segunda-feira, 13 de maio de 2013

Cumplicidades

A partir da publicação do Texto I, aos domingos, e com periocidade semanal, seguir-se-ão outros integrados numa reflexão sobre CICLOS DE VIDA. Pretende-se uma reflexão dialogante e que abra horizontes.
Caro leitor, enriqueça este diálogo, participando com um texto! 


Obrigada. O trabalho poderá ser enviado para o endereço evoluircriativa@gmail.com ou para qualquer outro dos autores do blogue.

TEXTO V
Albertina Vaz

Vamos chapinhar num charco de água
Uma poça de água no chão espelha as pontas esguias das árvores onde as folhas começam a rebentar. Há flores por toda a planície e sabe bem pressentir o renascimento que se aproxima. Quem dera que o sol apareça! Faz-nos falta sorrir ou fazer sorrir uma criança…
Anda, vem comigo, anda daí: vamos chapinhar num charco de água e rir quando nos molharmos e os pingos da lama nos sujarem o vestido que já não vestíamos desde o ano passado. Está frio, eu sei! Mas vamos lá, saborear a água, como quando eu era menina e saía de casa a correr – porque eu podia correr na rua, sabes – e vamos sujar os sapatos e pegar na lama e pintar a cara e fazer asneiras… Só hoje que a mãe não vê!
Anda, vem daí: vamos correr pela praia e atirar areia ao ar e sentir o cheiro a maresia e os pingos das ondas que rodopiam no mar. Vamos senti-las e lamber os braços que sabem a sal e correr, correr – espera por mim, que me dói… eu vou já! Espera aí! Que bom sentir a tua mão na minha e a outra a limpar-me o sal da água e os salpicos das ondas.
Vamos construir um castelo de areia
Vamos construir um castelo de areia: vamos fazer um grande monte e depois dar forma às ameias e fazer um fosso a toda a volta – eu sei, eu sei – uma ponte para a princesa sair ou para o príncipe entrar. Sim, vamos pôr uma bandeira lá na torre mais alta: isso, traz esse pauzito da duna e vamos fazer um desenho neste lenço. Que lindo: esvoaça com o vento. Vamos apanhar conchinhas e fazer uma muralha de rendas à volta das janelas. Olha a bandeira, parece uma nuvem branquinha a descer, a descer e a desfalecer-se lá longe no horizonte, perto do mar…
Deitarmo-nos na areia húmida? Mas depois ficamos todas ensopadas… Vamos lá, tens razão: vamos fazer tudo o que é proibido, hoje! Que lindo o céu – está cheio de nuvens! A correrem dum lado para o outro: aquela parece que sopra nas outras todas. O quê? Achas que sim? Estarão mesmo a brincar às escondidas? És capaz de ter razão…Aquela é um urso? Será? Dizes que vai a correr atrás da menina? Mas eu não vejo menina nenhuma… pois é, já não vejo muito bem! Gosto que vejas por mim: ensinas-me o que eu já não consigo ver.
E se nos fossemos rebolar pelas
dunas de areia?
E se nos fossemos rebolar pelas dunas de areia, aquelas ali que não têm picos? Que me dizes? Mas depois ficamos todas sujas, estamos molhadas e … deve ser bom, deve! Vamos lá! Espera, olha o que aqui encontrei… Sabes o que isto é? Um ninho com ovinhos tão pequeninos. Não lhes mexas: a mãe deles pode não gostar! Qualquer dia voltamos cá para ver os passarinhos a abrir os biquinhos e a pedir de comer. São tão lindos: nunca viste um ninho de passarinhos? Está combinado, noutro dia temos de vir cá à procura deles. Vamos lá ver se eles se deixam mostrar.
Vamos molhar os pés? Com meias e tudo? Vamos lá, anda daí! Vamos procurar nas rochas das escarpas aqueles peixinhos pequenos que se escondem quando aparecemos e até talvez, se metermos bem a mão por baixo… espera aí – é um polvo! Está a agarrar-me os dedos o malandro. E tu ris-te? Deixa-o ir pela maré acima em direcção ao mar. Dantes, sabes, era fácil encontrar mexilhões, berbigões e outros bichinhos de casca. Às vezes vinha cá com a tua mãe e apanhávamos uma quantidade deles para abrirmos ao lume e comermos quentinhos ainda a saber á agua do mar.
Estás com fome? Fome de quê? Um leitinho? Ou um pão com manteiga?

