A partir da
publicação do Texto I, aos domingos, e com periocidade semanal, seguir-se-ão
outros integrados numa reflexão sobre CICLOS DE VIDA. Pretende-se uma reflexão
dialogante e que abra horizontes.
Caro leitor, enriqueça este diálogo,
participando com um texto!
Obrigada. O trabalho poderá ser enviado para o endereço evoluircriativa@gmail.com ou para qualquer outro dos autores do blogue.
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TEXTO VII
Albertina Vaz
Deitei-me ontem a pensar que
tinha de encontrar a Francisca: afinal como irá o projecto dela e do Antunes?
Será que já começaram? Será que têm novidades e não querem partilhar connosco?
É que o bairrocasahotel é uma ideia fascinante e eu gostava de participar nela.
Eu tentar, tentei mas não consigo
contactar com eles -
nada, nem ninguém! Andarão por aí, agora que o sol voltou, a desvendar algum
local específico ou algum recanto escondido. Certamente teremos notícias deles
dentro de algum tempo.
Nada como uma boa caminhada para refrescar a mente |
E pus-me a caminhar porque nada
como uma boa caminhada para refrescar a mente e aligeirar a razão que por vezes
nos conduz a caminhos tortuosos e veredas ingremes onde as escarpas se sucedem
e as quedas são frequentes.
E num instante encontrei-me numa
aldeia, não muito longe do centro da cidade. Ninguém! Nem mesmo uma criança a
correr atrás duma bola, nem uma mulher à espreita numa janela fechada. Nem um
cão rafeiro a farejar um resto ou uma galinha a debicar na terra quente. Ninguém
mesmo. Era uma terra abandonada e uma estrada sem fim que terminava onde tinha
começado.
Inesperado este retrato porque
ainda há muito pouco cá tinha estado e a vida florescia: os campos cultivados,
as flores nas janelas, os pássaros a trocar trinados de início de Primavera e
de seduções repartidas…
Ao longe avistei um par de
caminhantes que por ali deambulavam como eu, dando movimento ao corpo e alento
à vida. Não consegui alcançá-los -
a sua passada era mais rápida que a minha e desisti de os agarrar.
Tudo fechado |
Nos campos a erva crescia
desordenada e as culturas de outrora tinham desaparecido. Nem animais se viam e
aquela gente vivia da criação de gado e da pesca. Qualquer coisa de muito
estranho se havia passado para aquele abandono se ter instalado de uma forma
tão silenciosa e tão chocante.
Numa viela escondida, por entre a
sombra das casas que quase se juntam no topo, deparei-me com uma mulher,
sentada no patamar da porta, envolta num xaile cinzento. De olhos parados, fitando
um ponto no infinito que mal avançava para além da parede da casa da frente,
ali estava - muda,
quieta, imóvel, quase parada no espaço e no tempo.
Para onde foi toda a gente? |
- Olhe menina -
hei de ser sempre menina mesmo que já nem dentes tenha - foi de repente: começaram todos
a ir-se embora. Os homens deixaram de ir à faina da pesca porque abateram os
barcos e vieram todos para a agricultura mas depois vieram uns senhores e
disseram-lhes para não cultivarem os campos. E ficaram sem ter nada para fazer.
Ainda lhes davam um subsídio, sabe, para eles deixarem de cultivar as terras, mas
era muito pouco e tiveram de procurar, lá por fora, uma forma de viverem
melhor. O meu filho, o Manel, foi para a Suíça. Dizem que está bem, mas o
António, coitadito, anda lá por Lisboa a pedir trabalho e ninguém lho dá. Uma
desgraça menina, uma desgraça!
Depois, olhe, foram indo todos
pouco a pouco à procura de uma vida melhor. Eu, digo-lhe com franqueza, não sei
se a vão encontrar. A seguir o Sr. doutor deixou de vir – já não havia gente
suficiente para consultar; os correios fecharam; as donas das lojas não tinham
a quem vender e acabou tudo.
Abracei-a |
Eu tive de ficar – já não tenho
energia nem força! Nem sei o que vai ser de mim. E dantes era tudo tão fácil:
os meus filhos estavam por perto, os meus netos vinham ver-me todo o dia, os
meus vizinhos batiam-me à janela quando eu não tinha a porta aberta…
Fiquei sem palavras: não sabia
que lhe dizer! Sentei-me junto dela e abracei-a. Foi então que percebi que estava ali a resposta às interrogações da Francisca: o bairrocasahotel que a
Francisca procurava não seria difícil de concretizar se voltássemos alguns anos
atrás e não tivéssemos desfeito o que de melhor havia entre nós: a família
alargada em que os filhos viviam com os pais e os netos desfrutavam da
sabedoria acumulada por tantos anos de experiência.
