Os
bancos estavam deveras molhados e a chuva continuava a cair em tempo de Outono.
Por isso os velhos não ousaram sair de casa e, assim, naquela tarde, o Largo
do Bispo estava tristemente deserto.
...tristemente deserto |
Só
esta circunstância permitia que pardais, gentilmente, expugnassem, àquela hora,
o empedrado do largo na sua luta pela sobrevivência, misturando-se com eles
folhas caducas das tílias do jardim que se colavam no pavimento em decorações
de tristeza. Ou que um cão vadio, andarilho da cidade, ali viesse alçar a perna
contra uma floreira uma vez, e outra contra o pedestal da estátua do bispo,
para logo se pôr a caminho em passo corrido com destino incerto.
O
relógio da torre da igreja bateu as três da tarde e toda a cidade ouviu. Então,
em uma qualquer casa, num qualquer beco, uma mulher estaria a dizer ao seu
homem:
-
Já são três horas e está a chover. Hoje não te governas porque não vai haver “Bispo”
para ninguém!
Mas
ele não desistia de espreitar pela nesga da janela na esperança de ver, no céu,
uma réstia de azul.
...um vulto parado |
Se
o largo estava morto, o mesmo não se podia dizer da estrada e avenidas
contíguas e também dos passeios que o ladeiam. Automóveis deslizavam velozes ou
arrancavam ruidosamente à ordem de sinais verdes, incessantes, num sufoco de
mau cheiro. E às portas das lojas envolventes fechavam-se e abriam-se
guarda-chuvas que, em andamento pelos passeios, produziam uma movimentação
ofegante e tristonha.
Misturado
neste vaivém, um vulto parado tornava-se uma evidência. Era um homem velho,
muito velho, de pé sobre o lancil do passeio no outro lado da estrada oposto ao
largo, curvado sobre a bengala e os anos. Na outra mão o guarda-chuva aberto,
ao invés de lhe pesar parecia querer suspendê-lo para que se endireitasse um
pouco.
Via-se
que não era ali que queria ficar por serem frequentes as tentativas de fixar no
asfalto da estrada a ponta da bengala.
Á
sua frente, no outro extremo da passadeira para peões, o semáforo luminoso bem
podia ser uma falaciosa alegoria a duas cores porque o velho não as distinguia
com clareza.
Caem
sinais verdes, caem sinais vermelhos e o trânsito continua a fluir, sem parar.
A
escassos passos do pobre homem, recolhido num beiral, um “Agente da Ordem” meneava
a cabeça para um e outro lado na atitude prosaica de visualizar o trânsito,
fazendo-se a uma abstracção consciente da presença do velho junto de si.
Entretanto,
este continua nas suas vacilações sobre a ponta da bengala, mas já de nada lhe
valia vigiar a esquerda e a direita da estrada. Agora, o seu olhar fixava-se no
Largo do Bispo, à sua frente, o seu destino e, também, o seu ‘Cabo das Tormentas’,
ali!
Então,
como que movido por uma atracção que nunca saberia explicar, o velho ousou dar
dois passos estrada adentro. Momentos esses de esperança e logo de agonia!
Retrocedeu, cambaleante, para o lancil, guarda-chuva a reboque. Atravessou o
passeio e encostou-se, envergonhado, à parede do prédio, já sem esperança.
Ó avozinho! |
- Ó avozinho! Tem que esperar que o sinal abra para os peões – Vociferou o Agente
da Ordem que, entretanto e porque já não chovia, se pusera a caminho e passava
agora em frente do velho com destino provável às zonas de estacionamento pago,
exibindo numa das mãos o intimidativo livro das notificações.
O
silêncio que o pobre homem guardou perante a autoridade, misturado com a sua
obstinação diante da adversidade, podia muito bem ser a denúncia de que se
tratava de um velho marinheiro.
De
repente, - oh Deus! – tudo se alterou. Duas carroças puxadas por muares vindas
em sentidos opostos da estrada obrigavam à contenção do trânsito atrás de si e
elas, à frente, comandando os pelotões motorizados! Por momentos, o velho viu
livre uma larga fatia da estrada mas que se ia estreitando à medida que os animais
se aproximavam. Ciente de que o sector vazio se fecharia antes que conseguisse
atravessar, o velho não ousou avançar. Mas uma circunstância permitiu que de
imediato o fizesse. E fê-lo com calma, seguro de si, em meio a estrondoso
buzinão. É que, os dois irracionais haviam decidido, por longos momentos, parar
lado a lado depois frente a frente, prodigalizando cortesias, porventura
sentimentos de amor, indiferentes às violentas chicotadas dos seus donos
montados nas carroças.
Chegado
à berma do Largo do Bispo, o velho voltou-se para trás e, visando os animais,
levantou a bengala em gesto de profundo agradecimento.
Entretanto,
chegou o tal Agente da Ordem, os donos redobraram as chicotadas e o sortilégio
amoroso dos animais foi interrompido.
