sexta-feira, 20 de maio de 2016

Ia chegar atrasada

©Albertina Vaz 

Tinha saído a horas mas uma turbulência inopinada obrigara o piloto a esperar nova oportunidade de aterragem. E ali estávamos, em voo planado, a circundar a cidade cujas luzes se começavam a divisar. Tremia de impaciência. Isto era tudo o que não queria e aí estava a realidade: não havia qualquer hipótese – ia chegar atrasada.
Ía chegar atrasada
Atravessei, em passo de corrida, os corredores intermináveis do aeroporto e aguardei, outra vez, numa impaciência sem medida, a bagagem que persistia em aparecer depois de todas as outras. Quase me apetecia sair sem ela mas aquele sentimento de pertença impediu-me de sair dali. Finalmente: lá estava ela.
Só dei por mim quando me vi de novo numa fila interminável. Desta vez era o táxi e todas as pessoas que, à minha frente, faziam questão de chegar, elas também, a horas. Martelava-me na cabeça a certeza de que o avô estava sozinho em casa e lhe tinha prometido que jantaria com ele. Chegas sempre tarde, não vale de nada pedir-te para respeitares as minhas horas. Não tens sequer horas. Nem para mim, nem para ti, nem para ninguém. Vida de viajante não dá felicidade a ninguém.
Esta corrida em que a minha vida se transformara estava a doer-me cada vez mais. Deixei de ter os meus silêncios, as minhas leituras, as palavras que gostava de escrever. Até deixei para trás os olhares, os gostos, os sorrisos.
Estava a chegar e uma chuva miudinha chegava comigo. Como se nada mais bastasse para me desesperar. Até aquela chuva irritante vinha festejar o meu atraso. Meti a chave na fechadura e entrei. A medo e em sofrimento.
Apressei-me nas desculpas: o voo que atrasara, a bagagem que não chegava, muitas
Alva, como a neve
pessoas e poucos táxis e até a chuva. Um turbilhão de palavras. E de desculpas. Só então reparei que o avô, imponentemente, estava sentado no topo da mesa, com um sorriso no rosto, imperturbável. Nem me ouvira sequer. Olhava para um e outro lado e ia distribuindo sorrisos e abraços. Amigos imaginários? Ou simplesmente a doença a avançar?
Olhei à sua volta e percebi que a toalha de renda, bordada pela avó, se espalhava pela mesa. Alva, como a neve. Linda como nenhuma. Tudo estava meticulosamente pensado: o serviço de jantar dos dias de festa, o talher de prata, os copos de cristal. No centro, um arranjo de flores vermelhas pendia de um arabesco, como se de uma cascata se tratasse. Dois candelabros de velas acesas deixavam cair, em gotículas pendentes, a cera que se acumulava num prato que as circundava. O cheiro a cera queimada dava ao ambiente um certo ar de mistério que se tornava envolvente.

quinta-feira, 12 de maio de 2016

Noite Velha

Isabel Maria ©

Lentamente o manto
De seda azul
Vai dando lugar
A um manto diáfano
Escuro de cetim…
Mais uma vez
A noite venceu o dia!                       
Agarro o tempo
A lua encantada
Renova de brilho
O meu quarto é todo luz
Dou voltas no sono
Que deixo subitamente
Fugir…
Vagueio na noite acordada
Espreito a lua
Sonho com olhos ávidos de sono
Que vou ser feliz.
Agarro o tempo
Olhando um fio de luz
P’ra me guiar…
Noite
Noite de sonhos e medos
Noite etérea e vadia
De perfumes a levitar
Velha noite dos meus sítios
Onde os mistérios da lua
São meus segredos e ilusões
E se confundem com sons
Na minha voz
Que na tua voz flutua!...


