A
manhã estava cinzenta e uma chuva miudinha não sabia a nada, nem mesmo a
molhado. E afinal, incomodativamente, senti que o Inverno havia chegado mesmo
sabendo que estávamos em Agosto e era suposto haver calor. Uma sensação esquiva
de que qualquer coisa de anormal se estava a passar instalou-se no ontem que o
amanhã via chegar.
Uma caminhada em direcção a nada e a ninguém |
Uma
multidão de gente que se entrecruza e se acotovela num espaço desértico de
ideias e projetos. Uma caminhada em direcção a nada e a ninguém. E no fundo, no
mais recôndito sítio dos passos perdidos, sem tempo e sem graça, olhei o
horizonte e fiquei-me por lá, perdida num lugar e num tempo em que comunicar e
fazer silêncio se assemelhavam a situações idênticas, complementares e
adicionais.
Encontraram-no
na manhã seguinte. Já se haviam passado alguns dias, nem sei se semanas ou,
digamos mesmo, meses.
Espanto
atrás de espanto, foram desvendando de quem se tratava. Um homem de negócios,
chefe de várias empresas, dono de um empório comercial e industrial invejável,
conhecido no mundo da alta finança, rosto habitual em manchetes de jornais
diários, comunicador apreciado nos meios intelectuais e políticos. Falava e
encantava quem o ouvia ou os que com ele privavam.
Pai
de quatro filhos, filho de pais especiais e núcleo central de uma família onde
tudo girava à sua volta e tudo parecia em harmonia circular de acordo com a
comunicação e o diálogo que sempre colocava nas suas relações.
Diz-se
que contava com uma enorme multidão de amigos que se rendiam à sedução da
sua
palavra e ao encanto da sua visão do mundo e do futuro. Não se submetia às
crises nem ao imobilismo: movia-se em torno duma ideia nova ou dum projeto
inovador. Se a luta era necessária víamo-lo na primeira fila, na linha da
frente; se a negociação se impunha não a enjeitava, encabeçando um diálogo que
tinha de dar frutos.
Diz-se que contava com uma enorme multidão de amigos... |
Um
homem filho da comunicação e pai da arte de comunicar. Falava com os olhos,
falava cm as mãos, com o rosto, com o corpo. Utilizava o sorriso como uma
mensagem e o riso como um aviso, utilizava a gargalhada como um recado e as
lágrimas como uma advertência, utilizava o silêncio como o matraquear dum
teclado na folha em branco dum livro não começado ou duma palavra inacabada.
E um
dia, ao sair de casa, fez silêncio dentro de si e, à sua volta, um ruído imenso
iniciou um desabrochar que nunca tinha escutado – comunicar deixou de ser um
movimento, comunicar passou a ser uma ilusão porque ninguém se ouvia nem
ninguém se escutava, comunicar deixou de ser viagem a duas voltas com partida e
retorno. Naquele dia entendeu que comunicar já não era partilhar, nem
distribuir, nem dividir, nem escutar; comunicar era apenas ouvir-se, fazer-se
ouvir, utilizar todos os meios para chegar ao topo ambicionado e subir, subir,
subir…
O homem
da comunicação parou e olhou-se num espelho: foi então que se apercebeu da sua
existência como ser humano, pessoa visceralmente só no meio de uma multidão de
gente
que roda em círculos concêntricos e redondos. Cambaleou: apertou a cabeça
entre as mãos – aqueles ruídos não se afastam, não o largam, não se desprendem.
Trá-los agarrado ao corpo, são como uma praga, uma doença que se enxota mas não
se vai. As teclas silenciosas que não param, os sons dos telefones, das
campainhas, dos telemóveis que se sobrepõem e se entrechocam provocam mais
ruído que palavras e esgotam-se num vaivém interminável e sem fim.
apertou a cabeça entre as mãos |
Nesse
momento quis comunicar com o silêncio e apreciar um entardecer numa praia
deserta ou um pôr do sol numa tempestade de areia.