Na
estrada, o trânsito voltou a fluir…
No
Largo do Bispo, santuário da cidade, o velho, sentado num banco molhado, podia,
finalmente, descansar. E meditar. E elevar a sua meditação a sonhos do passado,
que o futuro dos velhos já não lhes alimenta os sonhos. E ‘sonhou’ com a Capela
das Almas que fora ali e, ali, no ponto onde se encontrava fora, pelas suas
contas sonhadas, o altar-mor. Depois, ‘sonhou’ com a demolição da Capela e o
erguer do Mercado Municipal. E, ali onde estava sentado, pelas suas contas,
tinha sido a tenda da Maria do Papel. Depois, veio-lhe ao ‘sonho’ a demolição
do Mercado e, logo a seguir, o erigir da estátua dum bispo no largo. E ali,
onde estava sentado, era agora um banco molhado onde esperava por amigos velhos
como ele, enredado num sonho de distâncias e de tempos…
um sonho de distâncias e de tempos... |
Mas
não foi longo o seu sonho. Um bater ritmado e seco sobre o pavimento
despertou-o para a realidade envolvente. Procurou com o olhar e viu o rapaz
cego a vaguear no largo, chamando:
-
Senhor José! Senhor José! Está aí?
-
Estou aqui! Anda cá! – respondeu-lhe o velho.
E
o rapaz cego sentou-se ao seu lado e assim ficaram, a conversar, por algum
tempo.
O
relógio da torre da igreja bateu horas. O velho espreitou o seu, que fora de
corrente, para confirmar o número de badaladas. Eram cinco horas em tempo de
Outono e o ar arrefecia.
Não
tardaram em levantar-se, dirigindo-se ambos para a berma do largo. Balouçante,
o andar do velho era uma das suas heranças do mar!
O
trânsito corria como antes – veloz. O velho tremia e o rapaz cego sentia isso
na mão fria que lhe apertava o braço.
No
outro lado da estrada alguém discutia e o rapaz quis saber de que se tratava:
É uma discussão... |
-
O que é que se passa ali, senhor José?
-
É uma discussão entre um guarda e um condutor. – explicou o velho.
-
E porquê? –
-
O condutor não pôs dinheiro na máquina do estacionamento.
O
rapaz cego estendeu o seu bordão listrado de vermelho e branco na direcção da
estrada. Logo pneus chiaram e, depois, fez-se quase silêncio. Transeuntes
olharam e pararam. O rapaz cego pressionou o braço do velho, dizendo:
-
Venha, senhor José, que eu levo-o para o outro lado!
- Não
é melhor pedir ao guarda? – Inquiriu o velho.
- Não,
sr. José! O Estado paga-lhes para reprimirem o mal, não para praticarem o bem.
É o que eles dizem!...
Atravessaram
a avenida e despediram-se, sem agradecimentos, no passeio do outro lado, sobre
o qual o velho seguiria em segurança até sua casa.
Entretanto,
pardais saltitantes voltaram, na sua luta por sobreviverem, a expugnar,
gentilmente, o empedrado do largo de novo tristemente deserto.
Também
o cão vadio, andarilho da cidade, voltou, desta vez para farejar os bancos de
todo vazios.
E
as folhas das tílias do jardim, batidas pelo vento que virara a norte, não
paravam de cair no chão molhado, colando-se nele em jeito de retalhos de
velhice.
Tibério Paradela ©2014,Aveiro,Portugal
GM
ResponderEliminarsensibilidade para com as urbanas fragilidades, precisa-se
É muito triste ter-se dificuldades e não ter ninguém para ajudar. Este texto reflete bem a sociedade em que vivemos. Por sorte, nem toda a gente procede dessa maneira.
ResponderEliminarMomentos de prazer de ler, proporcionados pela alma de marinheiro temerário a quem o mar encapelado da vida sempre desafia!
ResponderEliminarRetalhos de velhice a denunciar a "tal sociedade dos coitadinhos" ignorados e mal tratados pelas autoridades. Lindo de ler, revoltante de viver.
ResponderEliminarUma triste realidade - as múltiplas barreiras urbanas a avolumar as dificuldades de vidas que se arrastam sob o peso dos anos, das limitações físicas, da frieza que as circunda... Texto "lindo de ler"
ResponderEliminarMais do que as barreiras urbanas incomodam-me as barreiras humanas ou desumanas, se quisermos! É sempre incompreensível ver alguém a querer atravessar uma rua e não aparecer ajuda quer dum cidadão anónimo quer e sobretudo duma autoridade que devia estar lá para facilitar a vida de todos, sobretudo dos que sendo diferentes têm direitos - e sobretudo obrigações - iguais.
ResponderEliminarEste texto, feito com uma lucidez lancinante, é um alerta para a desumanização que vamos instalando nas nossas cidades.
À sensibilidade das palavras escritas se contrapõe a indiferença social, apenas mitigada por alguém também fisicamente diminuído, o que carrega mais as cores sombrias do respectivo quadro
ResponderEliminarUm quadro que bem podia ser pintado com aguarelas coloridas, mas ... apenas sobressai o preto e o cinzento. Apesar da chuva intensa podia aparecer o arco-iris, mas... é esta a sociedade em que vivemos.
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