segunda-feira, 26 de maio de 2014

Tanto ruído e silêncio

A manhã estava cinzenta e uma chuva miudinha não sabia a nada, nem mesmo a molhado. E afinal, incomodativamente, senti que o Inverno havia chegado mesmo sabendo que estávamos em Agosto e era suposto haver calor. Uma sensação esquiva de que qualquer coisa de anormal se estava a passar instalou-se no ontem que o amanhã via chegar.
Uma caminhada em direcção a nada
e a ninguém
Uma multidão de gente que se entrecruza e se acotovela num espaço desértico de ideias e projetos. Uma caminhada em direcção a nada e a ninguém. E no fundo, no mais recôndito sítio dos passos perdidos, sem tempo e sem graça, olhei o horizonte e fiquei-me por lá, perdida num lugar e num tempo em que comunicar e fazer silêncio se assemelhavam a situações idênticas, complementares e adicionais.
Encontraram-no na manhã seguinte. Já se haviam passado alguns dias, nem sei se semanas ou, digamos mesmo, meses.
Espanto atrás de espanto, foram desvendando de quem se tratava. Um homem de negócios, chefe de várias empresas, dono de um empório comercial e industrial invejável, conhecido no mundo da alta finança, rosto habitual em manchetes de jornais diários, comunicador apreciado nos meios intelectuais e políticos. Falava e encantava quem o ouvia ou os que com ele privavam.
Pai de quatro filhos, filho de pais especiais e núcleo central de uma família onde tudo girava à sua volta e tudo parecia em harmonia circular de acordo com a comunicação e o diálogo que sempre colocava nas suas relações.
Diz-se que contava com uma enorme multidão de amigos que se rendiam à sedução da
Diz-se que contava com uma enorme
multidão de amigos...
sua palavra e ao encanto da sua visão do mundo e do futuro. Não se submetia às crises nem ao imobilismo: movia-se em torno duma ideia nova ou dum projeto inovador. Se a luta era necessária víamo-lo na primeira fila, na linha da frente; se a negociação se impunha não a enjeitava, encabeçando um diálogo que tinha de dar frutos.
Um homem filho da comunicação e pai da arte de comunicar. Falava com os olhos, falava cm as mãos, com o rosto, com o corpo. Utilizava o sorriso como uma mensagem e o riso como um aviso, utilizava a gargalhada como um recado e as lágrimas como uma advertência, utilizava o silêncio como o matraquear dum teclado na folha em branco dum livro não começado ou duma palavra inacabada.
E um dia, ao sair de casa, fez silêncio dentro de si e, à sua volta, um ruído imenso iniciou um desabrochar que nunca tinha escutado – comunicar deixou de ser um movimento, comunicar passou a ser uma ilusão porque ninguém se ouvia nem ninguém se escutava, comunicar deixou de ser viagem a duas voltas com partida e retorno. Naquele dia entendeu que comunicar já não era partilhar, nem distribuir, nem dividir, nem escutar; comunicar era apenas ouvir-se, fazer-se ouvir, utilizar todos os meios para chegar ao topo ambicionado e subir, subir, subir…
O homem da comunicação parou e olhou-se num espelho: foi então que se apercebeu da sua existência como ser humano, pessoa visceralmente só no meio de uma multidão de gente
apertou a cabeça entre as mãos
que roda em círculos concêntricos e redondos. Cambaleou: apertou a cabeça entre as mãos – aqueles ruídos não se afastam, não o largam, não se desprendem. Trá-los agarrado ao corpo, são como uma praga, uma doença que se enxota mas não se vai. As teclas silenciosas que não param, os sons dos telefones, das campainhas, dos telemóveis que se sobrepõem e se entrechocam provocam mais ruído que palavras e esgotam-se num vaivém interminável e sem fim.
Nesse momento quis comunicar com o silêncio e apreciar um entardecer numa praia deserta ou um pôr do sol numa tempestade de areia.
Olhou o horizonte e deslumbrou-se perante a perfeição: ele que detestava os perfeitos, os que tudo fazem certinho e sem vírgulas, os que não emendam um salto ou uma queda, os que nada corrigem porque nunca erram… O som do seu silêncio pesou nos seus ombros e soube-lhe bem – o som do seu silêncio permitia-lhe ouvir o passo cadenciado das ondas numa manhã de maré-cheia, o assobio louco do vento brincando pelo meio das urzes e das giestas ou a chuva miudinha toldando uma noite de lua que teima em esconder-se numa nuvem que se desnuda numa praia deserta. O som do silêncio soube-lhe mesmo muito bem.
No dia seguinte tudo retomava o seu lugar mas nada estava como dantes. E foi assim que
nada estava como dantes
se pôs a imaginar qual o som do seu silêncio quando a comunicação se esgotava nas palavras ou quando as palavras dos seus amigos deixavam de circular. E este silêncio doeu-lhe duma forma muito profunda porque percebeu que já só tinha amigos virtuais que mal conhecia. E sofreu – pelos amigos perdidos, pelos que partiram e pelos que chegaram, pelos que julgava amigos e pelos que desperdiçara, pelos que desaproveitara e pelos que nunca chegaram a ser seus amigos.
E sofreu pela falta de comunicação que crescia ao seu lado e se espalhava por entre aqueles com que se acotovelava todos os dias dando dimensão a paredes que se erguiam para o distanciar dos outros. E sofreu pela distância que se avolumava e ganhava rios e vales e planícies sem fim. E sofreu pelo ruído que transformara a comunicação num balanço sem retorno e sem regressos, como uma gaivota que cruza o nosso imaginário e nunca mais vai voltar.
Estava triste consigo e com o mundo já não sabia comunicar. Já nem sabia sorrir ou até mesmo chorar, já não sabia se amanhã era noite ou se o dia estava para continuar.
E foi então que uma ideia começou a crescer e ganhou forma e pôs-se a voar. Numa folha em branco, em letras redondas, uma simples frase desabrochou, qual pétala de flor que se descerra num prado florido. Deitou-se no chão, enrolou-se sobre si mesmo, quase tocando os pés na cabeça, e ali ficou com um sorriso nos olhos e uma nascente a brotar.
Foi assim que o encontraram – na mão uma folha em branco e no centro apenas as palavras: esta é a hora do meu silêncio. Aproveitem e escutem. Esta foi a minha última forma de convosco comunicar! 