Nas aldeias -
sociedades em miniatura -
ninguém se atrevia a tomar uma decisão sem procurar saber a opinião do mais
velho e todos se preocupavam com todos para que nada ficasse esquecido como a Sr.ª
Maria que já não tem capacidade para abandonar o canto onde viveu e construiu a
vida – sua e dos seus!
Da Sr.ª Maria vou eu cuidar, mas
quero contar à Francisca e ao Antunes o momento que aqui vivi: quem sabe se
esta ideia não tem força suficiente para regressar!
O retrato fiel, do que, infelizmente se passa em muitas terras, sobretudo, do interior e onde não falta a grande sensibilidade da autora, para abordar estas questões. Gostei muito, Albertina.Beijo.
ResponderEliminarA irreversibilidade do tempo não permite a repetição da história.O ou os modelos de desenvolvimento atuais - como são?
ResponderEliminarEm que se baseiam? Neste magnífico texto a constatação da realidade, tão brutalmente cruel,expressa o soberbo quadro de natureza morta. E isto existe e isto é verdade. Que quadro de "inovação" pode ser recolhido na globalização - mãe de todas as virtudes - para que as Franciscas e os Antunes possam reescrever a história decorada com pessoas? Fotografia excelentemente conseguida com o profundo conhecimento e rara sensibilidade duma autora que sempre dominou estas matérias.
Sem dúvida, este é o retrato de tantas e tantas aldeias no interior do nosso país; no entanto, é sempre com agrado que voltamos lá e recordamos coisas boas, muito ricas, da nossa infância...tenho o privilégio de ter vivido alguns momentos inesquecíveis...recordo os bailaricos no adro da igreja, nas tardes de Domingo!
ResponderEliminarÉ uma verdade. Tantas aldeias que estão a ficar desertas. Os mais novos vão para as grandes cidades à procura de novas oportunidades e os de idade maior, vão partindo.
ResponderEliminarNo interior do país é o que mais se vê; aldeias quase sem adultos; então crianças? não existem.
Belo trabalho, Albertina.
Texto revelador do talento literário da autora e da sua extraordinária sensibilidade para as questões humanas. Parabéns, Albertina!
ResponderEliminarSeja qual for o paradigma económico do futuro, a Sra Maria sabe que não a afetará, o seu tempo está a esgotar-se. E os filhos, como irão sobreviver? Ainda mais do que a separação, dói-lhe esta incerteza, o fantasma da pobreza ensombra-lhe os dias, que ainda há pouco tempo imaginava virem a ser tranquilos. Quem nos devolve um raio de esperança?
Casas mortas, vazios, solidão e incertezas.
ResponderEliminarmas, por favor, não percam a esperança de uma feliz reviravolta, mesmo que não possamos assistir a ela!
O que estão a fazer ao país, ou seja, a deixá-lo agonizar, é um aspeto que a todos, novos e velhos, diz respeito. Mas, pacificamente, assistimos.
ResponderEliminarA Francisca? Tem de se acautelar para não ficar como a Sra. Maria, não numa qualquer perdida aldeia despovoada, mas na cidade, onde a espera uma velhice armazenada.
Força, Francisca, congrega pessoas à volta da tua ideia e não desistas, não deixes que te isolem...
A tua casa agora é onde possas continuar a ser pessoa...
A terrível realidade com que nos defrontamos diariamente.
ResponderEliminarPara os mais velhos é ainda pior, não só pela solidão mas pela incerteza no futuro dos filhos e netos.
Vamos continuar a pensar juntar pequenos grupos de amigos numa casa, para podermos sobreviver com alguma dignidade e dar algum sossego aos nossos filhos.
Hoje são as aldeias e amanhã não serão as cidades?. De todos os comentários fixei-me no de GM "mesmo que não possamos assistir a ela". Mas eu quero assistir a uma reviravolta, porque hoje ainda podemos andar por aqui. No entanto, presentemente já somos todos candidatos a Sras. Marias.
ResponderEliminarQue fizeram do nosso país?
Obrigada Albertina por este realismo e sensibilidade.