Olhou
o horizonte e deslumbrou-se perante a perfeição: ele que detestava os
perfeitos, os que tudo fazem certinho e sem vírgulas, os que não emendam um salto
ou uma queda, os que nada corrigem porque nunca erram… O som do seu silêncio
pesou nos seus ombros e soube-lhe bem – o som do seu silêncio permitia-lhe
ouvir o passo cadenciado das ondas numa manhã de maré-cheia, o assobio louco do vento brincando pelo meio das urzes e das giestas ou
a chuva miudinha toldando uma noite de lua que teima em esconder-se numa nuvem
que se desnuda numa praia deserta. O som do silêncio soube-lhe mesmo muito bem.
No
dia seguinte tudo retomava o seu lugar mas nada estava como dantes. E foi assim
que
se pôs a imaginar qual o som do seu silêncio quando a comunicação se
esgotava nas palavras ou quando as palavras dos seus amigos deixavam de
circular. E este silêncio doeu-lhe duma forma muito profunda porque percebeu
que já só tinha amigos virtuais que mal conhecia. E sofreu – pelos amigos
perdidos, pelos que partiram e pelos que chegaram, pelos que julgava amigos e
pelos que desperdiçara, pelos que desaproveitara e pelos que nunca chegaram a
ser seus amigos.
nada estava como dantes |
E
sofreu pela falta de comunicação que crescia ao seu lado e se espalhava por
entre aqueles com que se acotovelava todos os dias dando dimensão a paredes que
se erguiam para o distanciar dos outros. E sofreu pela distância que se
avolumava e ganhava rios e vales e planícies sem fim. E sofreu pelo ruído que
transformara a comunicação num balanço sem retorno e sem regressos, como uma
gaivota que cruza o nosso imaginário e nunca mais vai voltar.
Estava
triste consigo e com o mundo - já
não sabia comunicar. Já nem sabia sorrir ou até mesmo chorar, já não sabia se
amanhã era noite ou se o dia estava para continuar.
E
foi então que uma ideia começou a crescer e ganhou forma e pôs-se a voar. Numa
folha em branco, em letras redondas, uma simples frase desabrochou, qual pétala
de flor que se descerra num prado florido. Deitou-se no chão, enrolou-se sobre
si mesmo, quase tocando os pés na cabeça, e ali ficou com um sorriso nos olhos
e uma nascente a brotar.
Foi
assim que o encontraram – na mão uma folha em branco e no centro apenas as
palavras: esta é a hora do meu silêncio. Aproveitem e escutem. Esta foi a minha
última forma de convosco comunicar!
Albertina
Vaz
©2014,Aveiro,Portugal
Agradeço muito as suas palavras, Albertina. Fico contente por ter conseguido transmitir tudo o que refere. Gostava que não fosse verdade mas, afinal, é.
ResponderEliminarA tua enorme capacidade de introspeção aliada à forma bela e poética com que utilizas e jogas com as palavras, permitiram este texto soberbo que analisa profundamente as contradições possíveis num ser humano.
ResponderEliminarQuando sentires a necessidade de viver o teu silêncio, por favor, fá-lo escrevendo.
Mais um belíssimo texto a que já nos habituaste para reflexão. Infelizmente não é ficção. Caminhámos desenfreadamente para este abismo e quantos querem sair dele e não têm capacidade para o fazer ou como o fazer.
ResponderEliminarMas, afinal, sempre encontramos alguém que diz: BASTA.
Um ser complicado,algo prolixo, um náufrago na procura de um porto em que justifique. Perdido de contradições,nele não habita uma justificação para a sua acção.Diria mesmo um ser vazio,oco, que não tem ou perdeu o sentido de viver.Lindas imagens formais paa vestir uma pessoa nua.
ResponderEliminarComunicação a um ritmo frenético - mensagens "que se sobrepõem e se entrechocam".... Um ser humano, perdido no oceano encapelado da descomunicação, tenta alcançar o porto do Equilíbrio, reencontrar-se a si mesmo e aos outros, agarrar o Sentido da Vida. Mais um excelente texto da Albertina a propor-nos uma séria reflexão sobre "o que realmente importa".
ResponderEliminarGostei muito de ler este texto, Albertina. Quem dera que fosse ficção. Mas não. Quantas pessoas não conseguem sair da vida agitada que construiram ao longo da sua existência. No fundo, inúltil. Era bom que refletíssemos e parassemos a tempo.
ResponderEliminarDe leitura leve como uma brisa, de mensagem profunda como o mar: eis mais um texto belíssimo com a assinatura de Albertina Vaz.
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