domingo, 24 de fevereiro de 2013

QUERIDO, NÃO MUDES A CASA


Maria da Conceição Cação
Tiro a venda. Eis-me perante um lugar de sonho: o jardim. Do rectângulo de relva verdejante, elevam-se, em surpreendente harmonia, um jacarandá, uma acácia e um abeto. Nos cantos, as flores exuberantes dos hibiscos oferecem-se aos beija-flores. Ao abrigo do alto muro, onde um casal de namorados emerge, enlaçado, dum painel de azulejos azul e branco, tufos de alfazema coroados de anil, impregnam o ar dum perfume discreto. Num lago, ao centro, ondulando as águas, deslizam, majestosos, dois cisnes brancos. À esquerda, numa gaiola de ferro rendilhado, assente sobre a calçada, um papagaio palrador acolhe-me com uma saudação. Incrédula, avanço uns passos. Ao meu olhar, deslumbrado, apresentam-se a piscina, as cadeiras, as tendas, o cantinho de convívio e leitura, onde não faltam os sofás, as mesinhas de apoio, as prateleiras, os vasos floridos, as lanternas, as velas… Aproximo-me da cancela de madeira. Do lado de lá, mais recatados, a horta e o pomar. Uma mistura de aromas, ainda há pouco tão subtil, insinua-se agora aos meus sentidos. Inebriada, alongo a vista. Alinhadas ao longo do passadiço, frondosas árvores exóticas ostentam garbosamente os seus frutos.

Sinto-me perplexa. Como foi possível aliar tanta beleza, harmonia, conforto? Que fada teria derramado aqui tão generosamente a sua magia? Aquele era o espaço perfeito, muito mais do eu ousara desejar! E, no entanto, sinto-me constrangida. Não consigo retribuir a simpatia que me circunda. Esboço expressões de entusiasmo, de contentamento, que logo esmorecem na garganta. É como se me encontrasse de visita a um belo parque da cidade. O meu coração permanece distante. Sinto-me como uma criança a quem fosse, de súbito, retirada a modesta mãe e visse, no seu lugar, uma madrasta coberta de jóias.



Acordo. O coração ainda bate incerto. A cabeça fervilha. Os pensamentos confundem-se. Na minha mente, dois espaços alternam, num zapping estonteante. Desço. Os meus passos inseguros atravessam a cozinha, o pátio… Já estou no quintal. À luz do sol, vai-se desenrolando o painel da realidade. Cá está a minha coleção de orquídeas. Em cada uma, o sussurro de um nome: esta, Tina, Romana, Elza; esta outra, Celeste; aquela, Paula… Os miosótis,(forget-me-nots), discretos, bem rentinhos ao chão, parecem repetir “Nanda, Nanda”; ali, a hidrângea, um miminho do Fritz; acolá, o feto, de ar exótico, nas folhas viçosas, gravadas saudades dos primos dos trópicos; nostalgia do Pantanal, do Mato Grosso… Gerânios, jarros, malmequeres … Ah cá estão os meus fósseis! Alinhados na pequena prateleira suspensa do muro, de ar constrangido, parecem clamar pelo barro de que foram despojados e suplicar que os restituam ao seu torrão milenar, entre cedros e oliveiras. E este vaso de barro vidrado, já sem a avenca. Nunca passo por ele sem um estremecimento!... Distendo o olhar. Lá está a nespereira, raízes entrelaçadas nas minhas, também ela teve de se acomodar a um chão que não era o seu. O choupo, a amoreira, as laranjeiras…

Mensagens indeléveis de amor, amizade, carinho, gratidão… recordações de aniversários, convívios, festas, viagens, despedidas… Histórias reais, pedaços da minha vida. Teia de ternura que me envolve e me embala, quando as garras da angústia ameaçam sufocar-me.

Alheio às minhas emoções, ele dedica-se, como habitualmente, a uma das suas rotinas matinais. As galinhas acorrem para o desjejum. O primeiro a ser servido, o velho Gorby, de sentidos embotados, ainda consegue arrancar às pernas alquebradas os movimentos doridos e acompanhar o dono em cada passo. Quer senti-lo bem perto, beber cada um dos seus gestos de carinho. Aproximo-me mais. Insinuo-me. Ele pára e olha-me sorridente e interrogativo. Reconhecendo quanto lhe devo por este lugar, dirijo-lhe, com o olhar, uma mensagem de gratidão, logo completada com palavras ternas e convictas “Querido, não mudes a casa”   Hier bin ich Mensch, hier darf ich’s sein. (Aqui sou gente, aqui posso sê-lo)



5 comentários:

  1. Bela prosa poética para revelar a natureza de uma relação profunda do homem com as coisas. De facto, não é a beleza absoluta das coisas que se nos impõe. Primeiro temos de as considerar belas e depois dar tempo às coisas para que fiquem as suas “ raízes entrelaçadas nas minhas” como o texto tão expressivamente apresenta.
    E esta relação de cada um com as coisas é tão pessoal que nem os que nos são mais chegados podem penetrar. Título desconcertante, mas tão significativo.
    Como Sophia de Mello Breyner Andersen sentia e expressou, só pode amar o Homem quem sabe olhar e sabe amar as coisas. Este texto teve o poder de me fazer compreender isso com mais intensidade.
    Obrigada, São!

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  2. Lindo texto. Ao lê-lo, fi-lo com tanta intensidade que as imagens iam passando lentamenta como se passeasse na beleza desta descrição. Como gosto de observar intensamente a natureza, foi um prazer enorme ler este texto.Obrigada.

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  3. Li de um fôlego. Cheguei ao fim e voltei de novo ao principio. Extraordinária a força e a minúcia com que nos descreve um imaginário que faz parte dum lugar que é só seu! E esse lugar, a partir do momento que no-lo transmite, passa a ser um pouquinho nosso também. E percebemos que existem cenários que construimos e outros que são construidos para nós. É nesse momento que entendemos o que significa ser feliz: cenários que coincidem. Obrigado São pela partilha!

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  4. Um quadro de lindas aguarelas emoldurado com muita qualidade. Poderiamos chamar-lhe INTIMIDADE?

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  5. Depois de ler este maravilhoso texto, apetece-me dizer: Não foi neste sítio que nasci, mas vim para aqui ainda criança, cresci, fiz-me mulher e é aqui que quero morrer. O dinheiro pode comprar muitos bens, mas não compra os nossos sentimentos. Obrigada São

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