sexta-feira, 17 de maio de 2013

Dor partilhada é dor aliviada


Revisitar os Provérbios e, com eles, desnudar o Presente

Conceição Cação

Era sábado. Aproximava-se o S. João. O sol, sorrindo no azul límpido do céu, convidava a um passeio.
−  Vamos às tasquinhas?
−  Boa ideia!
Mas antes uma passagem por Coimbra, as visitas no hospital.
...As visitas no hospital
Em passo apressado, ia lançando uns olhares furtivos às revistas, às flores, à exposição de pintura −  elementos inesperados, como que, num derradeiro esforço, para adiar aos nossos olhos os cenários mais pungentes.
Gratos aos elevadores, modernos e rápidos, atingimos um piso superior. E aí vamos nós pelo corredor fora. Sentada, junto da janela, a vista descansando nos perfis irregulares das serranias recortadas no horizonte, a Rita surpreendeu-nos com um amplo sorriso. Esclareceu:
− Comparada com as cirurgias que eu já fiz, (E eram tantas!) esta laparoscopia foi uma brincadeira. Conversámos longamente: dos filhos, dos netos, das férias que iam chegar, de tudo e de nada.
Na minha agenda mental figurava também a visita à Lara, uma jovem guineense. (“Que jovem era!”) Num dos pisos superiores, dirigi-me a uma enfermeira, perguntei-lhe pela Lara. Perante as hesitações dela, acrescentei: “de pele escura”.
−  Ah! Acho que é ali à frente, à direita.
"Foi tão bom ter vindo"
Fui avançando. Aqui havia mesmo hospital: membros engessados, cabeças enfaixadas,frascos de soro num gotejar interminável… E ais, muitos ais. E lá estava eu no quarto. A sobressair do branco gasto dos lençóis, um rosto negro. Mas não, não era a Lara. Era um pouco mais velha. Não recuei, ela estava sozinha, com expressão sofredora, eu estava ali, porque não tentar dar-lhe algum conforto? Senti-me inevitavelmente presa àquele olhar, difícil de definir −  não era de súplica, talvez de esperança e, ao mesmo tempo, de acolhimento. Encurtei a distância e, embora um pouco amedrontada pelo sofrimento, falei-lhe. Por entre a timidez do meu discurso, ela repetia, vezes sem conta: “Obrigada, irmã.” ,“Foi tão bom ter vindo.” , “Foi Deus que a enviou.”, “Já me sinto melhor”… Do pouco que me contou sobre ela, retive o facto de que se encontrava sozinha em Portugal e residia algures longe de Coimbra. Familiares e amigos ausentes. Estava, agora, mais serena; o corpo, torturado, parecia querer render-se ao cansaço. Afastei-me a custo. Teria lá ficado por muito mais tempo, mas a gestão das horas obrigava-me a despedir-me.
Fui visitar a Lara. A família a rodeá-la de carinho. Antes de adormecer profundamente por força do sedativo, dirigiu-me um sorriso tão doce que ficará para sempre guardado no meu álbum de suaves recordações. (Poucos dias depois, a Lara partiu.)
Antes de descer, ainda passei pelo quarto da minha nova amiga. Parecia dormir tranquilamente. Ela foi o assunto da minha conversa com a Rita. Precisava de partilhar a minha emoção que já não se continha no peito e ameaçava revelar-se em copiosas lágrimas.
Despedi-me, com a voz embargada.
Quantas horas teriam passado? Não importava.
Precisava de lhe dar muito mais,
ou de receber?
O caminho para a Figueira foi feito em silêncio. Dentro de mim, um desejo quase irreprimível de regressar àquele quarto. Sentia-me em dívida: precisava de lhe dar muito mais; ou de receber? Profundas reflexões impunham-se à minha mente – o consolo que podemos oferecer aos que sofrem, o valor dum abraço, de palavras singelas, dum simples sorriso, dum gesto de ternura… Não, doravante, eu não poderia gastar nenhum do meu tempo inutilmente. Iria estar disponível para aliviar os que quisessem partilhar comigo a sua dor. O meu comodismo estava visivelmente desinstalado.
Lá estavam as tasquinhas e os petiscos, habitualmente tão apetecidos. Mas não desta vez; até o arroz-doce da Maria tinha agora a insipidez da irrelevância. As conversas dos amigos soavam a fútil porque o meu pensamento estava contigo, minha amiga! Só o Mondego, ali ao lado, parecia compreender o meu alheamento, a minha angústia – vi-o, prestes a confundir-se com o mar, a tentar refluir o seu curso, a oferecer-se para regressar ao Choupal, escoltando-me naquela jornada de afeto.
O sonho foi vencido pela parede insensível da distância, do tempo, da realidade. Mas comigo ficou a tua grande lição de coragem, de gratidão, de fé… Bem hajas!
Minha irmã, pele cor de amora silvestre, onde quer que te encontres, vai para ti esta homenagem.


