sexta-feira, 24 de maio de 2013

A SURPRESA

José Luís Vaz


— Vocês são loucos! A vossa presença é a maior dádiva que me poderia acontecer?
— Abre, abre, abre…
Não acredito, isto é demais...
— Não acredito, isto é de mais… Então, mas serei alguma menina para receber prendas? Um computador?...
Um enorme salão acolhia uma grande família a que outra se lhe juntara, não menos, numerosa. Festejavam os sessenta e cinco anos da avó, da mãe, da irmã, da tia, da esposa e, acima de tudo, da amiga de todos e de muitas outras e outros a quem o sangue não fez falta para fazer amizade. A “cilada” bem preparada pelas amigas com a conivência de filhos e marido deixou a homenageada completamente dividida entre a perplexidade da surpresa e os momentos que haveriam de ficar gravados naquele cantinho das óptimas recordações. As amigas, conhecendo um dos seus prazeres — escrever — surpreenderam-na com um pequeno portátil que lhe permitiria “dar ao dedo” e “agarrar o momento” sempre que a sua “veia” lho exigisse. Mas a surpresa não se ficou por aqui… O abre, abre, abre, tinha uma intenção muito especial. Aquele ambiente de trabalho estava repleto de ícones. Todos, especialmente, as amigas que lho tinham oferecido, aguardavam ansiosas pela reacção da sexagenária ao descobrir o recheio do seu novo “brinquedo”. Era uma prenda de grande afectividade preparada com o sentimento profundo da amizade, da partilha do prazer, da felicidade adivinhada de quem a ia receber. E clicou “…Nunca tive muitos amigos…” Não, dizia ela:
Florbela Espanca
— Não me posso queixar… Mas que maravilha, isto é de Florbela Espanca! Ai, desculpem mas não resisto, vou ter que ler. Sempre tive medo da solidão mas a vossa presença é o testemunho vivo de que contra ela tenho lutado. Deixa-me ver este, “A amizade consegue ser tão complexa…”, é bem verdade e com alguns de vocês, quando vos conheci, nunca imaginei que algum dia pudesse criar algum tipo de cumplicidade. Delirante ia falando, ia lendo, ia comentando… E de facto, aqueles olhos brilhavam, como se fosse possível a vida andar para trás.
— Não conhecia este poema. “Autor desconhecido”!
— Meus grandes amigos, como vos estou grata. Este trabalho está uma delícia. Olhem, desculpem, mas agora não consigo parar e permitam-me o à-vontade, quase me apetecia que todos se fossem para desfrutar. Estou a brincar!... “Mal nos conhecemos inaugurámos a palavra amigo!...”Amigo” (recordam-se, vocês aí, escrupulosos detritos?)  

Alexandre O'Neil
— O nosso grande O Neil…, “Amigo é o contrário de inimigo! “Amigo” é o erro corrigido…”, profundo, sempre profundo! As garras da hipocrisia espreitam frequentemente o fenómeno da amizade… Se não estou em erro, acho que Ivone, não me lembro agora do apelido, disse: “A amizade é o mais belo afluente do amor…” e esta penso ser uma óptima resposta para os tais detritos do nosso Alexandre O’Neil. E cá vou eu, que coisa linda, não conhecia este: “Até aqui viajámos juntos…Que nossas despedidas sejam um eterno reencontro”. Também de autor desconhecido. Hoje sinto mesmo isto. Viajei junta com uns e outros em épocas diferentes mas é uma felicidade poder ter este dia tão rico em que partilho a vossa amizade e tenho o privilégio de a dividir com os meus queridos familiares. Isto é incrível, vem mesmo a propósito. “Amigos verdadeiros são os que suportam a tua felicidade!” do Padre Fábio de Melo. ”Um dia a maioria de nós irá separar se”. Uma ternura, Vinícius, sempre belo! Mas atenção, nós, já não temos idade para nos separar, seria muito penoso e aliás estou a lembrar-me, exactamente, de um poeta também brasileiro, Augusto Branco, que dizia mais ou menos assim: “Fiz amigos eternos e amigos que nunca mais vi…” Não quero perder-vos, meus amigos.
O riso geral quase intimidou a aniversariante, sem perceber a razão de tal risada. Alguém lhe indicou um dos ícones…  
Bertold Brechet
— Mas vocês colocaram aqui para mim os mais bonitos poemas sobre amizade? Sois maravilhosos. O grande Bertold Brechet, “…como eu não me importei com ninguém, ninguém se importa comigo”. Não é, felizmente, o nosso caso, mas é o penoso prémio da indiferença, do individualismo, da mania da importância.
— Mãe, não seria de fazer um intervalo, as pessoas querem petiscar?
Acariciando o filho, disse-lhe:
— Sabes, a “Amizade vai para além do tempo”, dizia Vinícius de Morais, e agora o tempo é de “curtir”, como vocês dizem. Ó filho diz a todos para comerem o que quiserem, eu por mim, estou a alimentar-me muito bem. Não te preocupes porque eles todos já me conhecem: está a acontecer o que eles provocaram!
— Ó mulher, eles não te ligam, já estão todos a comer e a beber. Nem sequer te dão resposta.
— “…Deles não quero resposta, quero o meu avesso…” Sabes quem disse isto num lindíssimo poema?
Gargalhada geral… De imediato virou o olhar para o ecrã e procurou o que percebeu lá estar, Oscar Wilde. O brilho daqueles olhos expressivos, felizes, aparecia agora humedecido, como a neblina fresca da manhã numa flor que se quer mostrar. “…O amigo: um ser que a vida não explica…”
Vinicius de Moraes
— Não, nisto não estou de acordo com Vinícius…
Uma amiga ao lado dela interpelou:
— Não conheces esse? Isso é só uma passagem. Lê-o todo e irás entender.
— É belo, sim senhor. A minha memória já não é o que era, é um pouco como os amigos de Eugénio de Andrade. Recordo dum poema dele “…uns iam, outros vinham,…”. Ora recordo, ora esqueço… O importante é viver, com poesia, tanto melhor. Por isso mesmo me refugio muitas vezes no silêncio indispensável às leituras enriquecedoras dos nossos poetas. Tenho a felicidade de ter feito ao longo da vida muitos amigos que tive o privilégio de não perder. Osvaldo Montenegro aborda, como ele sabe, esta temática num dos seus poemas — “…quantas pessoas que você amava, hoje acredita que amam você?”. Recordar o passado, viver intensamente o presente, para construir o futuro é uma máxima que se adapta muito bem àquilo que somos e desejamos ser. Preservar a vida antes que ela se transforme em ruínas. Em “Ruínas da amizade”, Augusto Branco registou a profundidade com que uma amizade pode perdurar perante um grande amor acabado. Esta grande alegria que nunca irei esquecer, só foi possível porque somos todos inequivocamente amigos. Como disse Quintana, “…Não te abras com teu amigo, que ele outro amigo tem…”, e também tenho a certeza que a vossa presença é voluntária e amiga. Por tudo isto sou uma mulher feliz. “Abençoados os que possuem amigos, os que os têm sem pedir”, dizia Machado de Assis e com muito orgulho digo eu também. Com toda esta conversa, que muito agradável me é, estou a descuidar esta procura deliciosa que me proporcionaram.
Ser seu amigo já é um pedaço de céu
— Talvez vá começar a ser menos interessante. Dizia uma das amigas mais comprometidas com a surpresa dado que a homenageada estava farta de fazer citações que iria encontrar a seguir. Não tinha sido por acaso que tinham decidido decorar a prenda com poesia… O tempo passava-se e a hora do regresso às suas vidas, às suas famílias, impunha mais uma despedida que sempre se repete com a ideia no reencontro. Antes que isso acontecesse, a aniversariante deslocou-se a uma pequena sala onde habitualmente se isolava para ler e após alguns segundos regressou com uma folha na mão.

