terça-feira, 29 de julho de 2014

A lista de Shindler

“A Lista de Schindler” - Sinopse

No período da Segunda Guerra Mundial um homem tenta ganhar dinheiro com o trabalho forçado dos judeus nas fábricas. O nome dele é Oscar Schindler, alemão com influências na polícia secreta do partido nazista de Hitler.

O filme representa a indelével história deste enigmático personagem, mulherengo e especulador de guerra, que salvou a vida a mais de 1100 judeus durante o Holocausto. Foi o triunfo de um homem que fez a diferença no drama daqueles que sobreviveram a um dos capítulos negros da história da humanidade, salvos pelo que ele fez.

A lista de Shindler

“Aquele que salva uma vida salva o mundo inteiro”

O sol incandescia por entre as folhas amarelecidas das árvores – era um dia sem história ou uma história que se repetia todos os dias. Arrastava-se pelas ruas que serpenteavam um bairro velho e degradado: nada ali o prendia e nada ali o agarrava. Os companheiros da universidade tinham partido em projectos imaginosos e imagináveis, cheios de talentos e de sucessos. Os amigos - alguma vez tivera amigos? - tinham seguido as suas vidas, constituído famílias, procurado empregos ou trabalhos e deixaram de ser vistos.
- sem eira nem beira - 
Ele continuava por ali – sem eira nem beira - sem saber que rumo dar à sua vida ou que caminho fazer para a tornar diferente. Era certo que mantinha boas relações com os companheiros que circulavam à volta do poder - nos meandros dos seus corredores, tudo ainda se conseguia com um simples gesto ou umas meias palavras. A família abrira-lhe portas e facultara-lhe espaços sem necessidade de subir os degraus, tão difíceis para alguns.
Mas nem tudo lhe soava bem: queria construir alguma coisa com as suas mãos, alguma coisa que marcasse um estilo, que ficasse ali, com a sua marca e perdurasse para sempre. Para sempre? Não seria isso muito tempo, não significaria muito trabalho, algum dispêndio da sua energia e algum consumo daquilo que lhe era gratuitamente disponibilizado?
O bulício da cidade que trabalha agarrou-o de uma forma irresistível: homens e mulheres desfilavam, como protagonistas de um filme a preto e branco, vergados pelo peso de um dia desgastante, acelerando um passo em direcção a não sei que lugar ou que destino. Jovens velhos, sem aspirações nem sonhos, descrentes de um mundo onde já não havia sol e as nuvens cobriam assustadoramente os passos cadenciados em ritmo de corrida. Novos grisalhos, sem ocupação e sem sonhos, encolhidos nos bancos dispersos à procura de uma mão, de um sorriso, duma presença.
E de repente, por entre aquela amálgama de gente sem vida, uma sombra que ganha contornos de cor naquele filme a preto e branco - uma criança que corre serpenteando por entre os vultos estáticos, quase parados, da cidade que vai morrendo. Saltitando ora num pé
...uma sombra que ganha
contornos de cor
ora noutro, preenche de cor a paisagem nevoenta que há muito não se deixava invadir pelo sol. E a criança continua a correr e a cantar e a encher de vento um moinho de papel que acaba de construir com as suas próprias mãos.
A cor daquela visão toma-o de assalto e leva-o dali agarrando a vontade de iniciar alguma coisa, em algum lugar. Não seria difícil manipular meia dúzia de gentes de influência e influentes e pôr de pé aquela fábrica que há tanto remexia na sua cabeça e lhe proporcionaria uma vida fácil e um lucro certo. Era só aproveitar-se da situação que se espalhava um pouco por todo o mundo e dar-lhes o que eles queriam: trabalho!

