segunda-feira, 25 de agosto de 2014

A descoberta de uma paixão

Fernanda Reigota


Ficara estranha e subitamente amante de fotografia. E quantas vezes partia para a caça de imagens e só noite feita regressava!
Uma bela manhã, ainda o Sol se não erguera, partiu com outros fervorosos adeptos da caça de imagens únicas. Encaminharam-se para o cimo da serra, por uma cerrada mata e por um caminho de poucos conhecido. Pararam uns momentos para degustarem a música de uma cascata que se adivinhava. A frescura que os salpicos lançavam em redor acariciava a pele sofrida pela subida. Mais que uma vez, dobrada a encosta, tinham conseguido surpreender o encanto de testemunharem o beijo da noite a despedir-se do dia que começaria o seu reinado de luz clarificadora. Uma vez tinham até estacado perante a hipótese de fixarem a imagem daquele veado que quase se deixara surpreender a matar a sede, numa alvorada já quente do mês de maio. João tinha em casa esse troféu. Fora o único a conseguir a composição perfeita e a luz excelente. Ainda hoje se interrogava sobre a expressão do olhar do animal apanhado no momento de iniciar a fuga.
O sol nascera enfim. Ao longe, o mar era um reflexo único de um dia que se adivinhava esplendoroso. Mas no fundo dos vales que iam dar à costa, grandes rolos de nevoa ainda preguiçavam o doce aroma que a noite lançara sobre a terra. Duas boas horas já haviam passado e nem um enquadramento especial, nem um ângulo para realçar uma copa perfeita de árvore, nem uma pedra evocadora de uma figura…
Aquele grupo de caçadores de imagens porfiava serra acima. Em breve apontariam as objetivas ao trajeto ascendente do Sol, ao contraste dos variados verdes da serra ponteados por pequenos lagos tão brilhantes que simulavam os olhos da serra espantando-se com a magnificência de mais um esplendoroso dia de maio. Não faltavam manchas de alfazema, caminhos ladeados pelo amarelo da giesta, verdes mimosos dos rebentos novos dos pinheiros, árvores a vestirem-se de folhas macias para se juntarem à festa da renovação da natureza…
Na azáfama da preparação do material, apenas se ouvia a voz esperta e fresca das águas e, ao longe, o marulhar solto da vaga tímida.
Alguém apontara a teleobjetiva para o mar e, emocionado, sussurrava como se não quisesse espantar a caça que tão perto dele parecia estar. No alvoroço do achado, ele imaginava-se já a estender a mão e a tocar o filhote de baleia que nadava atrás da mãe, calmamente, traçando os dois uma linha paralela à costa.
Naquela manhã tinham à sua frente o alvo perfeito: lento, majestoso, raro e enquadrado por um contexto que a todos seduz, o mar!

A retina tinha a festa da imagem, o ouvido tinha o estralejar de múltiplos e constantes disparos.

Ficara estranha e subitamente amante de fotografia.


Fernanda Reigota ©2014,Aveiro,Portugal

terça-feira, 29 de julho de 2014

A lista de Shindler

“A Lista de Schindler” - Sinopse

No período da Segunda Guerra Mundial um homem tenta ganhar dinheiro com o trabalho forçado dos judeus nas fábricas. O nome dele é Oscar Schindler, alemão com influências na polícia secreta do partido nazista de Hitler.

O filme representa a indelével história deste enigmático personagem, mulherengo e especulador de guerra, que salvou a vida a mais de 1100 judeus durante o Holocausto. Foi o triunfo de um homem que fez a diferença no drama daqueles que sobreviveram a um dos capítulos negros da história da humanidade, salvos pelo que ele fez.