Isabel Maria ©2016,Aveiro,Portugal

sexta-feira, 6 de maio de 2016

Carta à minha mãe

 ©Idalinda Pereira

(A ser entregue no dia do meu nascimento)


Ainda não sabias que estavas grávida, mas eu já existia.
Eu sabia que era fruto do amor, de uma paixão, e não do acaso ou de um descuido.
Eu vivia em silêncio, dentro de ti, e tu continuavas a ignorar-me. Foi necessário haver uma explosão hormonal para te provocar tonturas, enjoos e mau estar - eureka! Aí fez-se luz!
Então, pela quinta vez, segredaste ao ouvido do meu pai: estou grávida. Fiquei mais tranquila porque ia ser reconhecida.
Quando se deu a minha divisão celular, senti-me muito aflita e tive que te roubar muita energia, porque precisava de oxigénio para a formação do meu cérebro, ossos, vasos sanguíneos, músculos e todos os meus órgãos, o que te causou um grande stresse e muito nervosismo. Eu chamava por ti, mas mesmo sabendo que eu já existia, continuavas indiferente até mesmo ignorando-me!.. Só passados sessenta dias, é que tomaste plena consciência de que, nas tuas entranhas, havia um novo ser e que eras a pessoa mais importante para ele! Então começaste a ajudar-me.
Tiveste cuidado com a tua alimentação, mais horas de descanso, pediste ajuda especializada para que nada me faltasse, sabias que só assim eu viria a nascer saudável, perfeita e escorreita, como é o desejo de todas as mães.
Gostei muito de me aninhar no teu ventre e permanecer nele durante as várias fases do meu crescimento e desenvolvimento: ovo, embrião e feto.
Através da placenta, deste-me tudo o que eu precisava. Sei que sofreste, o teu stresse aumentava, mas não eras a única. Eu. por vezes, também ficava muito irrequieta com falta de oxigénio; tu não respiravas corretamente e eu tinha que aguentar com o meu stresse e com o teu! Mas depois passavas a mão na tua barriga e eu acalmava, sentia-me bem.

domingo, 1 de maio de 2016

AMOR DE MÃE

 ©Maria Celeste Salgueiro 




Deste-me, minha Mãe, a vida, o ser.
Foste na minha infância o sol, o guia;
Ensinaste-me a andar, a escrever,
A ver, além das coisas, a poesia!

Foste a amiga que todos sonham ter,
Pronta para ajudar em cada dia;
Foste o meu lenitivo no sofrer,
Comigo te alegraste na alegria!

Tu deste-me um amor ilimitado
Que nada pede em troca, dá sómente,
Como outro assim não há desinteressado.

Hoje o pranto é um rio que inda corre...
Mas, minha Mãe, tu estás sempre presente,
Quem é sempre lembrada, nunca morre.


Maria Celeste Salgueiro ©2016,Aveiro,Portugal

segunda-feira, 25 de abril de 2016

A Sinceridade na política existe? Uma palavra que parecia ser mágica

 ©Gil Gilardino

A palavra “SINCERIDADE”, por muito paradoxal que possa parecer, nasceu de uma mentira.

Os estudiosos da semântica contam, segundo reza a lenda, que no tempo do antigo Império Romano se vendiam estátuas com mármore rachadas.Para disfarçar as feridas destas infelizes estátuas, enchiam-se as rachas de cera e, assim, os escandalosos mercantes eram tão prósperos como pouco honestos.Os comerciantes honestos alertavam os seus clientes de que as suas estátuas eram “sem-cera” … e a palavra nasceu.

As diferentes palavras tais como sinceridade, verdade e mentira possuem um forte significado simbólico.Na actual sociedade a simbologia das palavras perdeu o seu peso, criando um vazio pouco confortável para quem todos os dias deve confiar na ética assimilada ao papel da honestidade.

Cada vez com menos transparência social se aumenta a opacidade nas nebulosas dos relacionamentos, no lugar de proporcionar espaços cristalinos do verbo, procurando equidade nos valores da sinceridade ou na verdade.

Em tempos que já foram, existiam nas diferentes sociedades certas tendências espirituais com diferentes filosofias, ateias ou religiosas, garantindo valores sociais, proporcionando uma certa ordem cívica.

