Fernanda Reigota
Ficara
estranha e subitamente amante de fotografia. E quantas vezes partia para a caça
de imagens e só noite feita regressava!
Uma bela
manhã, ainda o Sol se não erguera, partiu com outros fervorosos adeptos da caça
de imagens únicas. Encaminharam-se para o cimo da serra, por uma cerrada mata e
por um caminho de poucos conhecido. Pararam uns momentos para degustarem a
música de uma cascata que se adivinhava. A frescura que os salpicos lançavam em
redor acariciava a pele sofrida pela subida. Mais que uma vez, dobrada a
encosta, tinham conseguido surpreender o encanto de testemunharem o beijo da
noite a despedir-se do dia que começaria o seu reinado de luz clarificadora.
Uma vez tinham até estacado perante a hipótese de fixarem a imagem daquele
veado que quase se deixara surpreender a matar a sede, numa alvorada já quente
do mês de maio. João tinha em casa esse troféu. Fora o único a conseguir a
composição perfeita e a luz excelente. Ainda hoje se interrogava sobre a
expressão do olhar do animal apanhado no momento de iniciar a fuga.
O sol nascera
enfim. Ao longe, o mar era um reflexo único de um dia que se adivinhava
esplendoroso. Mas no fundo dos vales que iam dar à costa, grandes rolos de
nevoa ainda preguiçavam o doce aroma que a noite lançara sobre a terra. Duas
boas horas já haviam passado e nem um enquadramento especial, nem um ângulo
para realçar uma copa perfeita de árvore, nem uma pedra evocadora de uma
figura…
Aquele grupo
de caçadores de imagens porfiava serra acima. Em breve apontariam as objetivas
ao trajeto ascendente do Sol, ao contraste dos variados verdes da serra
ponteados por pequenos lagos tão brilhantes que simulavam os olhos da serra
espantando-se com a magnificência de mais um esplendoroso dia de maio. Não
faltavam manchas de alfazema, caminhos ladeados pelo amarelo da giesta, verdes
mimosos dos rebentos novos dos pinheiros, árvores a vestirem-se de folhas
macias para se juntarem à festa da renovação da natureza…
Na
azáfama da preparação do material, apenas se ouvia a voz esperta e fresca das águas
e, ao longe, o marulhar solto da vaga tímida.
Alguém
apontara a teleobjetiva para o mar e, emocionado, sussurrava como se não
quisesse espantar a caça que tão perto dele parecia estar. No alvoroço do
achado, ele imaginava-se já a estender a mão e a tocar o filhote de baleia que
nadava atrás da mãe, calmamente, traçando os dois uma linha paralela à costa.
Naquela
manhã tinham à sua frente o alvo perfeito: lento, majestoso, raro e enquadrado
por um contexto que a todos seduz, o mar!
A retina
tinha a festa da imagem, o ouvido tinha o estralejar de múltiplos e constantes
disparos.
Ficara
estranha e subitamente amante de fotografia.
Fernanda Reigota ©2014,Aveiro,Portugal
As paixões são sempre estranhas e, por mais que as queiramos ofuscar, surge sempre o dia em que, sem sabermos como, se revelam denunciando uma parte de cada um de nós. Este trabalho associado à foto da mesma autora, retrata a beleza das palavras com que a paixão é descrita e fotografa o poema de cor e bruma com que a nossa ria não deixa de nos brindar. Como sempre, excelente, Fernanda.
ResponderEliminarOs olhos da amizade verteram palavras cheias de cor neste teu comentário. Obrigada, Albertina!
EliminarFotografar! Por muito que se saiba pode nunca experimentar-se o clique da "descoberta de uma paixão." Um dia, retina, ouvido e o dedo injustiçado proporcionam "os bonecos" ansiados e aí... "estranha e subitamente" fica-se amante daquela arte: fotografar.
ResponderEliminarA outra, a do registo das palavras, como habitualmente, uma maravilha!
Enquanto não for firme na escrita com luz, " 'os bonecos' ansiados" terão caligrafia tremida, desfocada... Então vou alinhando algumas palavras e, mais confiante, volto a experimentar a escrita com luz. Obrigada, José Luís, pelo seu consistente comentário.
ResponderEliminar