Albertina
Vaz
Vi-o caminhar, lenta e
pesadamente, pelas ruas estreitas da cidade quase deserta. Olhava cada janela,
cada vidraça empoeirada, cada vaso de flores pendendo através da madeira
carcomida da varanda. Parecia querer agarrar o que lhe escapava, prender e que
se desatava, apanhar o que lhe fugia. Nem sequer compreendia o que girava à sua
volta. Só sabia que não encontrava nem o fim da estrada, nem a luz na calçada,
nem o mar que se afundava por entre a areia dum deserto, ali, à beira da porta.
Quem te deu o direito de
parar? – pensou. Quem te deu o direito de matar o pássaro que
reclama voos
dentro de ti e exige cortar a sombra que teima em se instalar? Quem te permitiu
carregar, nas tuas costas, o peso de um mundo que te despreza e te angustia?
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...o pássaro que reclama voos... |
Já não sirvo para nada, foi
o que arremessaram: e, no entanto, continuo a ouvir o rasgar das giestas e o
cantarolar dos patos que invadem o lago e semeiam gramados por entre as flores
dos nenúfares no rio. Sinto cá dentro, uma dor que se instala e uma chuva
miudinha que invade o meu peito e rebenta como uma estrela que explode em luzes
de mil e uma cores.
Já não sei que fazer – esta
hesitação é o que mais me dói – não sei se partir, se ficar; não sei se
caminhar, se parar; não sei se gritar, se calar.
As ruas da calçada fogem sob
o desejo de ficar – a filha que queria ver crescer, a mulher que se esgota nas
casas dos outros por um prato de sopa, a mãe que não voltará a beijar. E quanto
tempo vai decorrer, até que eu volte a pisar este caminho sem fim, em que me
sinto e me remanso, em que nasci e cresci, em que lutei e perdi?
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Perdi aquele pôr do sol ... |
Perdi – o quê? Perdi tudo e
perdi nada, perdi as giestas a cantarolar e o bater de asas dos patos no
debruado da ria, perdi aquele por do sol de cores demasiado quentes e a neblina
do fim de tarde que faz cantar as árvores e deslizar os ramos dos ninhos
acabados de fazer; perdi aquele mar azul que se encapela e nos prende sem
agarrar.
Perdi, ou vou perder?
Aquelas janelas pequeninas com cortinas debruadas a renda feita à mão, aquele
azul pintado no meio de um negro, escuro e cinzento, duma parede que se ergue
entre o que se sente e o que se diz, entre o que se quer e o que se faz, entre
o que se sonha e o que se realiza. Já nada resta – nem lenha para acender a fogueira,
nem um pão na mesa, nem uma flor.