— Ficar-vos-ei grata, a todos, até ao fim dos meus dias pelo lindo dia que me proporcionaram. Estou mesmo emocionada e não tenho palavras para vos agradecer. Lembrei-me de um poeta que descobri, há meia dúzia de dias, Chico Xavier, não o conhecia, e antes que a memória me atraiçoasse, vou ler um pequeno extracto de um seu poema dedicado aos amigos. “…Mas, se eu morrer antes de você, acho que não vou estranhar o céu. Ser seu amigo, já é um pedaço dele…”

8 comentários:

  1. Um respigar de citações à volta dum grande afecto

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  2. Um diálogo feliz entre poetas consagrados, a aniversariante e os amigos. Amizade traduzida em gestos de sentido profundo. Um texto pleno de afeto.

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  3. Um texto onde se denota um grande interesse pela poesia e pela leitura de grandes autores.
    A aniversariante deve estar feliz por ter amigos que sabem do que gosta e lhe proporcionam momentos de bem estar.
    Parabéns ao autor do texto pela forma como o concebeu.

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  4. Diálogos impossíveis diriam alguns mais avisados, bons conhecedores da poesia e dos nossos poetas! Com esta publicação conseguiste tornar possivel o impossível e demonstrar que a amizade está no calor dos afetos, nas páginas dum livro e até no monitor frio e impessoal de um computador. Excelente prenda! Eu ía gostar muito de a receber

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  5. "Se a tanto me ajudar o engenho e a arte" Camões teve engenho e arte de sobra, mas logo nos avisam que foi grande, mal o conhecemos.
    Mas o autor deste texto não avisa ninguém: tem engenho e sensibilidade que baste, trata qualquer tema por tu, propõe-nos amizade e dá-nos poesia.
    Acabei de descobrir: o que ele propõe é que a amizade são poemas que vão acontecendo na vida.
    Gostei, José Luís.

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  6. AMIZADE

    A amizade
    é o mais belo afluente do amor,
    ela ajuda a resolver,
    com paciência,
    as complicadas equações
    da convivência humana.

    A amizade
    é tão forte quanto o amor,
    ela educa o amor,
    sinalizando o caminho da coerência,
    apontando as veredas da justiça,
    controlando os excessos da paixão.
    A amizade
    é um forte elo que une pessoas
    na corrente do querer.
    Amizade
    é cola divina,
    cola demais,
    pode doer.

    A amizade
    tem muito mais juízo
    que o amor,
    quando ele se esgota
    e cisma de ir embora,
    ela se propõe a ficar,
    vigiando o sentimento que sobrou.
    Ivone Boechat

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    1. Boa definição de amizade: sentimento forte, mas sereno.

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    2. Ótima surpresa na "surpresa" onde o apelido da autora nem sequer havia sido referido. A "amizade" - por inteiro - publicada pela autora é um privilégio gostoso para mim e para este blogue. Descobriu-nos, conforme algures selecionei o seu poema na minha pasta de poesias preferidas,e nós ficamos muito satisfeitos com isso. Seja bem-vinda e surpreenda-nos sempre que entender.

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