Actualmente assistimos a uma verdadeira apoteose da palavra sinceridade da parte dos políticos actuais, horas de comentário nos canais de televisões com eminentes constitucionalistas a analisar todas as versões da importância da palavra DEMOCRACIA. O mesmo consiste na palavra desportivismo - parece que já ninguém sabe interpretar o compreender a expressão delas.Um famoso concílio no século 1101 D.C. deliberou o celibato dos padres, mas, paradoxalmente, os primeiros discípulos do nosso Jesus Cristo eram quase todos casados.

domingo, 10 de abril de 2016

O Patrão

©Vitor Sousa

O Zé já nem lia os jornais, uma morbidez abafada consumia-o por dentro como um fogo pardo.
O olhar vivo deu lugar a um semblante cabisbaixo, as rugas afagavam-lhe a cara em jeito de carícia de morte.
O Zé já nem lia os jornais
A tenacidade, o desafio e o gozo de intempérie desvaneceram como tarde triste em fim de Outono.
Os bancos levaram-lhe tudo, nem uma casita a cair de madura nas encostas da Lousã, herança do seu avô, escapou à fome métrica dos vampiros.
Deixaram-lhe a mesa, duas cadeiras e a cama no apartamento alugado onde ele ainda chafurda memórias entre cartas, escritos e fotos, de um passado recente.
O Artur, amigo de sempre, entretido com o emaranhado da sua pequena mercearia, estranhou a ausência do Zé.
Meteu pernas à velha escada de madeira e, depois de uma ascensão rangida de três andares, bateu à porta.
O Zé saltou na cadeira num sobressalto pasmado.
Ficou inerte na incerteza da visita…
Quem será? Que lhe quereriam mais?
Uma voz afável e ofegante ouviu-se do outro lado.
- Anda lá Zé, vamos beber um cafezito, abre-me essa porta.
Tremulo a lívido, pouco refeito do susto lá abriu a porta e, em tom de desabafo, diz:
- Ainda bem que vieste, já estava aqui a magicar umas ideias pretas que nem te digo…
...abafar tempestades que lhe
secavam o alento
Lá foram na tagarelice de circunstância, abafar tempestades que lhe secavam o alento.
- Não podes ficar aí a remoer a vida, distrai-te homem!
Ouve lá…Queres que te arranje uma companheira?
Pergunta o Artur em tom de riso.
- Só tu me farias rir, num tempo destes…
A conversa desanuviava o desnorte enquanto beberricavam o café.
O Zé lá ia descarregando a mágoa em sulcos de desespero.
- Sabes Artur, foram quarenta anos de descontos, de trabalhos, de salários, de contas, de medos, de muitos nadas que se transformaram em coisa nenhuma.

segunda-feira, 4 de abril de 2016

Velhos são os trapos

Maria Jorge

Com a esperança de vida a aumentar, tanto a nível particular como a nível oficial, foram criadas diversas condições para as pessoas envelhecerem com mais qualidade de vida.
Proliferaram universidades seniores nos grandes centros urbanos. De norte a sul do país, principalmente na região interior, câmaras, juntas de freguesia e também a comunidade local, criaram condições para ajudar os seniores a terem uma velhice com mais dignidade.
O nosso povo, com as suas características próprias, é multifacetado e, talvez por isso, também de fácil adaptação a novos desafios. E quem, com a nossa idade, já fez desaparecer do nosso cérebro um sonho que nos acompanha desde criança?
Aprender uma nova língua, tocar viola ou outro instrumento qualquer, dançar, fazer jardinagem ou artesanato, ginástica, natação, pintar, conhecer novos sítios e novas gentes, viajar para fora do país, fazer voluntariado, tirar o curso superior que tanto ambicionava e tantas, tantas coisas mais. Pois é, mas, por diversas razões, nunca tivemos possibilidade para isso.
Quantas vezes já não ouvimos alguém dizer: “agora é que eu estou a viver a minha vida” ou então: “temos de aproveitar enquanto temos tempo para isso” e ainda: “agora tenho, para os meus netos, o tempo que nunca tive para os meus filhos”. E que dizer dum grupo de mulheres que se intitulam “as mulheres de Bucos”, todas já reformadas e orientadas por uma estilista, que, desde a criação das ovelhas, passando pela fiação da lã e do acabamento final, fazem peças de vestuário, mostrando ao mundo que aquela arte faz
parte da história dum país e não pode morrer. 
Despedirmo-nos do mundo do trabalho e aceitar a nossa reforma é sermos donos do nosso próprio tempo e, dentro das nossas possibilidades físicas e mentais, poder usufruir daquilo que a vida ainda tem para nos oferecer.
Será pura ilusão o que, de algum tempo a esta parte, está a acontecer no nosso país. Qualquer estação de televisão apresenta diariamente programas com muito pouco conteúdo, todos iguais entre si, mas baseados, segundo estatísticas, nas audiências. 

