Revisitar
os Provérbios e, com eles, desnudar o Presente
Júlia Sardo
Também fui revisitar os provérbios e tentar
tirar deles alguma lição para os dias que vivemos.
Como é costume, vou à escola buscar os meus
netos, no fim do tempo letivo. Está um dia de chuva, terrivelmente dolorosa de
aguentar. É o tipo de chuva miudinha, que só aborrece e faz uma humidade
horrível.
Quem dá sugestões? |
Quando chegámos a casa, e depois de
merendarem, fizeram os trabalhos de casa; para não irem logo para a televisão,
como é hábito, planeámos um passatempo diferente.
Então eu perguntei-lhes:
– Quem dá sugestões?
O Martim foi o primeiro a lembrar-se de um
lugar que me é muito querido.
– Ó, vovó, e se fôssemos para o quarto da
escada fazer alguma coisa? Estás sempre a dizer que ele te traz belas
recordações…
– Boa. Diz o Levi.
– Ó meninos, eu sugiro ainda mais; por que
não vamos até ao sótão bisbilhotar alguma coisa? Pode ser que tenhamos algumas
surpresas.
– Ó, vovó, e consegues subir as escadas?
– Vou tentar subir degrau a degrau,
agarrando-me ao corrimão.
– O que é o corrimão? Pergunta o Levi.
– É aquela parte de madeira onde as pessoas
se podem segurar – explica o Martim.
Lá subimos devagar, sendo eu a última. Quando
chegámos, foi uma explosão de alegria.
Baús e malas de cartão antigos |
Como só tínhamos a luz da claraboia, foi um
pouco difícil começarmo-nos a habituar à penumbra.
Depois de nos termos habituado, foi um tal
descobrir baús e malas de cartão antigas.
– Ó, avó, posso abrir esta mala para ver o
que está dentro?
– Claro que podes. Tem cuidado ao abrires, pelo
tempo que estiveram fechadas, deve ser difícil.
– Olha, tantas carteiras e chapéus de senhora
tem esta mala; de quem eram?
Levava um chapelinho a condizer com os sapatos |
– Eram da minha avó, outras eram minhas…
sabem filhos, no tempo em que eu namorava, quando ia a algum casamento ou até a
alguma festa mais chique, levava um chapelinho a condizer com os sapatos e com
as luvas.
– Então, e se estivesse muito calor também
levavas luvas, vovó? – perguntou o Levi.
– Levava, só em vez de serem de pelica eram
de renda.
– Pelica? O que é isso? – tornou a perguntar.
– Era uma pele muito fininha, que
aproveitavam do resto das peles dos animais que caçavam e serviam para fazer
casacos para as senhoras.
– Pobres animais; Então matavam-nos para
servirem de luxos para certas pessoas?
– Infelizmente era mesmo assim, filho. Agora
já é proibido fazer tal barbaridade.
– Olha, nesta mala estão tantas roupas
antigas.
Era com roupas antigas que jogávamos o Carnaval |
– Sabem, nesse tempo, a vida era difícil e
então guardava-se tudo o que não estava a ser utilizado, porque podia vir a ser
preciso. Era com roupas mais antigas que nós jogávamos o carnaval ou até
brincávamos às senhoras. Os mais pequenos vestiam a roupa de adulto e as
meninas calçavam os sapatos altos e punham um chapelinho na cabeça. Quantas
eram as vezes que se torciam os pés e era cada tombo…
– Ó, avó, estão aqui coisas tão bonitas…
podemos cá vir mais vezes?
– Podem vir quando quiserem. Já está a ficar
um pouco escuro. Vamos para baixo e noutro dia, em que não haja sol, vimos para
o sótão recordar as coisas do tempo da avó.
– Vamos arrumar tudo Levi.
– Gostámos tanto de ver estas fatiotas e
gostámos de ver a tua cara de alegria ao explicar-nos o que viveste, como as
pessoas se vestiam e como eram poupadas.
Mas de certeza não ficaste só por mostrares aos teus netos as tuas reliquias antigas. E quantas recordações não estão em cada chapéu, em cada vestido...
ResponderEliminarE a nossa vida também é composta destes momentos...
E também são estes momentos que nos fazem bem, apesar de serem vividos com uma certa nostalgia.
Obrigada Julinha por este bocadinho
Sempre que o Evoluir publica um trabalho da Julinha fico deliciada com a forma carinhosa e afável como nos transmite recordações, memórias e lembranças. Concordo com a Maria quando diz que também lhe deve dar um prazer enorme recordar estas vivências e ter a felicidade de o poder fazer com os seus netos. Vamos Julinha, venha daí outro!
ResponderEliminarPara além do prazer que sentiste, quer a reviver quer a escrever, houve ainda uma grande aprendizagem para os teus netos: eles,de certeza, ficaram a conhecer-te melhor e a dar valor ao saber que a vida vai acumulando em cada pessoa. Que boa interpretação deste ao provérbio!
ResponderEliminarRecordar outros tempos... Outros hábitos... Outras vivências... A palavra escrita projeta para sempre uma realidade. Neste lindo texto damos-nos conta de que refere uma época sem o consumismo desenfreado que nos asfixia.
ResponderEliminarAdorei, Julinha. Senti-me transportada ao sótão dos meus avós maternos. Quantas peças de teatro lá representámos! Os fatos antigos, adereços inusitados e muita muita imaginação! Também eu tenho um sótão que os meus netos gostam de explorar com a emoção de quem abre um cofre mágico onde estão guardados os tesouros familiares.
ResponderEliminarJulinha, só tu para me fazeres reviver a minha juventude, o brincar às casinhas, vestir roupa e sapatos altos de mãe, mas, também o vestir do que considerávamos chique para ir aos casamentos. Era uma festa, que bom que pudeste dar a conhecer aos teus netos como vivíamos na nossa meninice. Parece que agora as coisas já não têm o mesmo valor.
ResponderEliminarObrigada por este bocadinho.