José
Luís Vaz
— Vocês são loucos! A vossa
presença é a maior dádiva que me poderia acontecer?
— Abre, abre, abre…
Não acredito, isto é demais... |
— Não acredito, isto é de
mais… Então, mas serei alguma menina para receber prendas? Um computador?...
Um enorme salão acolhia uma
grande família a que outra se lhe juntara, não menos, numerosa. Festejavam os
sessenta e cinco anos da avó, da mãe, da irmã, da tia, da esposa e, acima de
tudo, da amiga de todos e de muitas outras e outros a quem o sangue não fez
falta para fazer amizade. A “cilada” bem preparada pelas amigas com a
conivência de filhos e marido deixou a homenageada completamente dividida entre
a perplexidade da surpresa e os momentos que haveriam de ficar gravados naquele
cantinho das óptimas recordações. As amigas, conhecendo um dos seus prazeres —
escrever — surpreenderam-na com um pequeno portátil que lhe permitiria “dar ao
dedo” e “agarrar o momento” sempre que a sua “veia” lho exigisse. Mas a
surpresa não se ficou por aqui… O abre, abre, abre, tinha uma intenção muito
especial. Aquele ambiente de trabalho estava repleto de ícones. Todos,
especialmente, as amigas que lho tinham oferecido, aguardavam ansiosas pela
reacção da sexagenária ao descobrir o recheio do seu novo “brinquedo”. Era uma
prenda de grande afectividade preparada com o sentimento profundo da amizade,
da partilha do prazer, da felicidade adivinhada de quem a ia receber. E clicou
“…Nunca tive muitos amigos…” Não, dizia ela:
Florbela Espanca |
— Não me posso queixar… Mas
que maravilha, isto é de Florbela Espanca! Ai, desculpem mas não resisto, vou
ter que ler. Sempre tive medo da solidão mas a vossa presença é o testemunho
vivo de que contra ela tenho lutado. Deixa-me ver este, “A amizade consegue ser
tão complexa…”, é bem verdade e com alguns de vocês, quando vos conheci, nunca
imaginei que algum dia pudesse criar algum tipo de cumplicidade. Delirante ia
falando, ia lendo, ia comentando… E de facto, aqueles olhos brilhavam, como se
fosse possível a vida andar para trás.
— Não conhecia este poema.
“Autor desconhecido”!
— Meus grandes amigos, como
vos estou grata. Este trabalho está uma delícia. Olhem, desculpem, mas agora
não consigo parar e permitam-me o à-vontade, quase me apetecia que todos se
fossem para desfrutar. Estou a brincar!... “Mal nos conhecemos inaugurámos a
palavra amigo!...”Amigo” (recordam-se, vocês aí, escrupulosos detritos?)
Alexandre O'Neil |
— O nosso grande O Neil…, “Amigo é o contrário
de inimigo! “Amigo” é o erro corrigido…”, profundo, sempre profundo! As garras
da hipocrisia espreitam frequentemente o fenómeno da amizade… Se não estou em
erro, acho que Ivone, não me lembro agora do apelido, disse: “A amizade é o
mais belo afluente do amor…” e esta penso ser uma óptima resposta para os tais
detritos do nosso Alexandre O’Neil. E cá vou eu, que coisa linda, não conhecia
este: “Até aqui viajámos juntos…Que nossas despedidas sejam um eterno
reencontro”. Também de autor desconhecido. Hoje sinto mesmo isto. Viajei junta
com uns e outros em épocas diferentes mas é uma felicidade poder ter este dia
tão rico em que partilho a vossa amizade e tenho o privilégio de a dividir com
os meus queridos familiares. Isto é incrível, vem mesmo a propósito. “Amigos
verdadeiros são os que suportam a tua felicidade!” do Padre Fábio de Melo. ”Um
dia a maioria de nós irá separar se”. Uma ternura, Vinícius, sempre belo! Mas
atenção, nós, já não temos idade para nos separar, seria muito penoso e aliás
estou a lembrar-me, exactamente, de um poeta também brasileiro, Augusto Branco,
que dizia mais ou menos assim: “Fiz amigos eternos e amigos que nunca mais vi…”
Não quero perder-vos, meus amigos.
O riso geral quase intimidou
a aniversariante, sem perceber a razão de tal risada. Alguém lhe indicou um dos
ícones…
Bertold Brechet |
— Mas vocês colocaram aqui
para mim os mais bonitos poemas sobre amizade? Sois maravilhosos. O grande
Bertold Brechet, “…como eu não me importei com ninguém, ninguém se importa
comigo”. Não é, felizmente, o nosso caso, mas é o penoso prémio da indiferença,
do individualismo, da mania da importância.
— Mãe, não seria de fazer um
intervalo, as pessoas querem petiscar?
Acariciando o filho,
disse-lhe:
— Sabes, a “Amizade vai para
além do tempo”, dizia Vinícius de Morais, e agora o tempo é de “curtir”, como
vocês dizem. Ó filho diz a todos para comerem o que quiserem, eu por mim, estou
a alimentar-me muito bem. Não te preocupes porque eles todos já me conhecem:
está a acontecer o que eles provocaram!
— Ó mulher, eles não te
ligam, já estão todos a comer e a beber. Nem sequer te dão resposta.
— “…Deles não quero
resposta, quero o meu avesso…” Sabes quem disse isto num lindíssimo poema?
