José Luis Vaz
A economia, há mais de uma década na crista da onda,
mobiliza, ou antes, deveria mobilizar, muitos recursos que evidenciassem benefícios
para as pessoas. Na verdade, pelos piores motivos, a sociedade tem vindo a
sofrer grandes tumultos, que acabam sempre por favorecer um ou outro grupo “
bem colocado” ou “bem posicionado” para influenciar “os mercados”, por via de
norma, a seu favor. Pacífica, legal e civicamente nós recebemos esses resultados,
como se se tratasse de um fatalismo, esperando que venha um dia, em que os
raios solares, venham direitinhos à sociedade em geral e a nenhum em
particular. O milagre aguarda-se, entretanto, cada um, à sua maneira, vai
vivendo à medida do possível, resistindo o melhor que pode e sabe, a esta
dinastia da regressão.
Numa, das muitas feiras de cariz popular, tão típicas
deste nosso país, as pessoas, feirantes e clientes, expressam, das mais
diversas formas, as suas frustrações e ansiedades.
— Por uma camisa, ainda vá lá… agora você está a pedir
cinco euros por umas cuecas?
— Ai senhora, não se vá embora, quer levar uma camisa e
umas cuecas? Dê-me oito euros e não diga nada a ninguém.
— Mesmo assim… Onde é que já se viu, que umas cuecas
custem tanto como uma camisa?
Escandalizada, a D. Henriqueta continuou a sua prospecção
não deixando de murmurar contra a carestia da vida. Parava aqui e ali,
procurava o preço, discutia-o e não conseguia espremer o dinheiro. Mais à
frente, começou a ouvir uma voz feminina que não parava de dizer:
— Hoje venho doida, hoje venho doida, vou esvaziar este
carro nos vinte minutos em que me deixam trabalhar! Venham clientes, venham cá,
porque ninguém vos vende mais barato do que eu. Vou já começar por estas
colecções de lenços de assoar.
— Olhem que lindos, isto são paisagens francesas, são um
luxo, verdadeira seda! E repentinamente, dirige-se para um homem que a ouvia.
— Leve senhor, para oferecer à sua esposa, e sabe que
mais, saíram da fábrica por vinte euros, mas hoje, nem são vinte, nem são
quinze, nem são dez, hoje dá-me uma nota de cinco euros e leva esta lindíssima
colecção para dar à sua patroa.
A D. Henriqueta, estupefacta, observava a multidão que à
volta do veículo, com uma nota de cinco euros, procurava apanhar ainda uma
caixa com a atrativa coleção. Em cima da viatura, para além da mulher, um homem
que aparentava ter idade semelhante, ajudava-a, chegando-lhe o produto a
entregar aos clientes. E num ápice, ouviu-se:
— Acabaram, já não há mais lenços.
A labuta continuou e ela vendeu lençóis, panos de
cozinha, conjuntos de banho, uma infinidade de coisas e rematou em jeito de
exclamação e ar cansado:
— E para terminar… Despacha-te homem! Olha que o tempo
não perdoa e o Gaspar ataca! Agora, povo do meu coração, tenho aqui uma peça de
luxo. Esta colcha. Serve para porem em cima da cama nos dias de festa. Vejam
só, isto é uma ferramenta que não é para qualquer um… Uma peça destas,
normalmente, só se vê em casa de senhores doutores. E o preço? Quanto acham que
vão dar por este artigo de alta categoria? Vai ser muito dinheiro, não vai?
Isso, é o que vocês pensam, mas eu não vos minto. Hoje é para arrebentar, ou
vai ou raxa! O meu homem até já me disse que estou a estragar toda a nossa
vida. Mas, eu, Rosa da Silva, não sou de me ficar e respondi-lhe “Não te metas
no negócio… Não te intrometas e deixa-me é trabalhar”. Vamos lá então. Esta
colcha, numa daquelas lojas finas lá da cidade, está marcada por quanto, sabem?
Pois, eu vou dizer-vos. No mínimo não a encontram por menos de cento e
cinquenta euros. É cara não é? E o dinheiro custa a ganhar… Aqui, não vos vai
custar 150, nem 125, nem 100… Nesta altura ouve-se o marido:
— Eu maluca, chama-lhe como quiseres, mas… calas-te,
porque cá a Rosa só tem uma palavra.
Do meio das pessoas, alguém disse:
— Tenha cuidado, olhe que ele não aguenta, ainda a deixa…
Replicando de imediato e com o seu ar brejeiro,
respondeu:
— Ó santinha, já diz aguenta como o Uirique dos bancos? Olhem,
lá em casa, na nossa cama, temos uma colcha destas. Todos os dias são dia de
festa, mas os foguetes “Ai aguenta, aguenta!” estão proibidos enquanto me
lembrar do Uirique. E quem não gostar de me ouvir que vá comprar ao Uirique!
Ora essa!
Ai! A Rosa esqueceu-se de pôr o trema na palavra da publicidade (ü)!
ResponderEliminarMas não faz mal.
É sempre agradável, e mais eficaz, o humor ao serviço da crítica. Gostei, José Luís!
Este é realmente o género em que considero que melhor te enquadras: a critica mordaz, satirica, cheia de humor e muito, muito perspicaz. Já assisti muitas vezes a cenas destas nas feiras e acho que fizeste um retrato muito real. Se tivesses tirado uma fotografia não teria ficado tão bem: faltava-lhe o som da palavra.
ResponderEliminarE porque não tentar, neste registo, uma peça de teatro? Estou convencida que ficaria muito bem e estou certa que apareceriam interessados para a levar à cena.
Belo retrato satírico, em várias direcções, com uma linguagem fluente e em bom ritmo discursivo, repondo cenas correntes de "banha de cobra" em habituais feiras provincianas. Temos alma de escritor adoçada com graça e leve ironia. Parabéns!
ResponderEliminarJá sabia que escrevias bem, mas não te imaginava a teres jeito para seres um vendedor de feira como a Rosa...
ResponderEliminar...é que pelo realismo só me deixa a pensar que terás passado ao lado de uma grande carreira ao lado do Quaresma, da Rosa e seus amigos.
Felizmente ao lado na carreira de escritor não passaste. Tens andado escondido mas começas a revelar-te!
E desde já lanço um desafio aos autores do blog:
e porque não um livro ao estilo do "Código de Avintes" ?!
Estilo só mesmo por ter sido escrito por vários escritores que se divertiram em misturar vários tipos de escrita, pois cada um de vocês tem um estilo pessoal e concerteza seria uma experiência bastante engraçada!
Parabéns!
Contnuem que queremos mais!
Anteriormente lançámos um repto ao Daniel, mas pelos vistos gosta mais de comentar. Também não está nada mal, mas como quem sai aos seus...era capaz de ser muito giro vermos o seu talento. Avance Daniel, ficamos todos à espera.
EliminarZé Luis, só tu para me fazeres rir quando me doi tanto o meu joelho.
ResponderEliminarConsegues sempre escrever com um humor fantástico e atual que nos leva a pensar que este é realmente um mau momento para todos nós.
É sempre bom lêr o que escreves,continua meu amigo, consegues sempre predispor-me bem.
O que acabei de ler é um retrato vivo e tão real das feiras. Cada vês me surpreendes mais. Muitos parabens
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