Albertina Vaz ©2014,Aveiro,Portugal

7 comentários:

  1. Agradeço muito as suas palavras, Albertina. Fico contente por ter conseguido transmitir tudo o que refere. Gostava que não fosse verdade mas, afinal, é.

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  2. A tua enorme capacidade de introspeção aliada à forma bela e poética com que utilizas e jogas com as palavras, permitiram este texto soberbo que analisa profundamente as contradições possíveis num ser humano.
    Quando sentires a necessidade de viver o teu silêncio, por favor, fá-lo escrevendo.

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  3. Mais um belíssimo texto a que já nos habituaste para reflexão. Infelizmente não é ficção. Caminhámos desenfreadamente para este abismo e quantos querem sair dele e não têm capacidade para o fazer ou como o fazer.
    Mas, afinal, sempre encontramos alguém que diz: BASTA.

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  4. cl@carretolages.com28 de maio de 2014 às 22:30

    Um ser complicado,algo prolixo, um náufrago na procura de um porto em que justifique. Perdido de contradições,nele não habita uma justificação para a sua acção.Diria mesmo um ser vazio,oco, que não tem ou perdeu o sentido de viver.Lindas imagens formais paa vestir uma pessoa nua.

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  5. Comunicação a um ritmo frenético - mensagens "que se sobrepõem e se entrechocam".... Um ser humano, perdido no oceano encapelado da descomunicação, tenta alcançar o porto do Equilíbrio, reencontrar-se a si mesmo e aos outros, agarrar o Sentido da Vida. Mais um excelente texto da Albertina a propor-nos uma séria reflexão sobre "o que realmente importa".

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  6. Gostei muito de ler este texto, Albertina. Quem dera que fosse ficção. Mas não. Quantas pessoas não conseguem sair da vida agitada que construiram ao longo da sua existência. No fundo, inúltil. Era bom que refletíssemos e parassemos a tempo.

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  7. De leitura leve como uma brisa, de mensagem profunda como o mar: eis mais um texto belíssimo com a assinatura de Albertina Vaz.

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