Gargalhada geral… De
imediato virou o olhar para o ecrã e procurou o que percebeu lá estar, Oscar
Wilde. O brilho daqueles olhos expressivos, felizes, aparecia agora humedecido,
como a neblina fresca da manhã numa flor que se quer mostrar. “…O amigo: um ser
que a vida não explica…”
Vinicius de Moraes |
— Não, nisto não estou de
acordo com Vinícius…
Uma amiga ao lado dela
interpelou:
— Não conheces esse? Isso é
só uma passagem. Lê-o todo e irás entender.
— É belo, sim senhor. A
minha memória já não é o que era, é um pouco como os amigos de Eugénio de
Andrade. Recordo dum poema dele “…uns iam, outros vinham,…”. Ora recordo, ora
esqueço… O importante é viver, com poesia, tanto melhor. Por isso mesmo me
refugio muitas vezes no silêncio indispensável às leituras enriquecedoras dos
nossos poetas. Tenho a felicidade de ter feito ao longo da vida muitos amigos
que tive o privilégio de não perder. Osvaldo Montenegro aborda, como ele sabe,
esta temática num dos seus poemas — “…quantas pessoas que você amava, hoje acredita
que amam você?”. Recordar o passado, viver intensamente o presente, para
construir o futuro é uma máxima que se adapta muito bem àquilo que somos e
desejamos ser. Preservar a vida antes que ela se transforme em ruínas. Em
“Ruínas da amizade”, Augusto Branco registou a profundidade com que uma amizade
pode perdurar perante um grande amor acabado. Esta grande alegria que nunca
irei esquecer, só foi possível porque somos todos inequivocamente amigos. Como
disse Quintana, “…Não te abras com teu amigo, que ele outro amigo tem…”, e
também tenho a certeza que a vossa presença é voluntária e amiga. Por tudo isto
sou uma mulher feliz. “Abençoados os que possuem amigos, os que os têm sem
pedir”, dizia Machado de Assis e com muito orgulho digo eu também. Com toda
esta conversa, que muito agradável me é, estou a descuidar esta procura
deliciosa que me proporcionaram.
Ser seu amigo já é um pedaço de céu |
— Talvez vá começar a ser
menos interessante. Dizia uma das amigas mais comprometidas com a surpresa dado
que a homenageada estava farta de fazer citações que iria encontrar a seguir.
Não tinha sido por acaso que tinham decidido decorar a prenda com poesia… O
tempo passava-se e a hora do regresso às suas vidas, às suas famílias, impunha
mais uma despedida que sempre se repete com a ideia no reencontro. Antes que
isso acontecesse, a aniversariante deslocou-se a uma pequena sala onde
habitualmente se isolava para ler e após alguns segundos regressou com uma
folha na mão.
— Ficar-vos-ei grata, a
todos, até ao fim dos meus dias pelo lindo dia que me proporcionaram. Estou
mesmo emocionada e não tenho palavras para vos agradecer. Lembrei-me de um
poeta que descobri, há meia dúzia de dias, Chico Xavier, não o conhecia, e
antes que a memória me atraiçoasse, vou ler um pequeno extracto de um seu poema
dedicado aos amigos. “…Mas, se eu morrer antes de você, acho que não vou
estranhar o céu. Ser seu amigo, já é um pedaço dele…”
Um respigar de citações à volta dum grande afecto
ResponderEliminarUm diálogo feliz entre poetas consagrados, a aniversariante e os amigos. Amizade traduzida em gestos de sentido profundo. Um texto pleno de afeto.
ResponderEliminarUm texto onde se denota um grande interesse pela poesia e pela leitura de grandes autores.
ResponderEliminarA aniversariante deve estar feliz por ter amigos que sabem do que gosta e lhe proporcionam momentos de bem estar.
Parabéns ao autor do texto pela forma como o concebeu.
Diálogos impossíveis diriam alguns mais avisados, bons conhecedores da poesia e dos nossos poetas! Com esta publicação conseguiste tornar possivel o impossível e demonstrar que a amizade está no calor dos afetos, nas páginas dum livro e até no monitor frio e impessoal de um computador. Excelente prenda! Eu ía gostar muito de a receber
ResponderEliminar"Se a tanto me ajudar o engenho e a arte" Camões teve engenho e arte de sobra, mas logo nos avisam que foi grande, mal o conhecemos.
ResponderEliminarMas o autor deste texto não avisa ninguém: tem engenho e sensibilidade que baste, trata qualquer tema por tu, propõe-nos amizade e dá-nos poesia.
Acabei de descobrir: o que ele propõe é que a amizade são poemas que vão acontecendo na vida.
Gostei, José Luís.
AMIZADE
ResponderEliminarA amizade
é o mais belo afluente do amor,
ela ajuda a resolver,
com paciência,
as complicadas equações
da convivência humana.
A amizade
é tão forte quanto o amor,
ela educa o amor,
sinalizando o caminho da coerência,
apontando as veredas da justiça,
controlando os excessos da paixão.
A amizade
é um forte elo que une pessoas
na corrente do querer.
Amizade
é cola divina,
cola demais,
pode doer.
A amizade
tem muito mais juízo
que o amor,
quando ele se esgota
e cisma de ir embora,
ela se propõe a ficar,
vigiando o sentimento que sobrou.
Ivone Boechat
Boa definição de amizade: sentimento forte, mas sereno.
EliminarÓtima surpresa na "surpresa" onde o apelido da autora nem sequer havia sido referido. A "amizade" - por inteiro - publicada pela autora é um privilégio gostoso para mim e para este blogue. Descobriu-nos, conforme algures selecionei o seu poema na minha pasta de poesias preferidas,e nós ficamos muito satisfeitos com isso. Seja bem-vinda e surpreenda-nos sempre que entender.
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