A lista de Shindler

“Aquele que salva uma vida salva o mundo inteiro”

O sol incandescia por entre as folhas amarelecidas das árvores – era um dia sem história ou uma história que se repetia todos os dias. Arrastava-se pelas ruas que serpenteavam um bairro velho e degradado: nada ali o prendia e nada ali o agarrava. Os companheiros da universidade tinham partido em projectos imaginosos e imagináveis, cheios de talentos e de sucessos. Os amigos - alguma vez tivera amigos? - tinham seguido as suas vidas, constituído famílias, procurado empregos ou trabalhos e deixaram de ser vistos.
- sem eira nem beira - 
Ele continuava por ali – sem eira nem beira - sem saber que rumo dar à sua vida ou que caminho fazer para a tornar diferente. Era certo que mantinha boas relações com os companheiros que circulavam à volta do poder - nos meandros dos seus corredores, tudo ainda se conseguia com um simples gesto ou umas meias palavras. A família abrira-lhe portas e facultara-lhe espaços sem necessidade de subir os degraus, tão difíceis para alguns.
Mas nem tudo lhe soava bem: queria construir alguma coisa com as suas mãos, alguma coisa que marcasse um estilo, que ficasse ali, com a sua marca e perdurasse para sempre. Para sempre? Não seria isso muito tempo, não significaria muito trabalho, algum dispêndio da sua energia e algum consumo daquilo que lhe era gratuitamente disponibilizado?
O bulício da cidade que trabalha agarrou-o de uma forma irresistível: homens e mulheres desfilavam, como protagonistas de um filme a preto e branco, vergados pelo peso de um dia desgastante, acelerando um passo em direcção a não sei que lugar ou que destino. Jovens velhos, sem aspirações nem sonhos, descrentes de um mundo onde já não havia sol e as nuvens cobriam assustadoramente os passos cadenciados em ritmo de corrida. Novos grisalhos, sem ocupação e sem sonhos, encolhidos nos bancos dispersos à procura de uma mão, de um sorriso, duma presença.
E de repente, por entre aquela amálgama de gente sem vida, uma sombra que ganha contornos de cor naquele filme a preto e branco - uma criança que corre serpenteando por entre os vultos estáticos, quase parados, da cidade que vai morrendo. Saltitando ora num pé
...uma sombra que ganha
contornos de cor
ora noutro, preenche de cor a paisagem nevoenta que há muito não se deixava invadir pelo sol. E a criança continua a correr e a cantar e a encher de vento um moinho de papel que acaba de construir com as suas próprias mãos.
A cor daquela visão toma-o de assalto e leva-o dali agarrando a vontade de iniciar alguma coisa, em algum lugar. Não seria difícil manipular meia dúzia de gentes de influência e influentes e pôr de pé aquela fábrica que há tanto remexia na sua cabeça e lhe proporcionaria uma vida fácil e um lucro certo. Era só aproveitar-se da situação que se espalhava um pouco por todo o mundo e dar-lhes o que eles queriam: trabalho!

quarta-feira, 23 de julho de 2014

Pronto para recomeçar


Pronto para Recomeçar - Sinopse

Desempregado, Nick agrava a sua dependência do álcool. Enfrentando problemas com a bebida, acaba por se desentender com a mulher, que despeja tudo o que é dele no jardim de casa. Na tentativa de recomeçar a vida, coloca à venda, à beira do passeio, tudo o que tem. Um novo vizinho pode ser a chave para que o quotidiano de Nick recomece de novo.


