DORES TOPETE
Vou contar-vos algumas
histórias de que sou, juntamente com a minha mãe e irmão, os protagonistas.
A minha mãe vive em casa
dela com o meu irmão solteiro e sessentão. Felizmente que o meu irmão existe, a
não ser assim, a minha mãe teria que sair do seu ninho, como ela tanto gosta de
chamar à sua casa.
Estou com ela todos os dias |
Estou com ela todos os dias,
preparo-lhe a medicação que é muita, escolho a roupa que veste, faço as
compras, levo-a a passear, a lanchar, ao médico, trago-a para minha casa sempre
que ela aceita vir, enfim, tento fazer tudo aquilo de que ela necessita. O meu
irmão tem, durante a semana, uma missão espinhosa: prepará-la para sair de
casa, fazer o comer, trabalho que faz com gosto, conseguir que ela coma, o que
é sempre uma odisseia, fazer-lhe companhia até à hora de deitar, e vigiar o seu
sono durante a noite.
Aos fins de semana, vem,
ainda que contrariada, para minha casa, mas tenho que trazer o meu irmão, ou
levá-la ao restaurante a almoçar com ele.
Porque se recusa a deixar o
filho, entende que tem que tomar conta dele, que o mundo está muito perigoso
para um rapaz sozinho. No intuito de dar algum descanso ao meu irmão, está,
desde algum tempo, num centro de dia junto a casa e onde conhece todos os
utentes.
— Minha filha, não quero ir
mais para o centro. Não estou lá a fazer nada, fico sentada todo o dia. Preciso
de ir passear, visitar as minhas amigas, ir às compras. Já te disse, não vou
mais.
— Mãezita, estás sentada
porque te recusas a fazer ou a assistir às atividades, se tu não consegues
andar sozinha, como é que queres ir às compras?
Não vou às compras,eu? |
— Não vou às compras,
eu? Então quem é que governa a minha
casa? És tu não? Então não sou eu que governo e limpo a casa?
— Glórinha, tu é que te
esqueces, porque tens a cabeça um bocadito fraca, então não sou eu e o meu
irmão que tratamos de ti? Então, quando não andas de carro comigo, não é o meu
irmão que te passeia em cadeira de rodas?
— O QUÊ? Tu és capaz de
dizer que Deus não é Deus. Ai valha-me a Nossa Senhora e a Sua mãe Maria
Santíssima, daqui a pouco até estás a dizer que tu e o teu irmão é que me lavam
e vestem, não?
— Mãezinha, não fiques assim
arreliada, olha o teu coração, tens que reconhecer que estás cansada e
precisamos de te ajudar.
— E tu, meu menino, estás a
fazer pandan com ela, mas põe-te a
pau, que eu ainda mando na minha casa… Ao que eu cheguei, se isto é assim e eu
ainda sou independente, tenho a minha liberdade e o meu dinheiro… Se tivesse
que depender dos filhos não sei o que seria.
— Pronto, mãe, tens razão,
desculpa, vamos falar de outras coisas.
— Mas não te esqueças, que
quem manda sou eu, e eu não vou mais para o centro.
— Glórinha, vamos levantar,
tens que te arranjar e tomar o pequeno-almoço.
Não me levanto e não me levanto |
— Não me levanto, quero
estar na cama, tenho noventa anos, tenho todo o direito de não me levantar.
— Anda mãe, são quase nove
horas, daqui a pouco vem a senhora buscar-te para ires fazer o tratamento e tu
não tens noventa anos.
— Já te disse, não me
aborreças, não me levanto e não me levanto.
— Mana, é melhor vires cá a
casa, a mãe não se quer levantar, a carrinha já passou e vem mais tarde no fim
da volta para a buscar.
— Mãezinha, bom diaaaa. Então, vamos levantar?
— Que estás aqui a fazer?
Foi o teu irmão que te chamou, deixa estar meu menino que depois fazemos
contas. E tu escusas de vir para cá mandar, estou muito bem deitada. Não vou
para o centro, vai para lá tu se gostas assim tanto.
— Tem paciência, vamos a
levantar, o médico disse que não podes estar muitas horas deitada. Ajuda aqui
mano, segura num braço que eu seguro no outro.
— Ó minha mãezinha querida
que morreste tão cedo, manda-me buscar, eu quero morrer, já não estou a fazer
nada neste mundo, deixem-me, Deus vai-vos castigar pelo que me estão a fazer.
Quando tiverdes a minha idade, é que ides saber dar valor ao que me fazem.
— Mãe, não estejas assim,
vês que já estamos as duas a chorar, eu gosto tanto de ti, mãezinha, anda, tu
sabes que o que mais te custa é sair da cama, depois ficas bem.