Claro que o tempo não era para grandes investimentos, a crise avolumava-se agigantando-se e adquirindo proporções jamais previstas. Mas em tempos de crise - e a história provava-o sistematicamente - os audazes sabiam como aproveitar as dificuldades de uns tantos e usufruir da necessidade de muitos em seu proveito. Era trabalho que queriam? Pois dar-lhes-ia trabalho…
Era trabalho que queriam?
Saiu dali satisfeito com aquela garotita que passara a correr e lhe dera aquela inspiração fabulosa. A sua vida tinha encontrado finalmente um rumo, um caminho seguro e fim desejado. Quase a correr também partiu, envolvendo-se naquela multidão a preto e branco de homens e mulheres curvados sobre o seu próprio peso.
Consultou meia dúzia de conhecidos, inteirou-se dos sectores mais rentáveis, dos parceiros com que podia contar, das ajudas da comunidade internacional, do financiamento que poderia adquirir cá dentro e lá fora. Fez algumas consultas ao sector bancário, procurou antigos companheiros a dirigir algumas empresas, inteirou-se do sucesso ou do insucesso de certos sectores do mercado, apoiou-se nos conhecimentos de alguns políticos de renome – conhecidos e desconhecidos - até falou com uns amigos chineses e outros angolanos que lhe sugeriram a deslocalização para os países emergentes da antiga África colonial e, pesando prós e contras, decidiu-se - nada como investir no seu próprio país, disso estava certo!
E se bem o pensou melhor o fez. Faltavam agora apenas as burocracias facilmente ultrapassadas pelos seus amigos do poder - licenças, certidões, autorizações, vistos adquiridos ou em processo de aquisição. Construídas as instalações, obtida a necessária maquinaria apenas restava contratar pessoas e essa era uma tarefa fácil. Não faltavam interessados que se disponibilizavam a trabalhar com o mínimo dos mínimos porque, se um não queria, logo apareciam umas centenas para o substituir.
E foi assim que a sua empresa começou a laborar: com um investimento tão pequeno, salários tão baixos e regalias sociais quase nulas foi relativamente fácil implantar-se no mercado interno e lançar--se na exportação com um êxito tal que cedo foi considerado pelo
Uma fila imensa de gente cinzenta
poder como empresário de excelência e modelo a seguir.
Sentia que finalmente encontrara um sentido na sua vida: sentou-se no terraço ensolarado do seu gabinete, na empresa que apontavam como modelo e recostou-se ligeiramente aproveitando o calorzinho daquele fim de tarde que se desenhava em tons quentes na linha do horizonte. Ao longe descortinou uma fila imensa de gente que se arrastava em tons cinzentos à hora de saída. E não entendeu: não era trabalho que eles queriam?
Realmente nem sabia como podiam viver com os magros salários que lhes pagava mas era assim que as empresas davam lucro e progrediam. Claro que ele até poderia ganhar menos mas isso estava fora de questão. Como havia de se lançar na internacionalização se pagasse salários justos…? Estava tudo muito bem assim e era assim que iria continuar. O encarregado da linha de produção andava há tempos a falar-lhe em admitir mais empregados mas o director financeiro havia sugerido aumentar o horário de trabalho e reduzir a hora de almoço. E essa era uma boa ideia que tinha intenção de implementar.
Pouco lhe interessavam as lamúrias de quem lastimava a falta de tempo para estar com os filhos. O prejuízo que causavam quando não se apresentavam ao trabalho por terem de acudir a uma doença duma criança ou por serem forçados a cuidar de um pai idoso e necessitado de ajuda, fê-lo considerar medidas drásticas e muito duras. Um trabalhador estava ali para trabalhar e não para reclamar melhores condições de trabalho. Sorte deles era terem trabalho e disso não podiam esquecer-se!
E num daqueles fins de tarde, quando aproveitava para usufruir do mar que se espraiava lá para os lados da ténue linha do horizonte, distinguiu um aglomerado de gente à volta de qualquer coisa ou de alguém que caíra na berma da estrada. E gritos de desespero envolveram e destruíram o espaço perfeito em que tudo parecia decorrer. Uma súbita curiosidade levou-o a descer do seu miradouro e abeirar-se dos homens e das mulheres que saíam da fábrica e se debruçavam soluçando baixinho – para não se ouvirem ou para não serem ouvidos.
Aquela criança não comia hà dias!
À chegada do empresário, foram-se afastando lentamente, abrindo um túnel de passagem e permitindo que o patrão invadisse até os seus mais íntimos pensamentos. Ele caminhava depressa e afoitamente e foi com espanto que voltou a ver aquela sombra de cor desfalecendo nos braços de uma mulher. Ajoelhou-se e ali ficou, sem palavras, sentindo um friozinho que lhe atravessava o corpo e dilacerava o pensamento: aquela criança não comia há dias - o salário que dava à sua mãe não chegava para suprir as necessidades da família e a criança (filha da cor e da esperança) definhava e corria para a morte.
Afinal pouco havia mudado no mundo à sua volta: eles queriam trabalho mas sentiam-se escravos. Trabalho sem direitos, sem valores, sem repartição justa da riqueza gerada. Procurava respostas para perguntas que nunca tinha feito a si próprio. A sombra de cor que inspirara o seu presente estava a terminar ali, aos seus pés, quase sem dor, quase sem um gemido ou um lamento.
- Esta criança não está doente, tem apenas fome! - gritavam, por dentro, as vozes ensurdecidas dos operários sem voz, na empresa que construíra para dar trabalho a quem queria trabalhar.
Naquela noite manteve-se sem sono e os seus pensamentos deslizavam como um turbilhão ou um vendaval que tudo arrasa e tudo destrói. Tinha querido fazer qualquer coisa de diferente mas esquecera que nada se fazia sem as pessoas. E não eram elas o fundamental? Como é que era possível progredir com pessoas cinzentas e caminhar numa noite escura, dobradas sob o peso duma vida que nunca quiseram?
A cor tinha de saltitar por entre elas, a cor tinha de se incorporar nas pessoas e sair de dentro dos frascos onde havia sido armazenada pelo lucro e pela ganância de alguns – poucos – que tudo possuíam e tudo queriam.
Esqueceu os conselhos do seu director financeiro, esqueceu as vozes que lhe aliciavam lucro
Aquele que salva uma vida
salva o mundo inteiro.
e mais lucro e partiu para fazer da sua empresa a tal empresa modelo que tratava os seus operários como parte integrante da mesma. Procurou proporcionar aos pais condições para terem os filhos mais perto do seu trabalho, regularizou os horários de funcionamento, melhorou as condições de trabalho, contratou operários suficientes para assumir as quantidades crescentes de encomendas que todos os dias continuavam a chegar e passou a deslocar-se pela empresa conversando com os trabalhadores. Um beijo àquela rapariga que tinha caído escada abaixo, um abraço ao Pedro que tinha feito um bom trabalho no sector das vendas, um cumprimento especial ao João a quem acabara de nascer um filho, uma ajuda suplementar à Maria que estava a sentir tão dolorosamente a partida do seu companheiro.
Conhecia todos os seus empregados pelo nome próprio, deslocava-se a casa de cada um deles sempre que o chamavam para partilhar uma refeição ligeira ou um jogo de futebol, abria as portas a cada um e a todos em particular e deixou o seu refúgio de patrão enclausurado.
A fábrica estava fechada naquele dia feriado, porque ali também se cumpriam os feriados e ele aproveitou para descansar também. Procurou aquela cadeira onde costumava reclinar-se, quando era apenas um patrão sozinho, e olhou uma vez mais os tons fortes que se dissolviam por entre as nuvens. Quase lhe apetecia dizer que, agora sim, agora tudo estava no seu devido lugar!
Tudo não – havia tanto ainda por construir, tanta gente por salvar, tanta criança para crescer, tanto homem e tanta mulher para ser feliz… E veio-lhe à memória uma frase esquecida, num filme a preto e branco, com uma criança a cores: Aquele que salva uma vida salva o mundo inteiro!
Era isso – não podia parar. Tinha de continuar a sua construção: é que, neste mundo, infelizmente, há sempre alguém para salvar.

