“A Lista
de Schindler” - Sinopse
No período da Segunda Guerra Mundial um homem tenta
ganhar dinheiro com o trabalho forçado dos judeus nas fábricas. O nome dele é
Oscar Schindler, alemão com influências na polícia secreta do partido nazista de
Hitler.
O filme representa a indelével história deste enigmático personagem, mulherengo e especulador de guerra, que salvou a vida a
mais de 1100 judeus durante o Holocausto. Foi o triunfo de um homem que fez a
diferença no drama daqueles que sobreviveram a um dos capítulos negros da
história da humanidade, salvos pelo que ele fez.
A
lista de Shindler
“Aquele que salva uma vida salva o mundo inteiro”
O
sol incandescia por entre as folhas amarelecidas das árvores – era um dia sem
história ou uma história que se repetia todos os dias. Arrastava-se pelas ruas
que serpenteavam um bairro velho e degradado: nada ali o prendia e nada ali o
agarrava. Os companheiros da universidade tinham partido em projectos
imaginosos e imagináveis, cheios de talentos e de sucessos. Os amigos - alguma vez tivera amigos? - tinham seguido as suas
vidas, constituído famílias, procurado empregos ou trabalhos e deixaram de ser
vistos.
- sem eira nem beira - |
Ele continuava por ali – sem
eira nem beira - sem
saber que rumo dar à sua vida ou que caminho fazer para a tornar diferente. Era
certo que mantinha boas relações com os companheiros que circulavam à volta do
poder - nos
meandros dos seus corredores, tudo ainda se conseguia com um simples gesto ou umas
meias palavras. A família abrira-lhe portas e facultara-lhe espaços sem
necessidade de subir os degraus, tão difíceis para alguns.
Mas nem tudo lhe soava bem:
queria construir alguma coisa com as suas mãos, alguma coisa que marcasse um
estilo, que ficasse ali, com a sua marca e perdurasse para sempre. Para sempre?
Não seria isso muito tempo, não significaria muito trabalho, algum dispêndio da
sua energia e algum consumo daquilo que lhe era gratuitamente disponibilizado?
O bulício da cidade que
trabalha agarrou-o de uma forma irresistível: homens e mulheres desfilavam,
como protagonistas de um filme a preto e branco, vergados pelo peso de um dia desgastante,
acelerando um passo em direcção a não sei que lugar ou que destino. Jovens
velhos, sem aspirações nem sonhos, descrentes de um mundo onde já não havia sol
e as nuvens cobriam assustadoramente os passos cadenciados em ritmo de corrida.
Novos grisalhos, sem ocupação e sem sonhos, encolhidos nos bancos dispersos à
procura de uma mão, de um sorriso, duma presença.
E de repente, por entre
aquela amálgama de gente sem vida, uma sombra que ganha contornos de cor
naquele filme a preto e branco - uma
criança que corre serpenteando por entre os vultos estáticos, quase parados, da
cidade que vai morrendo. Saltitando ora num pé
ora noutro, preenche de cor a
paisagem nevoenta que há muito não se deixava invadir pelo sol. E a criança
continua a correr e a cantar e a encher de vento um moinho de papel que acaba
de construir com as suas próprias mãos.
...uma sombra que ganha contornos de cor |
A cor daquela visão toma-o
de assalto e leva-o dali agarrando a vontade de iniciar alguma coisa, em algum
lugar. Não seria difícil manipular meia dúzia de gentes de influência e
influentes e pôr de pé aquela fábrica que há tanto remexia na sua cabeça e lhe
proporcionaria uma vida fácil e um lucro certo. Era só aproveitar-se da
situação que se espalhava um pouco por todo o mundo e dar-lhes o que eles queriam:
trabalho!
Claro que o tempo não era
para grandes investimentos, a crise avolumava-se agigantando-se e adquirindo
proporções jamais previstas. Mas em tempos de crise - e a história provava-o
sistematicamente - os
audazes sabiam como aproveitar as dificuldades de uns tantos e usufruir da
necessidade de muitos em seu proveito. Era trabalho que queriam? Pois
dar-lhes-ia trabalho…
Era trabalho que queriam? |
Saiu dali satisfeito com
aquela garotita que passara a correr e lhe dera aquela inspiração fabulosa. A
sua vida tinha encontrado finalmente um rumo, um caminho seguro e fim desejado.
Quase a correr também partiu, envolvendo-se naquela multidão a preto e branco
de homens e mulheres curvados sobre o seu próprio peso.