Pronto, vês, estás tão
bonita, tu sabes que tens que fazer os aerossóis e fazer um pouco de exercício,
logo vou buscar-te mais cedo e vamos lanchar os três onde quiseres.
— Bom dia, D. Glória, está
um dia de sol, a senhora vai gostar de ver o tempo lá fora. Está tão bonita, tem
aqui os seus filhos tão seus amigos, olhe que não há muitos assim…
— Bom dia minha senhora, eu
sei que eles são meus amigos, mas eu estava tão bem na cama…
Assaltaram a casa e levaram tudo |
— Vem depressa cá a casa que
a mãe está num berreiro, ouves, estás a ouvir os gritos dela a chorar? Diz que
lhe assaltaram a casa e que lhe roubaram tudo. Ainda acorda a vizinhança, são
três da manhã. Já pôs as gavetas de pernas para o ar, olha, eu não sei, vem cá
tu, vem cá tu.
— Então mãe, o que se passa?
São três da manhã, não chores assim que até estás com dispneia, isso faz-te
muito mal ao coração.
— Filha, filha, estou
desgraçada, assaltaram a casa e levaram-me tudo, as cadernetas, o dinheiro, os
meus documentos, tudo. Estou pobre que nem Jó, minha filha.
— Mãe, o meu irmão já te
disse, eu é que tenho isso tudo guardado, o BI, a caderneta, o dinheiro. Foste
tu que me mandaste guardar, porque sou eu que lido com isso. Olha como tu
estás, o Dito já te foi fazer um chá, acalma-te.
— És tu que tens minha filha?
A mãe não sabe o que faz, devo ter sonhado, desculpa por teres vindo a esta
hora com o teu marido, desculpa minha filha.
Até amanhã! |
— Não peças desculpa, fico
tão incomodada quando me pedes desculpa. Gosto muito de ti, mãezinha, o
importante é que estejas bem. Descansa agora, anda, dorme que eu fico mais um
bocadinho até adormeceres.
— Deus te proteja minha
filha, até amanhã. Tens uma mãe que já não tem cabeça nenhuma, e só vos dá
trabalho.
A memória é, de tudo aquilo que vamos perdendo ao longo da nossa vida, talvez o bem mais precioso e aquele a que nos vamos agarrando quando a força fisica nos vai abandonando. Nada melhor do que recordar os momentos bons, os menos bons e os maus. Quando nos damos conta de que essa capacidade se esvai é como se parte da nossa vida se fosse perdenndo aos pouquinhos. Ser cuidador de um doente de Alzeimer é uma tarefa para além de árdua, esgotante. E tu soubeste neste texto transmitir-nos com um realismo muito grande o dia a dia duma familia que sabe levar a bom termo uma tarefa hercúlea. Força, Dores, vai ser cada vez mais difícil, mas tu vais conseguir!
ResponderEliminarA minha homenagem a uma filha que não se esquece de o ser.
ResponderEliminar"Deus te proteja, minha filha". Apesar da demência, o amor ainda permanece no coração da mãe. Que estas palavras ternas e a tua fé te ajudem a continuar a missão tão difícil, que desempenhas com tanto carinho e dedicação. Admiro-te, Dores. Coragem!
ResponderEliminarPorque é que uma MãE pensa que tem de cuidar sempre dos seus meninos? Sim, porque eles são sempre meninos para as mães. Eu não tive essa experiência, Dores, que deve ser de ficar estoirada. Mas felizmente que a tua, é uma mãe de sorte. Tem uns verdadeiros filhos, que tudo fazem para o bem estar dela. Não desanimes minha amiga.Muita força.
ResponderEliminarCoragem de filha que dá voz a um tema que tem de ser assumido por todos. Quantos não têm os filhos por perto, quantos não têm os filhos esgotados... Mas como eles precisam também de carinho e acompanhamento. Obrigada, Dores, pela pertinência deste tema.
ResponderEliminarÉ o rosto e a alma da fragilidade humana exposta numa narrativa de verdade, muito viva e acutilante
ResponderEliminarAcabei de ler uma verdade nua e crua do nosso quotidiano. Felizmente para a tua mãe que tem os filhos por perto e, muito para além disso, sabem amar e retribuir. Foi a tua mãe que um dia te deu à luz, te ensinou a falar, a caminhar, te deu amor e te orientou para seres o ser humano que és hoje. Dependeste dela, hoje é ela que depende de ti e tu sabes dizer: presente, apesar de todos os teus problemas de saúde. É uma tarefa árdua, mas as forças não te vão faltar, tenho a certeza disso.
ResponderEliminarQuanto amor, quanta dedicação, incondicionalmente mãe!
ResponderEliminar....incodicionalmente filha/os!
Força e muita coragem na caminhada. Que Deus vos ajude!
Lídia Araújo