voluntariado, atitude de elevada nobreza, praticado por reformados, é hoje, em
muitos casos, aproveitado para evitar a contratação de profissionais.
A
subversão dos valores impera e um pouco apaticamente, com maior ou menor
passividade, todos nós nos vamos habituando a um novo quadro de valores que
repudiamos mas acabamos por aceitar.
A
solidariedade deverá fazer parte integrante do nosso quotidiano para que não
nos transformemos em seres aberrantes, detestáveis e horríveis.
Dissertar
sobre egoísmo é uma perda de tempo, é dar importância ao que nenhuma tem, é
algo abjecto que não merece tal distinção, é a antítese da vida que eu não
desejo seja uma opção daqueles seres pequeninos — as minhas netas — para a sua
vida.
A
solidariedade sim, vale tudo. “A solidariedade é o sentimento que melhor
expressa o respeito pela dignidade humana.” Franz Kafka estava cheio de razão.
José Luís Vaz
©2014,Aveiro,Portugal
Muitas intervenções solidárias poderiam ser desenvolvidas... Assim quisesse o PODER que a CIDADANIA fosse um valor! Mas um PODER CORRUPTO está muito mais seguro com cidadãos egoístas.
ResponderEliminarCada vez mais a sociedade nos “obriga” só para olhar o aspeto exterior da pessoa com quem nos cruzamos no nosso dia-a-dia.
ResponderEliminarO egoísmo ou também o medo ao reparar no homem de cabelos compridos e mau aspeto?
“Um PODER CORRUPTO está muito mais seguro com cidadãos egoístas”. Concordo plenamente com a Fernanda Rendeiro.
Um alerta para a nossa reflexão.
Gostei muito Zé Luís.
Falando de solidariedade, o narrador tem nota positiva. Foi cauteloso no primeiro caso (quem não seria?), mas um rebate de consciência ainda o levou a equacionar prestar ajuda mais tarde. Uma boa reflexão sobre o ser ou não solidário nas múltiplas situações que se nos deparam no dia a dia.
ResponderEliminarSe o ser humano é solidário ninguém o duvida; se utiliza essa solidariedade sempre em favor dos outros aí é que está o problema. Quantas vezes não encontramos pessoas que, a coberto da solidariedade, utilizam as suas energias para satisfazerem prazeres pessoais quantas vezes prenunciadores de ambições de prestigio pessoal. Este texto é uma reflexão sobre a solidariedade e a forma como ela se pronuncia numa sociedade em que o falso parece verdadeiro e a verdade se mascara a cada esquina.
ResponderEliminarÉ preciso alguém que nos faça pensar sobre valores que se vão perdendo. Gostei muito de ler este artigo.
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