quinta-feira, 24 de março de 2016

As delícias de um banco


José Luís Vaz

— Ufa… Bom dia!
— Bom dia. Está cansado? E eu a julgar que só me acontecia a mim…
Um banco localizado num ponto estratégico do parque, sombreado por farta copa de árvore que filtrava os raios solares mais intensos e dava guarida a tenro vento que granjeava às pessoas a frescura do descanso procurado. Albergue da solidão de alguns, local de encontros conversados ou mesmo advento de amizades não programadas, aquele banco era detentor de tantas conversas, de tantos segredos, de tantas intimidades, que ai se ele falasse?!…
Hoje era anfitrião de um sexagenário que, bastante gasto pela vida, pousava ali o seu corpo, após caminhada recomendada pelos médicos, não fosse a ociosidade pregar das suas a quem em tanto stress tinha vivido. Local tão cobiçado, proporcionou-lhe, passado pouco tempo, a companhia de um jovem de boa aparência atlética que do exercício tirava prazer, tentando aliviar de tensões inevitáveis aos tempos de hoje.
— Acontece a todos. Percorri, em passo de corrida, cerca de seis quilómetros tendo, ultimamente, feito isto poucas vezes. E sente-se logo a diferença. 
— Claro, a quem o diz. Basta falhar um dia e no dia a seguir já é o cabo dos trabalhos: os músculos ficam presos, as articulações perras, nada ajuda e tudo se torna mais difícil. Eu tento fazer isto com uma certa regularidade, mas nem sempre calha e olhe, já estou como diz o outro, “o óptimo é inimigo do bom” e vai-se andando com o tempo. E o meu amigo, o que é que faz?
— Ainda sou estudante, estou a ultimar o meu doutoramento. Por isso, nem sempre consigo conciliar as obrigações académicas com as desportivas, pelo que vou tentando dividir-me.
— Quer dizer, dentro de algum tempo, será Doutor. Oxalá que tudo lhe corra bem.
— Obrigado. Mas disso não tenho qualquer certeza. Sabe, uma das razões porque enveredei pela continuação dos meus estudos foi, exactamente, não ter arranjado emprego quando terminei a licenciatura. Ainda estudei a hipótese de emigrar mas os meus pais apoiaram-me, ou melhor continuaram a assumir as minhas despesas, e só temo não lhes dar a felicidade de me verem realizado. Então e o senhor, já está reformado?

segunda-feira, 21 de março de 2016

POESIA

Maria celeste Salgueiro


Atravessando a noite dos meus dias
Vens até mim sem eu te pressentir
Rasgando o nevoeiro à minha frente...
Vens na luz dum poente,
No aroma de uma flor
Escorrendo de um muro;
Numa sílaba que caminha
Para o coração dum poema;
No ar que tremula
A desfazer-se em luz;
Num grito de gaivota,
Num riso de criança,
No brilho das folhas
Molhadas pela chuva;
Na luz do sol a prumo,
No luar que eu piso no caminho;
No rumor dos pinheiros
Abraçados pelo vento;
No mistério das coisas
Onde o silêncio estremece...
Porém, como vieste doce e calma,
Sem eu te pressentir,
Assim também partiste,
Deixando na minh´alma
Janelas por abrir!...