Consultou meia dúzia de
conhecidos, inteirou-se dos sectores mais rentáveis, dos parceiros com que
podia contar, das ajudas da comunidade internacional, do financiamento que
poderia adquirir cá dentro e lá fora. Fez algumas consultas ao sector bancário,
procurou antigos companheiros a dirigir algumas empresas, inteirou-se do
sucesso ou do insucesso de certos sectores do mercado, apoiou-se nos
conhecimentos de alguns políticos de renome – conhecidos e desconhecidos - até falou com uns amigos
chineses e outros angolanos que lhe sugeriram a deslocalização para os países
emergentes da antiga África colonial e, pesando prós e contras, decidiu-se - nada como investir no seu
próprio país, disso estava certo!
E se bem o pensou melhor o
fez. Faltavam agora apenas as burocracias facilmente ultrapassadas pelos seus
amigos do poder - licenças,
certidões, autorizações, vistos adquiridos ou em processo de aquisição. Construídas
as instalações, obtida a necessária maquinaria apenas restava contratar pessoas
e essa era uma tarefa fácil. Não faltavam interessados que se disponibilizavam
a trabalhar com o mínimo dos mínimos porque, se um não queria, logo apareciam umas
centenas para o substituir.
E foi assim que a sua
empresa começou a laborar: com um investimento tão pequeno, salários tão baixos
e regalias sociais quase nulas foi relativamente fácil implantar-se no mercado
interno e lançar--se na exportação com um êxito tal que cedo foi considerado
pelo
poder como empresário de excelência e modelo a seguir.
Uma fila imensa de gente cinzenta |
Sentia que finalmente
encontrara um sentido na sua vida: sentou-se no terraço ensolarado do seu
gabinete, na empresa que apontavam como modelo e recostou-se ligeiramente
aproveitando o calorzinho daquele fim de tarde que se desenhava em tons quentes
na linha do horizonte. Ao longe descortinou uma fila imensa de gente que se
arrastava em tons cinzentos à hora de saída. E não entendeu: não era trabalho
que eles queriam?
Realmente nem sabia como
podiam viver com os magros salários que lhes pagava mas era assim que as
empresas davam lucro e progrediam. Claro que ele até poderia ganhar menos mas
isso estava fora de questão. Como havia de se lançar na internacionalização se
pagasse salários justos…? Estava tudo muito bem assim e era assim que iria
continuar. O encarregado da linha de produção andava há tempos a falar-lhe em
admitir mais empregados mas o director financeiro havia sugerido aumentar o
horário de trabalho e reduzir a hora de almoço. E essa era uma boa ideia que
tinha intenção de implementar.
Pouco lhe interessavam as
lamúrias de quem lastimava a falta de tempo para estar com os filhos. O prejuízo
que causavam quando não se apresentavam ao trabalho por terem de acudir a uma
doença duma criança ou por serem forçados a cuidar de um pai idoso e necessitado
de ajuda, fê-lo considerar medidas drásticas e muito duras. Um trabalhador
estava ali para trabalhar e não para reclamar melhores condições de trabalho.
Sorte deles era terem trabalho e disso não podiam esquecer-se!
E num daqueles fins de
tarde, quando aproveitava para usufruir do mar que se espraiava lá para os
lados da ténue linha do horizonte, distinguiu um aglomerado de gente à volta de
qualquer coisa ou de alguém que caíra na berma da estrada. E gritos de
desespero envolveram e destruíram o espaço perfeito em que tudo parecia
decorrer. Uma súbita curiosidade levou-o a descer do seu miradouro e abeirar-se
dos homens e das mulheres que saíam da fábrica e se debruçavam soluçando
baixinho – para não se ouvirem ou para não serem ouvidos.
Aquela criança não comia hà dias! |
À chegada do empresário,
foram-se afastando lentamente, abrindo um túnel de passagem e permitindo que o
patrão invadisse até os seus mais íntimos pensamentos. Ele caminhava depressa e
afoitamente e foi com espanto que voltou a ver aquela sombra de cor
desfalecendo nos braços de uma mulher. Ajoelhou-se e ali ficou, sem palavras, sentindo
um friozinho que lhe atravessava o corpo e dilacerava o pensamento: aquela
criança não comia há dias - o
salário que dava à sua mãe não chegava para suprir as necessidades da família e
a criança (filha da cor e da esperança) definhava e corria para a morte.
Afinal pouco havia mudado no
mundo à sua volta: eles queriam trabalho mas sentiam-se escravos. Trabalho sem
direitos, sem valores, sem repartição justa da riqueza gerada. Procurava
respostas para perguntas que nunca tinha feito a si próprio. A sombra de cor
que inspirara o seu presente estava a terminar ali, aos seus pés, quase sem
dor, quase sem um gemido ou um lamento.
-
Esta criança não está doente, tem apenas fome! - gritavam, por dentro, as vozes ensurdecidas
dos operários sem voz, na empresa que construíra para dar trabalho a quem
queria trabalhar.