Pronto para recomeçar

Diego e Helena eram um casal como tantos outros, com um bom emprego, uma vida social ativa, sem filhos.
O facto de não terem filhos permitia-lhes uma vida com algumas extravagâncias e tempo para viajarem, quando possível, para países que sempre quiseram visitar.
Diego estava ligado a uma multinacional que negociava em consumíveis, era diretor do departamento de vendas. O seu trabalho levava-o muitas vezes a ausentar-se para fora da zona de residência e até do país.
É sabido que uma vida profissional intensa leva a que socialmente se seja ativo e a que se cometam alguns excessos, que noutro ramo, com menor exigência, poderiam ser evitados.
O casamento estava em crise
Diego e Helena estavam casados há quase oito anos. O casamento há muito que estava em crise; o facto de não terem filhos, as frequentes ausências e o vício do álcool do marido, a falta de comunicação entre o casal, estavam a destruir uma relação em que o amor era recíproco, mas em que o respeito e a harmonia estavam quase que diariamente a ser postos em causa.
Posto pela esposa perante a possibilidade de uma separação se não mudasse o seu tipo de vida, Diego assumiu finalmente que tinha um problema grave com o álcool.
Filho de pais alcoólicos, a sua predisposição para o álcool era um fator de grave risco para uma cura. Assim, Diego e Helena resolveram fazer terapia de grupo e frequentar um centro de recuperação de alcoólicos.
Estava a ser difícil, mas o casal sentia que pela primeira vez em muito tempo, estava a obter resultados.
Helena rodeava de cuidados o marido para que ele não sentisse vontade de prevaricar; as saídas para o exterior é que eram uma constante preocupação pelo risco que representavam.
No emprego, Diego estava a passar por algumas dificuldades; era um técnico altamente qualificado, pago em função dessa mesma qualificação e dos resultados que daí advinham, mas os erros cometidos sob o efeito do álcool e as despesas inerentes, levavam a que a empresa já o tivesse advertido de que a sua posição não estava muito segura.

domingo, 6 de julho de 2014

Pai, ouve-me!

Kramer contra Kramer - Sinopse

Para Ted Kramer, o trabalho vem antes da família e Joanna, sua mulher, descontente com a situação, sai de casa, deixando Billy, o filho do casal, com o pai. Ted, então, tem de se preocupar com o filho, dividindo-se entre o trabalho, o cuidado com ele e as tarefas domésticas. Quando consegue ajustar-se a estas novas responsabilidades, Joanna reaparece exigindo a guarda da criança. Ted, porém recusa-se e os dois vão para o tribunal lutar pela custódia de Billy que é entregue a Joanna. No dia marcado para ir buscar Billy a casa de Ted, e já à porta do prédio, decide não sujeitar o filho a uma nova etapa de instabilidade. Entra para comunicar a sua decisão e todos ficam a ganhar.


Pai, ouve-me!

Personagens

CAIO, homem jovem, alegre e feliz, aguarda, numa sala de partos, o nascimento do seu primeiro filho. Sente-se absolutamente preparado para o receber.
HUGO, o filho, coração e mente cheios de sabedoria, tem urgência em ter uma conversa com o pai antes de nascer.
Ato Único
O ventre que acolhe Hugo, por pouco mais tempo, irradia uma luz quente e intensa. Um foco potente ilumina Caio, que agarra carinhosamente a mão da mulher.

HUGO
(Em tom perentório)
Pai, não te assustes, eu quero falar contigo.
(Caio levanta-se e olha admirado para a barriga da mulher, notando uma forma repentinamente diferente. Sorri perplexo.)

HUGO
Pai, eu quero falar contigo.
(Decidido a fazer-se ouvir)
Não falta muito para eu nascer e eu preciso de te ensinar umas coisas. Quando nos olharmos olhos nos olhos, passarei a ser por muito tempo uma criatura desprotegida. Agora, ainda tenho a sabedoria primordial deste paraíso em que me encontro.

CAIO
(Puxando a mão da mulher ao peito.)
O que se passa, Guida?

HUGO
Pai, deixa a mãe. Ela precisa de estar tranquila para que a naturalidade deste ato não se desvaneça.

CAIO
Seja, filho. Mas não te preocupes, eu e a tua mãe fomo-nos preparando muito bem para sermos pais conscientes…

HUGO
Sim. Eu sei que me vais dar banho, vestir, mudar a fralda e essas coisas…

CAIO
Claro…

HUGO
Mas, olha, se um dia eu quiser ser um cachorrinho, tu fazes de cão grande para brincarmos? Se eu quiser pintar com as mãos, tu depois tiras-me a tinta toda? Vais ser capaz de fazeres de pai natal na escola e em casa? Vais ter paciência para brincares às escondidas no nosso pequeno apartamento? Vamos poder fazer piqueniques com muita aventura e apenas a comida suficiente?...

domingo, 29 de junho de 2014

A última corrida

Vamos hoje dar inicio a um ciclo de trabalhos sob o tema  Mensagem paralela à de um filme. Para mais facilmente compreendermos de que filme se trata apresentaremos previamente a Sinopse e o seu original título.