Maria celeste Salgueiro ©2016,Aveiro,Portugal

sábado, 19 de março de 2016

Não sei que te diga, nem sei se te diga

Albertina Vaz 


Não sei que te diga, nem sei se te diga.
Não sei se sou capaz de falar das palavras, dos dias que corremos juntos, que passeámos de mão dada junto ao rio, que te ouvi e me ouvi, em que te confessei segredos, em que partilhámos sonhos, em que seguraste a minha mão e me levaste a transpor um degrau difícil, um obstáculo penoso.
aquela mão que me segurava
Não sei se sou capaz de recordar aquele sorriso dos teus olhos, aquela mão que me segurava, ou a tua voz grave que me prevenia dos caminhos tortuosos e serenava as minhas dúvidas quando o desconhecido me assustava ou o ignoto me atraía. 
Não sei se vou conseguir esquecer aquelas manhãs de sol, as gaivotas a circularem à nossa volta e os patos em fila a fugirem perseguidos pelo gato e tu e eu a rirmos até cairmos numa alegria feita esperança e sol nascente.
Não sei se ainda me lembro daqueles dias em que as nossas vozes se cruzavam e se digladiavam discordando e discutindo como se o mundo fosse acabar no dia seguinte, ou mesmo naquele dia. Não sei se me recordo dos dias em que nos deitámos de costas voltadas e de testa enrugada como se nunca mais houvesse possibilidade de voltarmos a apertar as nossas mãos.
Não sei se vou esquecer aquele circo repleto de animais e palhaços e acrobatas a que assistíamos juntos saboreando a magia de que tanto gostávamos e o feitiço duma noite diferente em que a tua mão prendia a minha e eu vivia o sonho de estar contigo e estarmos juntos.
Não sei se ainda me lembro da primeira vez que me levaste a ver um filme com uma história de fantasia em que a quimera se transformava em devaneio e a utopia se instalava sem receio, como se a vida de cada um de nós se esgotasse ali, naquele segundo, naquele instante.

domingo, 13 de março de 2016

Mulher

Isabel Maria 

Ouvi teu grito
e chorei!
Com o teu lamento
estremeci
Mas cantei
quando tu cantaste               
Teu querer é infinito
e com o teu sorriso                   adormeci!...

Tuas mãos afáveis e meigas
São doces como o luar!
Macias como o veludo
E a fragância do mar!...

No silêncio da Natureza
abriu-se um botão em flor!
Também tu, mulher,
dás vida ao mundo
com tanta beleza e amor!...

Mulher
cheia de afecto e doçura
Teu querer é infinito!
Ultrapassa mares e montanhas
Em busca dum grito aflito!...

Isabel Maria ©2016,Aveiro,Portugal

segunda-feira, 7 de março de 2016

De flor se escreve Mulher

Albertina Vaz 

Um dia vou sair por aí, bem de madrugada, a colher as flores que brotam da terra esventrada, onde um pingo de chuva fez nascer uma pétala florida. E vou ficar espantada ao desvendar a menina, feita margarida (flor da inocência), que surge do nada e cresce sem dar por isso. E vou perceber que, um dia, ela se veste de anis e acredita numa promessa que caiu do céu, em dia de bonança. Depois, na asa de um pensamento, vou colher um amor-perfeito e a menina será mulher. Aí, vou correr, a pé, pela estrada deserta e descobrir que cada mulher se traja de açucenas, numa angústia de fim de tarde, quando a calma tem cheiros a alfazema e a vida a obriga a colher flores de alecrim que lhe asseguram a coragem premente, num tempo em que o trabalho faz escravos sem direitos nem leis.

Mulher romance, numa amurada, olhando a onda que se desfaz num quase nada, numa campânula feita admiração dos que a vêem e não perdoam o ciúme dum ciclâmen ou o poder duma coroa imperial. E vou cantar a felicidade e passear por entre as flores do campo que quebram a brisa e adoçam a mulher que corre, corre, sem dar por nada ou sem o querer.

Depois, agarra um gladíolo, como um encontro desejado e ergue-se orgulhosa num girassol que se alteia diante da desgraça e se renega quando a rosa branca, menina inocência, vagueia por aí vestindo-se de simplicidade e denudando-se diante da sua irmã a rosa vermelha, senhora paixão.

E lá vai, feita dente de leão, flor da vida, com uma dália ao peito, flor da delicadeza, e um amor ardente dum cravo branco, bem dentro do seu coração. Mulher desejo, mulher beleza, mulher música, mulher certeza e multidão. É nas esquinas, nos becos, no escuro da noite, à beira da estrada que vende o seu corpo e chora aterrada, feita flor de laranjeira, em dia cinzento, que o nevoeiro esmagou na mão. E aquela mágoa vai com ela, pela estrada fora, vai a correr e de mansinho, vai devagar, passa o caminho.