7 comentários:

  1. Aqui está um assunto que me deixa sempre desconfortável. Não sei se é comodismo, mas não consigo desinstalar a incapacidade de comunicar em situações destas.Os hospitais são espaços de tanto sofrimento... Esta minha incapacidade será real ou uma defesa?
    Talvez textos como este me ajudem a responder.

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    1. Conhecendo eu tão bem a autora deste comentário quero dizer-lhe que se trata apenas de uma defesa. O voluntariado é uma actividade que nos dá muito mais do que aquilo que nós entregamos. O sofrimento dos hospitais não é nada comparado com o sofrimento da solidão de muitos que por lá permanecem durante dias, meses, anos e dos que são abandonados por lá. Às vezes basta uma mão entrelaçada, uma festa, um sorriso, um partilhar de memórias para que o dia de uma pessoa seja diferente, E isso é só mesmo o que interessa: um dia diferente é sempre um dia novo!

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  2. Pois é São, com pequenos gestos podemos fazer a felicidade de alguém. Por vezes basta um sorriso, um pequeno toque e a pessoa que recebe sente um conforto indiscritível. É tão boa a sensação que sentimos ao dar uma migalha de carinho a alguém. Bem hajam os que o fazem. Fez-me pensar.

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  3. como julgo compreender a autora/narradora!
    é que eu também já fiz voluntariado , não em hospitais mas num lar de idosos.
    era tão gratificante o sorriso calado quando comunicava com algum deles...
    o voluntariado faz-nos compreender e aceitar as duras realidades da vida, que nós não comandamos.
    fazer voluntariado é uma forma concreta de amor ao próximo.
    gm

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  4. A vida é realmente uma sucessão de factos que se entrelaçam e se entrecruzam sem muitas vezes nos darmos conta. Uma mão que se estende a um desconhecido, que sofre em solidão é, nós bem o sabemos, mais uma oferta do que uma dádiva. E depois torna-se quase viciante - não há nada que se compare a um sorriso que se arranca depois de muitas horas de cumplicidade. Transmitir esse sentimento desta forma poética é uma arte que poucos conseguem manejar. E a São fá-lo duma forma invejável. Muito, muito bonito.

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  5. O valor de uma palavra de um toque ou de um sorriso... A solidão é o estado mais desprezível a que se pode conduzir um ser humano. A atitude solidária invertendo o longe/perto cria uma intimidade do tamanho do mundo! Tenho muito respeito pelo voluntariado convicto: despretensioso, silencioso,sem qualquer tipo de protagonismo.

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  6. Se muita gente que passa a vida a queixar-se, vivesse alguns dos dramas que se vivem nos hospitais, nos lares, em algumas casas, (muitas), talvez deixassem de se queixar tanto da vida e partissem em visitas a alguns destes locais para um gesto de carinho, uma palavra amiga, um sorriso. Estou convencida de que se sentiriam mais felizes e sem tempo nem vontade para se queixarem.
    È bom que textos destes apareçam para acordar algumas consciências.

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