                                                                  A MILLION DOLLAR BABY - Sinopse

Afastado da sua filha, Frankie (Clint Eastwood) revela uma grande dificuldade na aproximação aos outros, e apenas lhe resta o amigo Scrap (Morgan Freeman), um ex-lutador de boxe que cuida do ginásio de Frankie. É então que entra em cena, em seu ginásio, Maggie Fitzgerald (Hilary Swank), que sempre teve pouco da vida, mas que ao contrário de muitos, sabe bem o que quer e tem a determinação necessária para o alcançar. O ambos não sabem é que terão de enfrentar um desafio que irá exigir mais coragem e alma do que podem imaginar...                                                                    

A última corrida

“Estava-lhe no sangue”— diziam muitos dos que todos os dias a viam passar naquele passo determinado e convincente de que aquela vontade ainda haveria de mover montanhas. Fizesse chuva,  fizesse  sol  ou  o  vento  fosse  de  norte  ou  de  onde quer que viesse, aquela
Gostava de correr.
menina franzina fazia-se à estrada ou a qualquer caminho seco ou lamacento, sempre de olhar lúcido mas com um brilhozinho, bem lá no fundo, daqueles olhos crentes no seu esforço e dedicação. Desde bastante pequena que gostava de correr e cedo começou a fazê-lo só porque os outros não lhe igualavam a passada e ela não conseguia prescindir de satisfazer aquela vontade que lhe vinha lá de dentro. A pouco e pouco e, apesar dos parcos recursos de que dispunha, foi adquirindo uma autoestima que a compensava da deficiente alimentação e das condições de bastante pobreza em que vivia com a sua família. Os recursos que não existiam eram substituídos por uma força de vontade fora do normal.
Um dia, numa associação recreativa, lá da freguesia, assistiu à projeção de um DVD sobre a grande campeã olímpica e mundial Rosa Mota. Ela ficou maravilhada, ficou emocionada, ficou contente, ficou louca, ela ficou completamente cismada em todos os pormenores daquele filme. Nos dias que se seguiram corria, corria e as imagens, umas atrás das outras, eram as da Rosa Mota? Eram suas? O sonho passou a fazer parte da sua vida e a intermitência vivida entre ele e as condições reais da sua vida começaram a despertar nela uma lucidez até agora não sentida. Como poderia ela pintar um quadro sem tela, sem pincéis, sem tintas...
Correr podia fazê-lo em qualquer lado
A família nada tinha e a luta pela sobrevivência era já fado suficiente. Tinha que ir para a cidade e lá arranjaria trabalho para poder subsistir. Correr, podia fazê-lo em qualquer lado, precisava era de descobrir quem a ajudasse.
Um saco pequeno, pouco havia para levar, acompanhou-a na aventura de quem tudo quer mas nada tem, ou melhor, para quem sonhar se tornou num direito só porque a sua enorme vontade lhe sustentava o nada que tinha.
Passaram-se dez meses e a Helena, Lena, para os amigos e familiares, começava, finalmente, a percorrer os caminhos da vida assente numa estabilidade periclitante que ela equilibrava com a sua poderosa força de vontade. Ela tinha um sonho, correr com técnica, com saber, segundo as regras que uma campeã tem que aplicar. Para o conseguir, tinha que ultrapassar muitas carências com a sua persistência e querer. De trabalho precário em trabalho precário ia conseguindo um mínimo que lhe permitia viver num quarto partilhado com uma rapariga que como ela angariava o sustento do dia a dia. Inscrevera-se num clube de atletismo e usufruía de orientação técnica que muito estava a contribuir para melhorar as suas performances.