E de mulher se renova em mãe e aceita ser jasmim, flor da bondade sem fim. Colhe um crisântemo branco, flor da verdade e cobre-se com uma dália rosa, cheia de delicadeza. E dias há em que a tristeza a invade e corre a esconder-se num jacinto que se admira num riacho, ou num junquilho que se entrelaça sobre si mesmo e fica para ali a balbuciar violetas e a querer lealdades.

E mulher é mudança e medo e melancolia e mentira e verdade e acaso e afeição. E mulher é amante e rosa vermelha, paixão que germina numa angústia, numa ansiedade, numa ausência dum caminho que se cruza e se trança numa multidão feita criança, num coração ou numa crença duma felicidade que o futuro apetece ou quer.

domingo, 28 de fevereiro de 2016

O Actor


Vitor Sousa



Vistam-se os feitiços
Com adereços do esmero
Encimados de cúpula e chapéu.
Pisa o teu palco.
Avance o cenário das miragens
Com muita cor, lua e água limpa.
Tragam escritos de viagens.
Declamem-se etéreas, as paisagens
Açudes negros e profundos.
Medos e ódios imundos.
Amores rosa e violeta
Em clareiras de água benta.
Não te quede o coração
Perante o correr do tempo
Por cansaço ou ilusão
Desgaste ou humilhação.
Perde o teu ar moribundo
E ousa mudar o mundo!
Troca o fio ao sentimento.
Ao racional e ao vento.
Remexe na tradição.
Eleva o teu pensamento
Na procura do encanto.

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2016

COMO TUDO COMEÇOU!!!

Idalinda Dinis Pereira


Há muitos anos atrás, eram muitos os óvulos que viviam nos seus ovários, mas, um deles amadureceu e rebentou transformando-se em corpo amarelo. Vivia triste coitado, num mundo incompreendido.
Uma vez por mês, assomava à janela, pois queria companhia… Mas, impossível!.. Estava condenado a viver um curto período de tempo. E, tristemente, recolhia-se à sua humilde casinha, mergulhado numa imensa solidão!.. Tal era a sua dor, que derramava lágrimas de sangue, mas só uma vez por mês.
O milagre da vida
Todos os meses isto se repetia, e lá estava o corpinho amarelo na esperança de encontrar alguém que o compreendesse e lhe fizesse companhia… Até que, um dia, fez-se luz! E no céu apareceram milhões e milhões de visitantes em constante correria e alta concorrência para ver qual deles conquistaria o corpinho amarelo, pois só um podia ser o vencedor.
Corpinho achou aquelas figuras muito estranhas… Com uma cabeça oval e uma cauda tão comprida e disforme que, aos seus olhos, não servia para sua companhia nem tão pouco para tirá-lo daquela solidão! E assim, mais uma vez, teria que voltar à sua casa e derramar aquelas lágrimas sanguíneas, provocando-lhe uma dor incomportável.

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2016

LOUVY


Conceição Cação 


Aquele frango a rodar, douradinho, ali mesmo à frente dos olhos. Sentava-se a contemplar o petisco, não arredava pé, ali ficava quietinho, só os olhos acompanhando o movimento rotativo do espeto. Tão perto e tão longe! O cheiro apetitoso enchia a cozinha e invadia-lhe as narinas, mas a robustez daquele vidro tornava o forno uma fortaleza inexpugnável. Uma provocação! Eles comiam do bom e do melhor e para ele sempre aquela ração. Que era a recomendada pelo veterinário, que tinha os nutrientes certos para se manter saudável e patati patatá. Pois sim, estava farto dessa conversa. Nas suas longas horas de lazer, a ampla cabeça repousando na almofada do Mickey surripiada do quarto das miúdas,  começou a congeminar uma ideia… E tomou uma decisão. Naquele dia, após o passeio matinal, recusou-se a tomar o pequeno almoço – a imagem daquela carninha suculenta povoava-lhe o cérebro, absorvia-lhe por completo o pensamento, só de olhar para aquela mistela pardacenta ficava com o estômago em rebuliço.
...ficava com o estômago em rebuliço
– Que se passa, Louvy? Estás sem apetite?
– Ão, ão, ão…
Tentou uma entoação de protesto, mas sem sucesso. Vendo bem, melhor assim – não levantaria suspeitas. Fingindo dormitar, ficou à espera duma oportunidade. E ali estava ela: depois de temperar uns bifinhos de vitela bem tenrinhos, a Belita foi à porta. Era uma vizinha. O cheiro inundava o corredor… Não havia que hesitar, não podia recusar essa dádiva do destino. Hum! Que aspeto delicioso! Mesmo crus, aposto que não são menos saborosos que o frango. E comeu, comeu, saboreando cada bocadinho como se fosse a satisfação dum último desejo dum condenado.
Ao regressar, a dona encontrou-o a tremer, a tremer descontroladamente.

