Quem
nunca roubou rosas jamais poderá me entender. Eu, em pequena, roubava rosas. Cito Clarice Lispector.
Li estas suas palavras (aliás, li toda a crónica Cem anos de perdão) com um sorriso nos lábios, sentindo-me
conivente, desejosa de peregrinar pelos
quatro cantos do passado e recuperar imagens, fazê-las ganhar voz, fazê-las dançar como marionetes na ponta dos
meus dedos.
...jogar à macaca |
Se
bem me lembro, também eu, em garota, roubei flores. Vivia então numa cidadezinha
com sotaque bucólico, onde não faltavam palcos faz-de-conta para lúdicas
actuações: saltar à corda, jogar às escondidas, à macaca, ao ringue, ao lencinho.
Nas
cercanias do liceu (que todos nós, aos dez, onze anos, já frequentávamos)
ficava o Jardim do Campo. No Campo, havia espaço para os pés correrem, havia um
coreto cúmplice das nossas brincadeiras, havia flores, árvores, bancos pintados
de verde. Havia também um jardineiro que detestava a garotada. “Ah, seus malandros,
se eu vos apanho!” O rosto do homem tinha acentuados traços de caricatura.
E
aquele bigodaço, céus! Aquele bigodaço (descomedidamente adubado, desprimorosamente
podado) metia respeito. Como se isso não bastasse, o fulano costumava ilustrar
as suas ameaças brandindo uma pá ou um ancinho. “Ah, seus malandros!”
Nós éramos pré-adolescentes correctos, aprendendo aos poucos a conjugar
certos verbos socialmente incorrectos: desafiar, transgredir. Isso incluía:
alguma poluição sonora; alguns resíduos escolares à deriva no lago; uma ou
outra pegada não ecológica sobre a relva. Pouco mais. A tesoura de poda acirrando
o nosso engenho e a nossa ousadia.
...afinal a que sabe um amor-perfeito? |
Eu
especializei-me no roubo do amor-perfeito. Um membro da família das Violaceae sem qualquer sentido de humor.
Pescocinho curto, semblante pensativo de filósofo de jardim. Talvez por isso
mesmo. Ou por haver tantos cerrando fileiras em defesa dos canteiros. Eles à
defesa, eu ao ataque. Os joelhos como molas, a mão certeira. Mas só dava mesmo
gozo quando o jardineiro presenciava. “Corre, corre, ele vem atrás!” E se eu
corria! Arfante, vitoriosa. O amor-perfeito acabava espremidinho entre as
folhas de um compêndio, a ganhar pouco a pouco aquela tez desbotada, desidratada,
de quem nunca tira o nariz dos livros.
Há
vários meses que o jardineiro me trazia debaixo de olho. “Ai se eu te apanho!”
Um dia apanhou mesmo. Portou-se como um inquisidor, disparando ordens por baixo
do bigodaço: “Abre as mãos!” “Vira os bolsos do avesso!” “Levanta os braços!” “Sacode
a saia!” O amor-perfeito a mordiscar-me a língua, a fazer-me cócegas no céu da boca,
mortinho por furar a barreira dos meus dentes. Eu a rir por dentro, a rir por
fora, receando deitar tudo a perder. Mas lá me aguentei.
“A
que sabe um amor-perfeito?” Se bem me lembro, muitas vezes me fizeram esta
pergunta. Ou variações brejeiras desta pergunta. Todas as minhas respostas se
diluíram no tempo. O mistério continua: afinal
a que sabe um amor-perfeito?
Helena Maltez ©2014,Aveiro,Portugal
Eu não sei a que sabe um amor perfeito...Mas soube-me muito bem ler este texto com a frescura de tanta gota de orvalho!
ResponderEliminarOra aí está uma história poeticamente narrada por uma alma que conserva a frescura e a graça da adolescência. A pena é a mesma que escreve deliciosa poesia.
ResponderEliminarPois...poderá parecer estranho a quem nunca roubou rosas, amores perfeitos, margaridas ou fruta dos quintais dos vizinhos...a mim sabe-me a peras, a jasmim, a figos de pingo mel de que também me apropriava em criança... ou a fel quando era obrigada a abrir o "bibe" para deixar cair as "rosas" da figueira, da pereira...perante o cabo da enxada de um não menos detentor de farfalhosa bigodeira...ou sob a ameaça de ir pela "orelha" até casa dos pais...Sim, adorei este delicioso texto que me transportou a léguas de tempo!
ResponderEliminarO amor perfeito elegante belo e alegre não consegue ultrapassar a sua fragilidade de débil flor que acaba, um dia, por murchar. "Se bem me lembro" vai perdurar para além do tempo dada a qualidade duma escrita de excelente beleza e qualidade.
ResponderEliminarQuase que me deu vontade de ir atrás do homem dos bigodes a ver se lhe pregava uma rasteira... mas, realmente o sabor a amor-perfeito (flor) nunca me lembrei de experimentar. Com a leitura deste texto fiquei com vontade de ir por aí - espreitando um jardim qualquer - procurar (em tempo deles) o tal amor-perfeito que não sei a que sabe. E talvez nesse dia peça à Maria Helena que me ajude a encontrá-lo.
ResponderEliminarEste texto fez-me lembrar o tempo em que eu também apanhava flores ou folhas bonitas, para serem espalmadas, dentro dos livros, até ficarem amarelas. só que eu ia com vários amigos e amigas ao jardim Odinout, ainda no tempo em que havia um jardim, com variadas flores, cercado por arame.
ResponderEliminarSerá que surgiu daí a ideia de transformar as flores em iguarias? Talvez. Só sei que este texto é uma delícia!
ResponderEliminar