segunda-feira, 16 de junho de 2014

Fui ver nascer o Sol

Fui ver nascer o Sol. Tinha decidido: amanhã vou observar o nascer do sol. E ainda as árvores do meu jardim se espreguiçavam no lânguido e pesado escuro, já eu, sorrateiro, me esgueirava pela artesanal porta do quintal. Queria, por inteiro e com todo o detalhe, presenciar o aparecimento do sol, entre a penedia das fráguas, o primeiro contacto da sua luz com a cortina verde dos freixos e amieiros adjacentes às águas do rio e ver a calculada reacção da seara verde das espigas, que ondulavam na ladeira do velho monte. 
Fui ver o nascer do sol.
Antes que a familiar escuridão desse qualquer sinal de se dissipar, assaltou-me uma inconsciente apreensão do que sucederia se o sol não viesse, por se ter enganado no seu percurso, por capricho da sua natureza, por se ter enredado e entretido em amores com alguma estrela jovem, que as deve haver lindas, - fruto das últimas explosões dos buracos negros! – ou, quiçá, por se propor assustar o seu sistema solar, nomeadamente a Terra ou qualquer outro planeta mais reguila ou mais distraído. Mas a razão respondia à minha apreensão imaginária, afirmando-me com o argumento da ostensiva tradição, que, sem GPS, o astro rei, embora já com alguns truques, no seu “curriculum vitae”,- a fazer acreditar milagres, por determinismo ou ordem superior,- sempre foi fiel na sua rota, e, por isso, aceitava que a sua constância na pontualidade virá a ser por muitos milhões de séculos até se tornar insolvente de combustível, e obrigado a desaparecer por inacção ou esgotamento ou a fundir-se em ritos de magia e de esplendorosa luz. Na minha natural limitação cheguei ao cimo da enrugada e velha encosta em menos de meia hora, com passo bem meditado, e por ali fiquei, entre o contemplativo e o ansioso, a aguardar qualquer sinal anunciador da primeira réstia de luz, que testemunhasse a aproximação da força, do poder, e do fausto, do grande astro solar. 
...odor de plantas bravas
A expectativa envolveu-me, em afagos de um perfumado odor de plantas bravas, adoçando-me a derme com anunciados elementos que me pareceram de messiânica novidade de que algo ia acontecer. Ouvi com apreensão, o quebrar do silêncio ainda meio adormecido, o contínuo e manso ressonar do rio, a afirmar e a lembrar, no fundo do vale, a sua presença, com a água, que se adivinhava, a esgueirar-se do açude pela garganta das grandes pedras ali expostas pelas razões da natureza, seguindo o caminho rasgado e ajustado, nos tempos idos, pela tenaz força do caudal. A lua sorrateira já se havia recolhido no seu quarto minguante, vestida de mistérios de penumbra, cumprido o percurso, sem ter deixado qualquer mensagem meteorológica digna de apontamento. Algumas casas da aldeia com fumos enrolados a sair das chaminés, davam sinais de que alguém havia abandonado o aconchego do leito para se fazer ao dia, rente a chegar. A penumbra atenuou a sua densidade em jeito

quarta-feira, 11 de junho de 2014

Ilusão

Estendo meu olhar sobre o mar
Nesse êxtase mergulho meus sonhos
Cada onda é um desencontro
Neste turbilhão que é a vida…
Tapo os olhos com pétalas de sal
P’ra não ver
A menina da minha ilusão
Na espuma branca desaparecida!...

Olhos d’água, cabelos de luz
Cobertos por um véu
Atados por um laço de maresia
Essa menina
É agora uma mulher que corria
Atrás da vida, que teimosamente venceu…
Sua quimera um lamento
Guarda nela a ternura que lhe deu!...