domingo, 14 de fevereiro de 2016

NA LUZ DO TEU OLHAR

Maria Celeste Salgueiro



Com a janela aberta
Eu estava suspensa
Em silêncios de espera...
Era uma noite calma,
Noite de Primavera
Que fazia sonhar...
O ar estava parado,
Não se ouvia um ruido.
A lua derramava a sua luz
Nas pedras da calçada.
Não havia ninguém
Na sombra rente ao muro
Lembrando uma serpente.
Mas eis que, de repente,
O vulto que eu esp´rava apareceu.
Um som surdo de passos
Encheu a minha rua
Até que tu surgiste
Em frente da janela
Aberta par em par.
Meu coração bateu
Num ritmo apressado
Para depois parar.
E nessa noite calma,
Noite de Primavera
Brilhante de luar,
Deixei de estar suspensa
Em silêncios de espera
Para ficar suspensa
Na luz do teu olhar!...


Maria Celeste Salgueiro ©2016,Aveiro,Portugal

terça-feira, 9 de fevereiro de 2016

O PODER NÃO TEM ASAS

Albertina Vaz 


Vagueava pelas ruas da cidade admirando-se por não se cruzar com ninguém. Está cada vez mais só e mais cinzenta a cidade dos homens. Dos homens? Ou dos animais feitos homens? Ou dos homens que parecem animais?
Gostava de admirar uma narceja
Lá estava ele – sempre filosofando como se as narcejas não estivessem ali. E estavam, bem visíveis e bem altivas. Gostava de admirar uma narceja, no seu esplendor recatado, de quem sabe que o é e não aceita que lho digam. Era assim que avistava aquela ave, quando, de manhã, abria a janela do quarto e abraçava mais um dia.
Travava os olhos devagarinho e, pelas frinchas semicerradas, perscrutava o horizonte e descia do longe até junto de si – era aí que encontrava sempre a narceja residente que, queiramos ou não, teimava em não sair dali.
Conjeturara muitas vezes porque é que aquela ave permanecia ali. Às vezes pensava que era o mar que a prendia, outras, imaginava algum macho furtivo que viria de noite, quando todos dormiam, fazer-lhe a corte e desafia-la para voos de terras distantes e mares de paragens longínquas. Mas não – ela ali ficava envelhecendo como tudo à sua volta.
Nem sei mesmo se se dava conta de que o tempo ia passando porque se mantinha,
Valia a pena continuar a esperar?
estática e serena, de olhar parado e ouvido à escuta de alguma coisa ou de alguém que havia de já ter chegado. Mas ainda cá não está. Será que virá algum dia?
Ali à volta tudo parara no tempo e mesmo que alguém resolvesse chorar, doendo de tanto sofrer, ninguém daria conta nem ninguém correria a saber de que se tratava – era como naquelas cidades grandes, onde o barulho camuflava os sentimentos e os pássaros emigravam para longe.
Valeria a pena continuar a esperar? A narceja esperava calmamente cada dia que voltava sempre mesmo depois de uma longa noite, quando a lua se não via e no céu as estrelas deixavam de tremelicar. A narceja estava ali como dantes, quando as ruas tinham cravos e as portadas das janelas se iluminavam cada dia com um tumulto de corridas de roda e risos de crianças, que iam e vinham, apertando num abraço a cidade, num laço que se prende e que não se solta sem dor.
Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...