Retiro-me da cama para arrastar o corpo,
ainda semiadormecido. A fresta da janela anuncia que ainda não há sol. A
persiana confirma. No horizonte, esparsamente esbatido, é a cor do
cinzento que domina.
Mais um dia que amanheceu sem aviso, à
mesma hora, com o ósculo da vida.
O pensamento drena-me a ácida repulsa
pelo trabalho.
Afasto a hipótese da ida ao escritório.
A tua imagem aparece obsessiva, como uma
necessidade sem alternativa.
Vou procurar encontrar-te, decido. |
Vou procurar encontrar-te, decido.
Aguardo que não sejas esquiva!
Quero apanhar-te os passos para me
induzir na força com que me grudei em ti.
Contigo, de “carava,” iremos
onde quiser a tua fantasia, com a promessa de não te martelar a paciência. Mas
não abdico de perguntas.
Bem sabes que não costumo nem quero
causar-te constrangimentos quando te acompanho.
Será um passeio repetido à procura de
uma justificação, ou, antes, de uma confirmação. Presumo que
aguardas que confirme o que tu há muito pensas que sabes. E eu, é exactamente
porque sei que pensas que sabes o que posso dizer-te, sem nada te
dizer, que me contenho em não to dizer.
Mesmo assim, acompanho-te acometido da
coragem para decantar termos que preanunciem o reiterado interesse.
Sabes que o modo como repetidamente me olhas quando te gingas nos teus passos
me desperta a ousadia das palavras. Sabes que me vences com a magia do gesto
com que acompanhas as frases curtas, doces, mastigadas e soletradas.
Quero-te como um alimento e não como uma
veste. Só que ainda não te estudei o suficiente para, sem te perturbar,
concretizar a decisão a tomar. O que farei logo que apreenda o teu real valor.
Lembras-te quando fomos em passeio à
praia fluvial, a jusante da ravina, onde a água se aquieta e espraia na margem?
Lembras-te do modo como utilizavas a água, com a mão, para fingir que me
querias molhar e atiçares o lume?!... Repetias a graça com a marotice a bailar
nos teus olhos, segura da minha manifestada intenção de me furtar aos
lançamentos da água, a saborear o resultado da atrevida experiência de me bachicares…
Não duvido de que és jogadora
inteligente. Usaste a água apenas para que acontecesse o milagre.
Bem que me tentei esquivar. Só que não
tendo outra defesa, tive que entrar na corrente. Tu, a
rir na margem
e eu, colhido, na água fria, dentro da inocência da corrente. Mas, depois de
molhado, voltei, cedendo ao convite insinuante do teu olhar a acompanhar a
curva repetida do chamamento dos teus dedos. Não permitiste a minha vingança.
Logo me enlaçaste para me acalentares. Não soube, então, se mais por piedade se
por instintivo jogo sensual. Para teu prazer. Fiquei-te agradecido e nunca
esqueci que recolheste em ti parte da água que a força da gravidade escorria da
minha roupa. Apenas por caridosa solidariedade? Não ias tão longe, eu sei!
"Vamos "capar" a água da corrente com trinchas?" |
Denunciaste-te logo na proposta do
desafio seguinte: “Vamos “capar” a água da corrente com trinchas? Quem ganhar
pode exigir do outro o que quiser sem possibilidade de recusa”. Julgavas saber
quem iria ganhar. Quiseste apenas servir-te do jogo para saberes se de mim emergia
mais sentimento do que instinto.
Só que no lançamento das trinchas quis
perder e foste tu a fazer a exigência sem recusa.
E rias quando assumiste as regras do
jogo e me viste como cordeiro a imolar, submisso! Pois foi, o prometido era
devido.
Porque ambos quisemos, com convicção,
celebrámos a exigência. E já lá vai tempo.
Hoje vou propor renovar a ida ao rio,
minha enguia da esperança. Por isso, pressinto que não recusas. Vais afirmar,
como desculpa, que é uma desforra do atirar das trinchas para “capeamento” da
água. Embora não sabendo quem vai ganhar, na impossibilidade da
recusa, ambos ganharemos.
A margem do rio aguarda a tua
impaciência. Por isso, não vou fazer-te esperar.
José Carreto Lages ©2014,Aveiro,Portugal
Uma prosa repleta de poesia e um texto que transborda de sedução, de carinho e de uma subtileza emocionante que consegue agarrar o leitor da primeira à última linha transportando-o a um cenário idílico donde não quer soltar-se.
ResponderEliminarUm lindo jogo de sedução. Diria eu, um lindo hino ao amor, pois que, passados anos, poucos ou muitos não importa, a vontade de ser repetido.
ResponderEliminarGostei muito.
Um lindo texto descrevendo uma história vivida com tanta intensidade. Consegue cativar o leitor do princípio ao fim. Gostei tanto!... Que saudade do tempo em que também vivi jogos de sedução.
ResponderEliminarO "jogo" de palavras e imagens a exprimir a estimulante complexidade dos jogos de sedução. A Natureza como cenário. Lindo texto.
ResponderEliminarExpressões belas e deliciosas:"Quero-te como um alimento e não como uma veste"ou "... recolheste em ti parte da água que a força da gravidade escorria da minha roupa. Apenas por caridosa solidariedade?" e outras... fazem deste autor sénior um eterno adolescente capaz de nos transmitir esta prosa profunda, romântica e doce.
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