Isabel Maria ©2014,Aveiro,Portugal

terça-feira, 3 de junho de 2014

Indecisas Contradições

EVOLUIR agradece ao autor o envio deste texto para publicação


Caminhante são as contradições                    
manhã azul
vontade de trabalhar
tarde pálida
silêncio grita libertar                                 
Decide-te...
acordas
levantas-te em amor
deitas-te
adormeces em dor
Caminhante
ser é fantástico
ser é sofreviver
sempre ser é utopia
deixar de ser é agonia
Decide-te
sonhas que entras
acordas que não queres
vives que consentes
deitas-te que não te interessas
umas vezes mereces
outras vezes merecem
cedes
cedem
somos
seres que se contradizem
todos os dias
a todas as horas
porque temos medo
porque amamos
e queremos ser amados
a sábia humilde dolorosa consciência
que sozinhos somos nada
nem essência
Decide-te
preto e branco
sol e lua
bom e mau
puro e impuro
tão duro este duelo
entre ti e tu
queres ser bom mas não capacho
livre a pertencer a um lugar
este lugar plurar
incerto mas maravilhoso
Ó caminhante
que assim não o sentisses
que ruínas ficariam
se tua alma de gesso fosse?
Decide-te
se Deus ou o Diabo
vais falhando e decidindo
um dia é imenso
somos imensos
a contradição em movimento
a balança em perpétuo equilíbrio
és roda que gira
entre o arrependimento e a honra
por isso és humano
fraco e forte
e a terra gira
e tu também


Albertina Silva Monteiro ©2014,Aveiro,Portugal

sábado, 31 de maio de 2014

QUANDO ERA CRIANÇA…


Quando era criança, nos dias de verão,
Bem cedo acordava, o sol no nascente.
Corria na praia feliz e contente
Com sonhos na alma e o balde na mão.

A areia macia lembrava um colchão…
Deitava-me nela e o mar estava em frente.
A água era morna, a luz era quente
E a brisa cantava no meu coração!

Juntava mil conchas, saltava os rochedos,
Sonhava ser ave, voar sem ter medos,
Ir fundo, bem fundo, no fundo do mar!

Fazia castelos na areia molhada…
A casa voltava feliz e cansada,
Na alma lavada o sol a brilhar!...

Maria Celeste Salgueiro ©2014,Aveiro,Portugal

segunda-feira, 26 de maio de 2014

Tanto ruído e silêncio

A manhã estava cinzenta e uma chuva miudinha não sabia a nada, nem mesmo a molhado. E afinal, incomodativamente, senti que o Inverno havia chegado mesmo sabendo que estávamos em Agosto e era suposto haver calor. Uma sensação esquiva de que qualquer coisa de anormal se estava a passar instalou-se no ontem que o amanhã via chegar.
Uma caminhada em direcção a nada
e a ninguém
Uma multidão de gente que se entrecruza e se acotovela num espaço desértico de ideias e projetos. Uma caminhada em direcção a nada e a ninguém. E no fundo, no mais recôndito sítio dos passos perdidos, sem tempo e sem graça, olhei o horizonte e fiquei-me por lá, perdida num lugar e num tempo em que comunicar e fazer silêncio se assemelhavam a situações idênticas, complementares e adicionais.
Encontraram-no na manhã seguinte. Já se haviam passado alguns dias, nem sei se semanas ou, digamos mesmo, meses.
Espanto atrás de espanto, foram desvendando de quem se tratava. Um homem de negócios, chefe de várias empresas, dono de um empório comercial e industrial invejável, conhecido no mundo da alta finança, rosto habitual em manchetes de jornais diários, comunicador apreciado nos meios intelectuais e políticos. Falava e encantava quem o ouvia ou os que com ele privavam.
Pai de quatro filhos, filho de pais especiais e núcleo central de uma família onde tudo girava à sua volta e tudo parecia em harmonia circular de acordo com a comunicação e o diálogo que sempre colocava nas suas relações.
Diz-se que contava com uma enorme multidão de amigos que se rendiam à sedução da
Diz-se que contava com uma enorme
multidão de amigos...
sua palavra e ao encanto da sua visão do mundo e do futuro. Não se submetia às crises nem ao imobilismo: movia-se em torno duma ideia nova ou dum projeto inovador. Se a luta era necessária víamo-lo na primeira fila, na linha da frente; se a negociação se impunha não a enjeitava, encabeçando um diálogo que tinha de dar frutos.
Um homem filho da comunicação e pai da arte de comunicar. Falava com os olhos, falava cm as mãos, com o rosto, com o corpo. Utilizava o sorriso como uma mensagem e o riso como um aviso, utilizava a gargalhada como um recado e as lágrimas como uma advertência, utilizava o silêncio como o matraquear dum teclado na folha em branco dum livro não começado ou duma palavra inacabada.

