Albertina Vaz
Um
dia vou sair por aí, bem de madrugada, a colher as flores que brotam da terra
esventrada, onde um pingo de chuva fez nascer uma pétala florida. E vou ficar
espantada ao desvendar a menina, feita margarida
(flor da inocência), que surge do nada e cresce sem dar por isso. E vou
perceber que, um dia, ela se veste de anis
e acredita numa promessa que caiu do céu, em dia de bonança. Depois, na asa de
um pensamento, vou colher um amor-perfeito
e a menina será mulher. Aí, vou correr, a pé, pela estrada deserta e descobrir
que cada mulher se traja de açucenas,
numa angústia de fim de tarde, quando a calma tem cheiros a alfazema e a vida a obriga a colher
flores de alecrim que lhe asseguram a
coragem premente, num tempo em que o trabalho faz escravos sem direitos nem
leis.
Mulher
romance, numa amurada, olhando a onda que se desfaz num quase nada, numa campânula feita admiração dos que a vêem
e não perdoam o ciúme dum ciclâmen ou
o poder duma coroa imperial. E vou
cantar a felicidade e passear por entre as flores
do campo que quebram a brisa e adoçam a mulher que corre, corre, sem dar
por nada ou sem o querer.
Depois,
agarra um gladíolo, como um encontro
desejado e ergue-se orgulhosa num girassol
que se alteia diante da desgraça e se renega quando a rosa branca, menina inocência, vagueia por aí vestindo-se de
simplicidade e denudando-se diante da sua irmã a rosa vermelha, senhora paixão.
E
lá vai, feita dente de leão, flor da
vida, com uma dália ao peito, flor da
delicadeza, e um amor ardente dum cravo
branco, bem dentro do seu coração. Mulher desejo, mulher beleza, mulher
música, mulher certeza e multidão. É nas esquinas, nos becos, no escuro da
noite, à beira da estrada que vende o seu corpo e chora aterrada, feita flor de laranjeira, em dia cinzento, que
o nevoeiro esmagou na mão. E aquela mágoa vai com ela, pela estrada fora, vai a
correr e de mansinho, vai devagar, passa o caminho.
E
de mulher se renova em mãe e aceita ser jasmim,
flor da bondade sem fim. Colhe um crisântemo
branco, flor da verdade e cobre-se com uma dália
rosa, cheia de delicadeza. E dias há em que a tristeza a invade e corre a
esconder-se num jacinto que se admira
num riacho, ou num junquilho que se
entrelaça sobre si mesmo e fica para ali a balbuciar violetas e a querer lealdades.
E
mulher é mudança e medo e melancolia e mentira e verdade e acaso e afeição. E
mulher é amante e rosa vermelha,
paixão que germina numa angústia, numa ansiedade, numa ausência dum caminho que
se cruza e se trança numa multidão feita criança, num coração ou numa crença
duma felicidade que o futuro apetece ou quer.
Mulher
que chora e já não cheira a flor, mulher que implora túlipas amarelas – esperanças de amor – e brisas de mil cores; e
desejos, destinos e deveres e direitos. E mulher que implora quando a papoila, flor do sonho, a desperta e a
empurra até à mimosa, flor da
segurança, que lhe permuta revolução por razão, e liberdade por silêncios ou
servidão.
E
mulher é vento, é casa, é família, é certeza, é conquista e derrota, é cair e
erguer-se, é distância e discórdia, é dor, é angústia, é existência, é uma camélia que se reconhece ou um amarílis que se orgulha, numa anémona que teimosamente persiste em
viver de pé.
Mulher
é subir em bicos de pés, até ao cume do êxito sabendo que, ao seu lado, a
desigualdade continua a fazer-lhe frente e a dificultar-lhe a caminhada. E aí
se enfurece: é força, é raiva, é fim, é génio e alquimia, é justiça e lágrima
que cai, é noite e nascer do dia. Mas é também loucura e luta, é palavra, é
livro que brota dum poema ou dum povo que acordou poesia. E, pobre heroína dum
romance sem corda ronda a ironia e cheira a passado, numa paz sem perguntas ou
numa prisão sem pressas.
E
gere os seus filhos, e sorri ao futuro, e renasce em cada gargalhada, em cada
esperança, em cada gesto, em cada história, em cada ilusão. Mulher guerreira
que lança suas garras e fere quando a indiferença ou a injustiça lhes tocam ou
atiram ao chão.
E
transforma uma acácia amarela – um
amor secreto –, numa adelfa – uma
sedução -, e com uma camélia branca –
flor da virtude -, surge esplendorosa transportando a flor-de- lis cuja mensagem é a esperança dum dia novo numa galáxia
diferente.
E
mulher é riso, é segredo, é sombra, é paraíso, é o que for preciso e ainda glicínia, flor da ternura, ou gerbera, flor da alegria, ou gerânio, senhor do capricho ou da
devoção. E mulher é recordação, realidade, resposta sem sono, é sofrimento, é
tempo, é tentação.
Por
vezes perde a força: um sentimento que se esgota, uma saudade que se instala,
um segredo que se cicia, um silêncio que chega e surge a solidão. Depois
descobre-se numa palavra, revolta-se contra a violência, insurge-se contra a
vontade de ficar quieta à espera do nada que há-de chegar.
É
mulher, é mãe, empresária de sucesso que sobe a pulso, degrau a degrau, o
caminho que acalenta quem, na sua sombra, dorme e sustenta o destino dos que
sem lei navegam, em mares revoltos, e saem impunes duma dúvida, dum erro, dum
fracasso que se faz medo e humilhação.
E
reinventa-se sempre que a vida lhe pede mais, perde-se, procura-se e
encontra-se sempre que se levanta, sempre que nasce um dia novo ou a noite
desce sobre a cidade.
Por tudo isto eu sei que
não é mulher quem quer e ninguém escolhe ser mulher.
Albertina Vaz ©2016,Aveiro,Portugal
De Aldina Duarte recebemos o seguinte comentário:
ResponderEliminar" Parabéns Albertina!...eu não escolhi,mas gosto de ser,cada vez mais!..."
De Fernanda Brito recebemos o seguinte comentário:
ResponderEliminar"Maravilhoso!
Parabéns Mulher!!!"
De Maria Silvia recemos o seguinte comentário:
ResponderEliminar"Obrigada, TININHA, pela partilha de tão belo texto!!!! Comentei dentro do Blog, mas sem êxito.... pois não seguiu. Parabéns pela Maravilha!!!! Abraço!"
De Júlia Carrolo recebemos o seguinte comentário:
ResponderEliminar"Lindo.Gostei muito.A realidade feita poesia.Um grande beijinho."
De Idalinda Pereira recebemos o seguinte comentário:
ResponderEliminar" Num bosque onde todas as flores reinam e de onde floresce a mais bela das belas, a "MULHER". Um texto que nos emociona pela sensibilidade e mestria de historiador. Qual poeta que se diz, o faria melhor? Ser "MULHER", não é quem quer, mas quem pode. Parabéns Albertina e a todas as MULHERES."
Li,reli e voltei a ler.É um texto extraordinário pela beleza estética, pela riqueza literária e pela tão alta dignidade com tratas um tema que te é absolutamente intrínseco.
ResponderEliminarSinto enorme orgulho de ser companheiro de uma MULHER assim.
De Celeste Heleno recebemos o seguinte comentário:
ResponderEliminar"Obrigada Amiga pela flor, e por ter postado tão belo poema! Beijinho."