domingo, 19 de maio de 2013

O JOÃO E A MARIA - UMA HISTÓRIA QUASE REAL


EVOLUIR agradece ao autor o envio deste texto para publicação


A partir da publicação do Texto I, aos domingos, e com periocidade semanal, seguir-se-ão outros integrados numa reflexão sobre CICLOS DE VIDA. Pretende-se uma reflexão dialogante e que abra horizontes.
Caro leitor, enriqueça este diálogo, participando com um texto! 

Obrigada. O trabalho poderá ser enviado para o endereço evoluircriativa@gmail.com ou para qualquer outro dos autores do blogue.

TEXTO VI

Graciete Manangão

O João era viúvo, reformado dos Caminhos de Ferro (CP), ainda escorreito e de boa aparência, apesar dos 75 anos. Tinha nascido em Cacia, mas após ter perdido a sua mulher, passou a viver com um dos seus filhos, na Gafanha da Nazaré, pois a casa, terras e  parte do dinheiro amealhado, ao longo dos vários anos,  foram distribuídos pelos seus três filhos.
Começou a ir à pesca
quase todos os dias
Passado algum tempo de luto, e de atribulada adaptação à nova situação, João pensa em refazer a sua vida. Começou a ir à pesca, quase todos os dias, de manhã junto ao paredão da Barra,  e à tarde, ia ao café do senhor Hilário, para conversar ou assistir aos jogos da Sport TV.
Por vezes, ao domingo, ia almoçar fora com o filho, a nora e o neto adolescente. E, claro, era sempre o João  que pagava o almoço.
Até que um dia se cruzou com a Maria. Era uma mulher madura, bem constituída, ainda bonita, de cabelo dourado, tisnada por muito sol da beira-mar. Parecia não ter mais de 45 ou 50 anos, quando se conheceram.
Veio a saber que ela era “marisqueira”, pois vivia da apanha de bivalves e de isco para a pesca, na ria de Aveiro. De inverno, dedicava-se mais a vender peixe e legumes, no mercado da Costa Nova.
Maria não saia da cabeça de João
Maria não saía da cabeça e do coração de João. Até que um dia encheu-se de coragem e propôs-lhe que se juntassem, para conforto de um e de outro. Mas  Maria  queria muito mais. Desejava ter uma casa, maior e melhor do que aquela onde vivia. Vivia numa casa arrendada há já vários anos e sonhava vir a ter, um dia, uma casa em seu nome.
João fez-lhe várias promessas, na secreta esperança que ela não o abandonasse, na derradeira hora. Pressentindo os anseios dele, Maria exigiu-lhe que se casasse com ela e, logo que fosse possível, mudassem para uma casa mais moderna e arejada.
Ele acabou por confessar-lhe que não tinha dinheiro suficiente para comprar de imediato uma casa nova, como ela gostaria. Então, resolvem procurar uma casa para alugar, com jardim e quintal, no campo, nos arredores de Vagos ou Ílhavo.
Uma casa com quintal
Depois de muito procurarem e verem, assinam contrato de aluguer de uma casa que se encontrava desabitada há dois anos. E como fiança legal, João paga dois meses adiantados de renda ao proprietário da casa em questão.
Mas Maria depressa se arrependeu de ter assinado aquele contrato. De noite, não conseguia dormir, nem deixava que João dormisse. Não queria mudar as suas coisas para aquela casa. Afinal, não era aquilo que ela queria para o seu futuro. Não lhe interessava herdar uma renda…
Pressionado de dia e de noite pela mulher, João, quase a chorar, implorou ao senhorio que anulasse tudo. Rescindiu o contrato, devolveu as chaves que lhe tinham sido entregues e perdeu o dinheiro da fiança. E concordou em fazer um empréstimo de 80.000 euros ao Banco, para poderem comprar um apartamento novo, perto de Aveiro, já que uma casa, como a sua Maria desejava, custaria muito mais do que isso. E, claro, o apartamento teria de estar em nome dela.
Finalmente, mudam-se. E ela toda contente, cantando vitória, na sua nova casa.
Mas foi sol de pouca dura, como diriam as nossas avós. João sentia-se encurralado no apartamento e sufocado pela dívida contraída. Passados alguns meses, João é vítima de um fatal enfarte do miocárdio.
Maria, sem filhos, sem amigos e já sem pais, entra em grave depressão. Deixa de poder trabalhar. Apenas com a modesta pensão de viuvez e pouco mais, começa a ter muita dificuldade em pagar mensalmente o empréstimo. O “spread” inicial de 4,5% ( mais  “euribor”) já ia em 6,5%. Desiste de lutar e é obrigada a entregar o apartamento ao Banco.
Não tem outra solução senão ir morar com uma sobrinha casada, dona de um pequeno restaurante no Algarve, perto da praia.

O sonho de Maria desfizera-se, duplamente, em pouco tempo. Ela só queria um aconchego tranquilo para o resto da sua vida. Mas dentro dela, no meio de nuvens cinzentas carregadas de medos e incertezas, ainda havia uma réstia de esperança.
... talvez pudesse recomeçar tudo de novo.
Quem sabe, talvez, pudesse recomeçar tudo de novo. Ali, junto à ria Formosa...

6 comentários:

  1. Uma história com muitas frentes abertas à reflexão. A solidão, e é só um dos fatores, pode levar uma pessoa para o precipício!

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  2. Uma história triste, sobretudo para o João, vítima do egoísmo e irresponsabilidade da Maria que, na ânsia de realizar o seu sonho, se aproveitou dos seus sentimentos e fragilidade

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  3. Uma história que evidencia a cedência e o oportunismo. Infelizmente, igual a tantas outras!

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  4. Infelizmente existem por aí muitas Marias, que, aproveitando-se da solidão dos seus semelhantes, usam e abusam, deixando atrás um rasto de dor e sofrimento, mas seguindo em frente na perseguição do próximo incauto.
    É a selva em que vivemos.

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  5. Há tantos Joões e tantas Marias por aí fora. Por vezes a solidão em que as pessoas se encontram, fá-las pensar como o João, mas infelizmente nem sempre é assim. Também há casos que dão para bem.

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  6. Não sei se a Maria queria fazer algum mal ao João... Não sei se o João teria sido muito feliz durante a sua vida... O que eu sei é que há Marias que sonham! Será proibido sonhar? O que não deveria ser proibido era que fosse possível alguém ficar encurralado quando o sistema se permite dizer amanhã o contrário do que proclamou hoje.

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