Se eu quero comer um gelado? Eu querer, queria mas achas que não nos faz mal? É que
Se eu quero comer um gelado?

ainda está muito frio e podemos ficar doentes. Esquece, vamos lá comer um gelado e até podemos andar naquele cavalinho que sobe e desce e desce e sobe como se nunca quisesse parar. Depois fazemos uma história de cavalos a correr no deserto e de pessoas felizes a saltar com eles e de ursinhos e patos… os patos não andam atrás dos ursos? Isso é o que tu pensas…Eu já vi um pato a debicar no pé de um urso. Não era um Panda não, era um urso vulgar: olha, podes crer! Enganei-te: foi no circo!
Claro que não podemos brincar assim todos os dias mas depois tomamos um banho, vestimos uma roupa florida, aquecemo-nos na lareira e tomamos um chocolate quentinho. As duas, sim! E quando nos perguntarem porque estamos a rir rimos ainda mais e não contamos nada a ninguém. É um segredo – dizemos. Nosso, só nosso e eles vão ficar roídos de inveja de nós porque já não sabem o que é rir. Depois vão dizer-me que sou pior do que tu, que faço asneiras, que te levo a fazer asneiras e nós, e nós – vamos rir ainda mais!
Em seguida fazemos um prato grande de pipocas, sentamo-nos muito quietinhas, eu vou buscar aquela manta quentinha para aquecermos os pés, e vamos ler aquela história que já não vimos há muito tempo. Sim, pode ser essa! A que tu quiseres: o mais importante é que vamos ler juntas!
Fomos apenas ver o mar!
E eles vão dizer: já andaram a fazer asneira! E nós, com o ar mais pacífico deste mundo, vamos responder: nem pensar! Fomos apenas ver o mar!
É que eles não sabem que nós sabemos que há coisas boas que não se podem fazer mas que, em dias especiais, fazem despertar em nós aquela cumplicidade que só existe quando se cultiva e só floresce quando se alimenta.

9 comentários:

  1. BONITAS E EXEMPLARES CUMPLICIDADES ENTRE GERAÇÕES. QUE FELICIDADE TER UMA AVÓ ASSIM, TÃO TERNURENTA!
    GM

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  2. Duas leituras. Uma, a da louca avó que adora recriar a ingenuidade, única e bela de uma criança. A outra, o gosto, o gozo, o amor que tu tens pelo ato de escrever, e eu de te ler.

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  3. Quando uma criança nos desafia e recusamos embarcar nessa aventura, ficamos muito mais pobres. Felizes os adultos que percebem e vivem o mundo de alegria e puro amor que podem partilhar com uma criança! Felizes as crianças que têm com quem partilhar a aventura e a descoberta!

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  4. Uma avó que, através da neta, se torna menina. Uma neta que recebe da avó a parceria ideal para aquelas aventuras tão desejadas, mas quase sempre proibidas. Um texto cheio de ternura com um leve toque de irreverência. Comovente também pela poesia que envolve toda a interação entre avó e neta. Simplesmente magnífico, Albertina!

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  5. Que bonito texto, Albertina.Pois é isso mesmo; tanta alegria nos dá o fazermos estas coisas, que outros pensam ser proibidas para nós, avós. É algo que só quem vive, sente e compreende o valor.

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  6. Quando publicaste este texto disseste que não iria gostar nada... mas acho que te enganaste!
    Para além da forma, que nos habituaste a ser espetacular, o conteúdo também não o é menos.
    Não gostava que a minha filha tivesse uns avós cinzentos que só cumprissem os mínimos para educar... Os avós são isso mesmo! A parte mais louca que os pais não podem ser tanto.
    Os país também o são, também gostam de o ser mais... mas tal e qual como os avós de todos os dias, também têm que educar e impor regras e limites... senão um dia destes davamos conta que estávamos a criar uma geração de seres mimados,egocentricos e sem respeito pelo próximo. Não quero que a minha filha se torne um Sócrates ou um Passos Coelho!...
    ...e também sei que os avós também não.

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  7. Belo, ternurento, magnífico. São os adjetivos que me ocorrem de imediato, após a leitura deste texto.
    Parecem histórias de encantar. As tuas netas vão sem dúvida encantar-se, quando daqui a algum tempo —sim porque o tempo passa depressa— tiverem acesso a este texto e sentirem que a avó tinha para com elas este tipo de cumplicidade. Quem escreve assim está sem dúvida a viver esta aventura, que é a relação de confiança e cumplicidade existente entre alguns avós e netos e que é maravilhosa para uns e outros.
    Estás uma escritora de truz; imagino o “gozo” que sentiste enquanto escrevias este que é um autêntico poema ao amor entre avós e netos.
    Parabéns.

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  8. Ternura, sentimento mágico que nos impele ao olhar atento do outro. Obrigado é maravilhoso este poema de amor esta súmula e confissão entre gerações... Parabéns

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  9. Texto está magnífico lembro-me imenso os avôs que tive e que tantas brincadeiras fizemos, mas com tristeza fico por os meus filhos não terem nem a terça parte desse afecto, carinho ne Amor. Parabéns Tia bjs

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