Naquela noite manteve-se sem
sono e os seus pensamentos deslizavam como um turbilhão ou um vendaval que tudo
arrasa e tudo destrói. Tinha querido fazer qualquer coisa de diferente mas
esquecera que nada se fazia sem as pessoas. E não eram elas o fundamental? Como
é que era possível progredir com pessoas cinzentas e caminhar numa noite
escura, dobradas sob o peso duma vida que nunca quiseram?
A cor tinha de saltitar por
entre elas, a cor tinha de se incorporar nas pessoas e sair de dentro dos
frascos onde havia sido armazenada pelo lucro e pela ganância de alguns –
poucos – que tudo possuíam e tudo queriam.
Esqueceu os conselhos do seu
director financeiro, esqueceu as vozes que lhe aliciavam lucro
e mais lucro e
partiu para fazer da sua empresa a tal empresa modelo que tratava os seus
operários como parte integrante da mesma. Procurou proporcionar aos pais
condições para terem os filhos mais perto do seu trabalho, regularizou os
horários de funcionamento, melhorou as condições de trabalho, contratou operários
suficientes para assumir as quantidades crescentes de encomendas que todos os
dias continuavam a chegar e passou a deslocar-se pela empresa conversando com
os trabalhadores. Um beijo àquela rapariga que tinha caído escada abaixo, um
abraço ao Pedro que tinha feito um bom trabalho no sector das vendas, um
cumprimento especial ao João a quem acabara de nascer um filho, uma ajuda
suplementar à Maria que estava a sentir tão dolorosamente a partida do seu
companheiro.
Aquele que salva uma vida salva o mundo inteiro. |
Conhecia todos os seus
empregados pelo nome próprio, deslocava-se a casa de cada um deles sempre que o
chamavam para partilhar uma refeição ligeira ou um jogo de futebol, abria as
portas a cada um e a todos em particular e deixou o seu refúgio de patrão
enclausurado.
A fábrica estava fechada
naquele dia feriado, porque ali também se cumpriam os feriados e ele aproveitou
para descansar também. Procurou aquela cadeira onde costumava reclinar-se,
quando era apenas um patrão sozinho, e olhou uma vez mais os tons fortes que se
dissolviam por entre as nuvens. Quase lhe apetecia dizer que, agora sim, agora
tudo estava no seu devido lugar!
Tudo não – havia tanto ainda
por construir, tanta gente por salvar, tanta criança para crescer, tanto homem
e tanta mulher para ser feliz… E veio-lhe à memória uma frase esquecida, num
filme a preto e branco, com uma criança a cores: Aquele que salva uma vida salva o mundo inteiro!
Era isso – não podia parar.
Tinha de continuar a sua construção: é que, neste mundo, infelizmente, há
sempre alguém para salvar.
Albertina
Vaz
©2014,Aveiro,Portugal
História longa onde o personagem se movimenta num intenso labirinto de prolixas e incómodas questões sócio-económicas,Formalmente as palavras surgem num caudal de conteúdo inquietante na procura de um destino feliz.que procura salvar uma vida para se salvar
ResponderEliminarO enorme talento de Steven Spielberg tratou no ecran uma das maiores monstruosidades que a humanidade viveu. Serviu-se de um extraordinário elenco em que a figura principal, Liam Neeson, representou um militar que conseguiu ludibriar o sistema roubando aos fornos crematórios milhares de seres humanos. Hoje neste velho e experiente continente surge este ousado texto, que observando as condições e realidades atuais, não hesita em o colocar, como se de um puzzle se tratasse, ao lado da Lista de Schindler. É uma escrita determinada, não dando minimamente azo a que se confunda com narrativas muito afáveis perigosamente dúbias. A autora optou claramente pela defesa de valores e por uma mensagem final com a força de quem nunca consegue deixar de olhar para o lado porque lá pode estar alguém que necessite de ajuda. Parabéns.
ResponderEliminarTexto tão bem construído e tão forte a sua mensagem que me evocou um poema.
ResponderEliminarÉ esse poema que transcrevo para comentar o texto.
Carlos Drummond de Andrade, Congresso Internacional do Medo
Provisoriamente não cantaremos o amor,
que se refugiou mais abaixo dos subterrâneos.
Cantaremos o medo, que esteriliza os abraços,
não cantaremos o ódio, porque este não existe,
existe apenas o medo, nosso pai e nosso companheiro,
o medo grande dos sertões, dos mares, dos desertos,
o medo dos soldados, o medo das mães, o medo das igrejas,
cantaremos o medo dos ditadores, o medo dos democratas,
cantaremos o medo da morte e o medo de depois da morte.
Depois morreremos de medo
e sobre nossos túmulos nascerão flores amarelas e medrosas.