quarta-feira, 21 de maio de 2014

ENGANO

EVOLUIR agradece ao autor o envio deste texto para publicação
Julguei que tinha asas para voar

Julguei que era Mentira uma Verdade,
Tomei por Alvorada o Sol Poente;
Senti uma Certeza e fui descrente
E na Ilusão eu vi a Realidade!

Julguei-me caridosa e foi Vaidade
Na ânsia de ser outra bem dif´rente;
Orgulho eu o tomei por Humildade,
No fundo quis ser mais que toda a gente!

Julguei que tinha asas p´ra voar,
Que era capaz de altiva caminhar,
Levando como escudo a minha Dor!

Julguei que tinha Tudo sem ter Nada,
Pensei ter a Razão e estava errada,
Julguei que te odiava e era Amor!...    

Maria Celeste Salgueiro ©2014,Aveiro,Portugal
   

sábado, 17 de maio de 2014

O muro cego do poder

EVOLUIR agradece ao autor o envio deste texto para publicação.


E o corpo é um barco ancorado a uma liberdade a perder-se…
Cruzam-se as palavras na noite comprida
Sem soletrar à alma que o mundo se esvazia pelas dobras das mãos…
Engolem-nos os sonhos
Caiem de cansaço
Estreitam-se amargas pelas paredes
Que os dias desluzem…
Gritam-nos dores persistentes
Entranhadas e abafadas na pele…
Muralham-nos os olhos
Vestem-nos de ruas sombrias
Peregrinos de esquinas encurtadas ao tempo…
Rotina que marca um silêncio mastigado…
Um despejo das garras dos abutres
Soterram-nos a palavra que dançava na garganta
O fulgor dos dias claros
Secam-nos as lágrimas
Emudecem-nos as palavras
Arrastam-nos já áridos por um rio a fugir-nos do rosto
E o corpo é um barco ancorado a uma liberdade a perder-se…

