Júlia
Sardo
Estávamos no verão; o calor apertava durante
o dia, refrescando um pouco, ao entardecer. Não me recordo em que dia
estávamos. Sei que andava no jardim, a apanhar umas ervitas, que teimavam em
aparecer, e a regar.
Quando levantei a cabeça, a descansar um
pouco, vi uma pomba a bicar areia, junto ao portão da garagem.
Chamei a atenção do meu marido que me disse,
tratar-se dum pombo-correio, porque nessa altura se faziam concursos de longas
distâncias e, também, porque tinha uma anilha, com o número próprio, numa
patinha. O animal estava com muita fome e sede. Pusemos uma taça com água e
atirámos-lhe milho. Ainda ficou um pouco desconfiada, mas a fome era tanta que
resolveu aventurar-se e comer. A partir desse momento, já não fugia de nós.
Entretanto, ela devia estar tão cansada que
se deixou apanhar e o meu marido meteu-a numa gaiola, grande, com água e
comida. Todos os dias íamos ter com ela fazendo-lhe festas, falando, e o animal
habituou-se a nós.
Foram-se passando os dias e
resolvemos soltá-la. Saltitou no chão, com um porte imponente e ao mesmo tempo
elegante. Subiu, deu umas voltas no ar e voltou a pousar. Eu falei-lhe e fui-me
aproximando a ver se ela voava. Não; voou, sim, mas para cima da minha cabeça. Ficámos
admiradíssimos e ao mesmo tempo, eu, perplexa, mas contente. Nunca me tinha
acontecido uma situação daquelas.
A partir desse dia a pomba andava solta e
quando me encontrava lá fora, toca de se por em cima da minha cabeça ou de um
ombro. Era uma brincadeira pegada; vinham amigos, cá a casa, ver o espetáculo.
O pior é que ela arranhava-me, a cabeça, com
os bicos das unhas e magoava-me, mas mesmo assim era bonito de se ver e eu
sentia-me feliz porque ela só vinha ter comigo. Se eu abrisse uma portada, ela
entrava, dava uma volta junto ao teto e saía.
Bom, já era tempo de mandarmos a bichinha
para o seu destino, mas não sabíamos como. Tornámos a fechá-la, tipo castigo, e
entretanto procurámos notícias através dos grupos de columbofilia, pedimos à
Rádio Terra Nova que nos ajudasse, dando o número da anilha. Ninguém sabia de
nenhuma pomba que não tivesse chegado ao seu destino.
Depois de uns dias de cativeiro resolvemos
soltá-la. Deu umas voltas no ar, como que a despedir-se e seguiu a sua rota.
Íamos falando na pomba com saudade, por ser
meiga e por tudo o que nos proporcionou. Entretanto o tempo foi passando e veio
o verão.Qual foi o meu espanto, andando eu no jardim, ao ver uma pomba pousada
numa varanda.
Alertei o meu marido; observámo-la, tornámos
a fazer a experiência do comer e água e ela tornou a subir para o meu ombro.
Fiquei maravilhada. Esteve cá a descansar uns dias e foi-se embora.
Fiquei muito feliz com
aquela visita inesperada.
Falar é viver com intensidade.
ResponderEliminarSuponho que foi o que te aconteceu sempre que contaste esta história.
Mas agora, que a escreveste, que sabor novo passou a ter?
No saborear lento da escrita, os sons, os cheiros e as texturas simples das coisas simples apanham corpo, vivem outra vez pela palavra.
Escrever é viver com sensibilidade!
Tens razão. Falar é viver com intensidade; pois foi o que me aconteceu ao lembrar esta situação inesquecível, e tão amorosa que me deu vontade de a partilhar.
EliminarUma história tão ternurenta quanto singela. Apesar de já se terem passado alguns anos, o que não farias para a veres novamente? A vida é feita de encontros e desencontros. Ficam os bons momentos para um dia podermnos recordar com saudade e alguma nostalgia.
ResponderEliminarObrigada por repartires connosco esta linda história.
É por causa de histórias como esta que não acredito na tese que defende, que só nós, os humanos, somos inteligentes. Nesta área, há muito por provar e descobrir. Estas histórias remetem-me sempre para o clássico tema "Quanto mais conheço os homens, mais gosto dos animais". Obrigado pela partilha.
ResponderEliminarTens toda a razão Zé Luis. E mais uma vez tenho de falar do meu Gaspar. É muito inteligente este meu cão. É reciproco o carinho,a ternura e a gratidão que temos um pelo outro.
EliminarQuem diria Julinha que afinal era tão fácil! Realmente se nós quisermos encontramos mil e um motivos: depois é a disponibilidade para passar ao papel, para nos expormos, para deixarmos um pouco de nós nas palavras que fluem.
ResponderEliminarE a partir da publicação o escrito deixa de nos pertencer: passa para o leitor que se transporta na sua mensagem.
Uma história cheia de ternura. Obrigada pela partilha, Júlia
ResponderEliminar