terça-feira, 14 de janeiro de 2014

À BORDA D’ÁGUA

EVOLUIR agradece ao autor o envio deste texto para publicação



Retiro-me da cama para arrastar o corpo, ainda semiadormecido. A fresta da janela anuncia que ainda não há sol. A persiana confirma. No horizonte, esparsamente esbatido, é a cor  do cinzento que domina.
Mais um dia que amanheceu sem aviso, à mesma hora, com o ósculo da vida.
O pensamento drena-me a ácida repulsa pelo trabalho.
Afasto a hipótese da ida ao escritório.
A tua imagem aparece obsessiva, como uma necessidade sem alternativa.
Vou procurar encontrar-te, decido.
Vou procurar encontrar-te, decido.
Aguardo que não sejas esquiva!
Quero apanhar-te os passos para me induzir na força  com que me  grudei em ti.
Contigo,  de “carava,” iremos onde quiser a tua fantasia, com a promessa de não te martelar a paciência. Mas não abdico de perguntas.
Bem sabes que não costumo nem quero causar-te constrangimentos quando te acompanho.
Será um passeio repetido à procura de uma justificação, ou, antes, de uma confirmação.   Presumo que aguardas que confirme o que tu há muito pensas que sabes. E eu, é exactamente porque sei que pensas que  sabes o que posso dizer-te, sem nada te dizer,  que me contenho em não to dizer.
Mesmo assim, acompanho-te acometido da coragem para decantar  termos que preanunciem o reiterado interesse. Sabes que o modo como repetidamente me olhas quando te gingas nos teus passos me desperta a ousadia das palavras. Sabes que me vences com a magia do gesto com que acompanhas as frases curtas, doces, mastigadas e soletradas.
Quero-te como um alimento e não como uma veste. Só que ainda não te estudei o suficiente para, sem te perturbar, concretizar a decisão a tomar. O que farei logo que apreenda o teu real valor.
Lembras-te quando fomos em passeio à praia fluvial, a jusante da ravina, onde a água se aquieta e espraia na margem? Lembras-te do modo como utilizavas a água, com a mão, para fingir que me querias molhar e atiçares o lume?!... Repetias a graça com a marotice a bailar nos teus olhos, segura da minha manifestada intenção de me furtar aos lançamentos da água, a saborear o resultado da atrevida experiência de me bachicares… 
Não duvido de que és jogadora inteligente. Usaste a água apenas para que acontecesse o milagre.
Bem que me tentei esquivar. Só que não tendo outra defesa,  tive que entrar na corrente. Tu, a
"Vamos "capar" a água da
corrente com trinchas?"
rir na margem e eu, colhido, na água fria, dentro da inocência da corrente. Mas, depois de molhado, voltei, cedendo ao convite insinuante do teu olhar a acompanhar a curva repetida do chamamento dos teus dedos. Não permitiste a minha vingança. Logo me enlaçaste para me acalentares. Não soube, então, se mais por piedade se por instintivo jogo sensual. Para teu prazer. Fiquei-te agradecido e nunca esqueci que recolheste em ti parte da água que a força da gravidade escorria da minha roupa. Apenas por caridosa solidariedade? Não ias tão longe, eu sei!
Denunciaste-te logo na proposta do desafio seguinte: “Vamos “capar” a água da corrente com trinchas? Quem ganhar pode exigir do outro o que quiser sem possibilidade de recusa”. Julgavas saber quem iria ganhar. Quiseste apenas servir-te do jogo para saberes se de mim emergia mais sentimento do que instinto.
Só que no lançamento das trinchas quis perder e foste tu a fazer a exigência sem recusa.
E rias quando assumiste as regras do jogo e me viste como cordeiro a imolar, submisso! Pois foi, o prometido era devido.  
Porque ambos quisemos, com convicção, celebrámos a exigência. E já lá vai tempo.
Hoje vou propor renovar a ida ao rio, minha enguia da esperança. Por isso, pressinto que não recusas. Vais afirmar, como desculpa, que é uma desforra do atirar das trinchas para “capeamento” da água.  Embora não sabendo quem vai ganhar, na impossibilidade da recusa, ambos ganharemos.  

A margem do rio aguarda a tua impaciência. Por isso, não vou fazer-te esperar.

José Carreto Lages ©2014,Aveiro,Portugal

5 comentários:

  1. Uma prosa repleta de poesia e um texto que transborda de sedução, de carinho e de uma subtileza emocionante que consegue agarrar o leitor da primeira à última linha transportando-o a um cenário idílico donde não quer soltar-se.

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  2. Um lindo jogo de sedução. Diria eu, um lindo hino ao amor, pois que, passados anos, poucos ou muitos não importa, a vontade de ser repetido.
    Gostei muito.

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  3. Um lindo texto descrevendo uma história vivida com tanta intensidade. Consegue cativar o leitor do princípio ao fim. Gostei tanto!... Que saudade do tempo em que também vivi jogos de sedução.

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  4. O "jogo" de palavras e imagens a exprimir a estimulante complexidade dos jogos de sedução. A Natureza como cenário. Lindo texto.

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  5. Expressões belas e deliciosas:"Quero-te como um alimento e não como uma veste"ou "... recolheste em ti parte da água que a força da gravidade escorria da minha roupa. Apenas por caridosa solidariedade?" e outras... fazem deste autor sénior um eterno adolescente capaz de nos transmitir esta prosa profunda, romântica e doce.

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