Albertina Vaz ©2014,Aveiro,Portugal

3 comentários:

  1. História longa onde o personagem se movimenta num intenso labirinto de prolixas e incómodas questões sócio-económicas,Formalmente as palavras surgem num caudal de conteúdo inquietante na procura de um destino feliz.que procura salvar uma vida para se salvar

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  2. O enorme talento de Steven Spielberg tratou no ecran uma das maiores monstruosidades que a humanidade viveu. Serviu-se de um extraordinário elenco em que a figura principal, Liam Neeson, representou um militar que conseguiu ludibriar o sistema roubando aos fornos crematórios milhares de seres humanos. Hoje neste velho e experiente continente surge este ousado texto, que observando as condições e realidades atuais, não hesita em o colocar, como se de um puzzle se tratasse, ao lado da Lista de Schindler. É uma escrita determinada, não dando minimamente azo a que se confunda com narrativas muito afáveis perigosamente dúbias. A autora optou claramente pela defesa de valores e por uma mensagem final com a força de quem nunca consegue deixar de olhar para o lado porque lá pode estar alguém que necessite de ajuda. Parabéns.

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  3. Texto tão bem construído e tão forte a sua mensagem que me evocou um poema.
    É esse poema que transcrevo para comentar o texto.

    Carlos Drummond de Andrade, Congresso Internacional do Medo

    Provisoriamente não cantaremos o amor,
    que se refugiou mais abaixo dos subterrâneos.
    Cantaremos o medo, que esteriliza os abraços,
    não cantaremos o ódio, porque este não existe,
    existe apenas o medo, nosso pai e nosso companheiro,
    o medo grande dos sertões, dos mares, dos desertos,
    o medo dos soldados, o medo das mães, o medo das igrejas,
    cantaremos o medo dos ditadores, o medo dos democratas,
    cantaremos o medo da morte e o medo de depois da morte.
    Depois morreremos de medo
    e sobre nossos túmulos nascerão flores amarelas e medrosas.

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