Albertina Vaz
Vagueava
pelas ruas da cidade admirando-se por não se cruzar com ninguém. Está cada vez
mais só e mais cinzenta a cidade dos homens. Dos homens? Ou dos animais feitos
homens? Ou dos homens que parecem animais?
Gostava de admirar uma narceja |
Travava
os olhos devagarinho e, pelas frinchas semicerradas, perscrutava o horizonte e
descia do longe até junto de si – era aí que encontrava sempre a narceja
residente que, queiramos ou não, teimava em não sair dali.
Conjeturara
muitas vezes porque é que aquela ave permanecia ali. Às vezes pensava que era o
mar que a prendia, outras, imaginava algum macho furtivo que viria de noite,
quando todos dormiam, fazer-lhe a corte e desafia-la para voos de terras distantes
e mares de paragens longínquas. Mas não – ela ali ficava envelhecendo como tudo
à sua volta.
Nem
sei mesmo se se dava conta de que o tempo ia passando porque se mantinha,
estática e serena, de olhar parado e ouvido à escuta de alguma coisa ou de alguém
que havia de já ter chegado. Mas ainda cá não está. Será que virá algum dia?
Valia a pena continuar a esperar? |
Ali
à volta tudo parara no tempo e mesmo que alguém resolvesse chorar, doendo de
tanto sofrer, ninguém daria conta nem ninguém correria a saber de que se
tratava – era como naquelas cidades grandes, onde o barulho camuflava os
sentimentos e os pássaros emigravam para longe.
Valeria
a pena continuar a esperar? A narceja esperava calmamente cada dia que voltava
sempre mesmo depois de uma longa noite, quando a lua se não via e no céu as estrelas
deixavam de tremelicar. A narceja estava ali como dantes, quando as ruas tinham
cravos e as portadas das janelas se iluminavam cada dia com um tumulto de corridas
de roda e risos de crianças, que iam e vinham, apertando num abraço a cidade,
num laço que se prende e que não se solta sem dor.
Tempos
houve em que os homens daquela terra se reuniam à noitinha, quando os pássaros
chegavam em bandos à procura daquela árvore que os acolhia nos seus braços que
se alongavam mar adentro, num chamamento com sabor a sal. Uma canção dolente embalava
as crianças e adoçava a voz dos velhos prevendo maus tempos para o futuro.
Tinham razão os velhos |
Tinham
razão os velhos. Eles sabiam que a verdade era um valor que devia ser
preservado e que ser livre não era apenas deixar as palavras fluírem e as ideias
esvoaçar. Eles sabiam que ser livre é poder escolher, é ser justo e poder agir,
é virar as costas aos dias e fazer das horas o minuto em que tudo se constrói e
em que a semente que se lançou à terra há de nascer um dia e crescerá e dela
brotará uma flor – bela como tudo o que floresce.
Durante
muito tempo, procurámos a liberdade e um dia – o dia dos sonhos – acordámos com
a certeza que éramos livres. Como a narceja que voava em círculos meio loucos
de ave liberta em dia de festa. Até que bateu com a cabeça na árvore do lado e
feriu a asa. Levantou-se com o sorriso cúmplice daquelas coisas que também
acontecem.
Alguns
dias depois, vieram bandos de pássaros e invadiram-lhe a casa – aquela era a casa
onde crescera, criara os filhos e se tornara livre. No dia em que a liberdade
foi um dom, uma dádiva, uma iguaria servida à luz das estrelas.
Não
eram muitos os pássaros mas tinham no olhar a força do poder. E o poder
derramava-
se por entre eles. As suas asas enormes, abertas, medonhamente
batiam, batiam até que à sua volta tudo se estilhaçasse. Voavam por cima das
narcejas que eram muitas, muitas mais mas que foram perdendo, pouco a pouco, o
brilho dos olhos, a graciosidade do andar e a alegria de viver.
E o medo acomodou-as. |
E o
medo acomodou-as. Tinham medo de voar, tinham medo de cantar, tinham medo de
sorrir e até tinham medo de amar ou viver. Estranho dia aquele em que o sol –
por muito quente que estivesse – só lembrava os dias chuvosos e agrestes dum
inverno que se não quer.
Já
não havia comer por ali, já não havia sol e até a lua parecia ter-se escondido
nas noites em que o luar construía estradas de paredes brancas e vozes sem som.
As narcejas não queriam lutar – eram livres e bastava-lhes gritarem-no ao vento
que se avizinhava lá para as bandas do norte. Eram livres e já não queriam
sonhar mais. Eram livres – eram livres!
E
foram emudecendo, calando os gritos dentro de si, soluçando os soluços que já
não saiam, agarrando as lágrimas que rugiam mais fortes, instalando a inércia,
a rotina, o cansaço – instalando-se.
Partir seria a solução? |
Um
dia, uma acordou com uma ideia que não queria e lá foi falando de partir à
procura de uma terra em que o poder não fosse só de alguns e onde todos
partilhassem a alegria da vida e o dom de viver. E lá foram – uma a uma – com o
peito estilhaçado e a saudade no olhar.
Partir
seria a solução? – inquiriu a narceja de penas coloridas e asas peregrinas.
Andavam para ali a apagar chamas, a fugir do poder, a correr à frente de aves
gigantes, a fugir, a fugir… A fugir de quê? E de quem?
E lá
estava ele a contar a história das narcejas, sem que ninguém ouvisse – estava
só, na cidade deserta e cinzenta, não tinha ninguém que o ajudasse a pegar fogo
àquela terra sem nome, onde a vida estava a terminar.
Olhou
a narceja e viu-a prostrada, tentando esconder a cabecita sob a asa aberta e
cheia de tantas cores e foi assim que entendeu que só quando perdemos o brilho
dos olhos é que começamos a morrer.
Albertina Vaz ©2016,Aveiro,Portugal
Um texto com alma. Toda a alma!!
ResponderEliminarAs tuas narcejas lembram-me as gaivotas de Abril e o brilho dos olhos dum povo que ousou festejar a Liberdade e ter esperança em dias melhores. Os teus "pássaros que tinham no olhar a força do poder" serão os Vampiros do nosso Zeca, que têm devorado liberdades e saqueado o pão de muitas mesas.
ResponderEliminarUm texto doce portador de uma mensagem muito forte que, eventualmente, poderia ser: BASTA, BASTA!
Uma metáfora carregada de sentido, um belo texto.
ResponderEliminarDe Elisabeth Seixo recebemos o seguinte comentário:
ResponderEliminarUm texto reflexivo sobre o "poder" - sobre quando, mal usado (e tende a sê-lo em quase todas as situações) -, afecta a vida de tanta gente - e como é difícil combatê-lo - quando as forças nos abandonam! Parabéns, Albertina!
De Jorge Neves recebemos o seguinte comentário:
ResponderEliminarBelíssimo texto e mensagem! Parabéns!
Palavra escrita
Palavra dita
E uma amizade bonita!
Dia feliz e inspirado, amiga das palavras!
Abraço
De Idalinda Pereira recebemos o seguinte comentário:
ResponderEliminar"Um texto de grande mestria que nos suscita vários sentimentos como a solidão, o amor e a esperança de uma liberdade que tarda em chegar. Gosto muito do que escreves. Parabéns."
De Aldina Duarte recebemos o seguinte comentário:
ResponderEliminar" Que deslumbramento!...que maravilha!...que texto!..Obrigado Albertina por me proporcionares este prazer!..."
De Teresa Cardoso recebemos o seguinte comentário:
ResponderEliminar"Parabéns, Albertina por este bonito texto!"