Somos o medo desmemoriado de Ser…

Rosa Fonseca ©2014,Aveiro,Portugal


domingo, 11 de maio de 2014

Isabel, a perfeita

No regresso a casa parara numa chocolataria para saborear o bolo de chocolate especial que tanto lhe agradava. Apesar da chuva que persistia em cair continuamente há uma semana, Isabel sentia-se iluminada por dentro. Tudo indicava que a sua vida seria finalmente uma viagem na autoestrada da fama com muitos sorrisos de reconhecimento, muitas manifestações de apreço. 
Sempre lutara por uma oportunidade. Como técnica com formação superior, não desejava apenas trabalhar de forma gratificante e profissional para si e para a empresa. Sentia que era
Sempre lutara por uma
oportunidade
um ser superior e um verdadeiro destaque era-lhe devido. Afável e carinhosa com todos os colegas, principalmente com os do seu departamento, ouvia muitas vezes os seus problemas, os seus desabafos… E como ela sabia ouvir! Sabia como ninguém dizer o que mais animava no momento, como ninguém, também se prontificava a sacrificar a hora do almoço para ajudar um colega a ir resolver um problema a um banco, ou a uma repartição pública. Algumas vezes chegava a acompanhar colegas ou amigos a consultas médicas para não se sentirem sós, especialmente se havia suspeitas clínicas de poder ser um caso mais grave.
Se a empresa necessitava de ir a uma feira internacional para auscultar o mercado para lançar um novo produto, naturalmente Isabel integrava o grupo. Reservada no agir profissional, chegava às reuniões de avaliação das viagens, na empresa, com observações muito pertinentes, com dados que só ela tinha observado. Brilhava perante os chefes.
Auto-estrada da fama
Aquela bondade espontânea, aquela competência profissional, aquela dedicação à empresa já lhe tinham conseguido alguns destaques: naturalmente fora ela a escolhida para ir para os Estados Unidos fazer uma especialização académica na área de gestão financeira; agora, tudo indicava, e ela tinha fontes credíveis, que seria ela a integrar o conselho de administração para substituir um membro incapacitado.
Finalmente iria trabalhar ao lado dos representantes diretos dos acionistas, iria trabalhar com pessoas que dominavam no mundo da política e da finança.
Por isso, permitiu-se aquela pausa tão íntima para saborear aquele chocolate celeste, ver em todos os espelhos do salão o reflexo do brilho interior que sentia emanar, antever o espanto e os aplausos com que a sua família sempre recebia as suas vitórias tão naturais e as suas conquistas tão merecidas.

segunda-feira, 5 de maio de 2014

Ser ou não ser solidário

Vamos hoje dar inicio a um ciclo de publicações que denominámos –  Contradições do ser humano. Todos os que queiram colaborar podem enviar os seus trabalhos para os contactos do Evoluir que aparecem na página do blogue.


Começava o dia a acordar com aquela sensação horrível. Uma tempestade de chuva desvairada tocada por um vento sem destino que tudo arrastava. O barulho era ensurdecedor, estores, portas e tudo que abanasse faziam uma sinfonia completamente desafinada. Ainda na cama pensava:
Quantos não procuram um abrigo...
— Quantos não serão os que a esta hora resistem, procuram um abrigo, um plástico, a ponte ou o pontão mais próximo… A minha capacidade de ser solidário esfumava-se como o fumo que foge e se perde lá longe. E estava eu convencido de que era um ser solidário…
Arranjei-me e saí. Conduzia o meu automóvel com algum cuidado. A intempérie era assustadoramente violenta e podia atraiçoar o mais atento. De rádio ligado ouvia notícias nada animadoras sobre o que estava a acontecer por todo o país. O trânsito aumentava a todo o momento, congestionando a estrada — autêntica ribeira — que para alguns continuava a ser a pista de velocidade do dia-a-dia. Alguns quilómetros volvidos e na berma da estrada alguém me pedia boleia. A péssima aparência da pessoa amedrontou-me e hesitei entre o travar e acelerar. E, seguramente, passei por aquele homem de cabelos compridos, completamente encharcado, com a consciência a encontrar os habituais medos de circunstância: e se fosse um gatuno? Não, dar boleia não, o seguro não contemplaria qualquer acidente… nestas alturas temos que ser racionais… O meu egoísmo protegeu-se por inteiro, a minha pessoa não protegeu ninguém.
Era agora ultrapassado por uma ambulância do INEM que seguia atrás de um carro da
Ser solidário
mesma organização. Mais alguns quilómetros e lá estava um brutal acidente. Parei mais à frente e decididamente fui inteirar-me da dimensão da tragédia. Um carro desgovernado veio embater num outro, que seguia em sentido oposto, tendo ficado ambos abraçados numa medonha amálgama de latas. Foi uma ambulância com uma senhora, depois outra com um rapaz, ainda novo, uma outra com um homem calvo muito mal tratado, enfim, uma tragédia lavada e agravada pela forte chuva que teimava   em continuar.
Perto de mim alguém chorava quase sem se notar. Era um choro sofrido de angústia que vinha lá muito do íntimo de uma senhora que já não era criança e que ali junto à estrada anonimamente se limitava à única coisa que lhe restava: chorar.
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