Já o sol raiava longe,
bastante longe, naquele pontinho em que o céu se liga à linha do horizonte e os
filhos da terra que ali teimam em vir passar uns dias se regalam, aproveitando
esta e outras dádivas que a natureza lhes oferece. A calma do local ajuda a
retemperar forças perdidas no meio do rebuliço das cidades, onde, porque a vida
lhes impõe, são dominados pelo stresse diário em que a corrida se tornou um
hábito. Nada melhor do que visitar as origens confraternizando com familiares,
amigos, que doutras paragens vêm, e redescobrir sempre com um novo olhar toda
aquela natureza que ali tem cheiros, cores e aromas bem diferentes. A serra
sempre altiva e deslumbrante transmite pelo barulho dos seus silêncios um
relaxe só perturbado pelos pássaros cantantes e pelas pequenas sinetas das ovelhas
e cabras que se saciam no pastoreio. Ali, as palavras trocadas em cumprimentos
rotineiros têm som, harmonia, fazem sentido, substituindo com enorme vantagem o
ruído dos eléctricos, dos automóveis ou as sirenes de polícias, bombeiros,
ambulâncias… As palavras, essas, já nem
se ouvem.
As palavras, essas, já nem se ouvem. |
Neste contexto se encontram
os amigos, que o foram em crianças, mas que eternizam essa ligação por uma vida
só porque ali se reencontram um, dois, três dias, quando muito, uma semana,
praticamente todos os anos. Deixaram de se conhecer, de partilhar a vida no seu
dia a dia, mas a memória acorrentou-os a uma amizade que se alimenta de
pequenos nadas vividos em poucos mas longos dias. No Café Popular todos procuram
a bica que lhes recorda tempos passados e anseiam sempre por encontrar mais
alguém — do seu tempo — que entretanto tivesse chegado.
— Ó, há quanto tempo…
Trocam-se beijos, abraços com a alegria de quem há muito se não vê. Vítor e Sara
chegavam à sua mesa mais uma cadeira para que o Gonçalo se juntasse ao matar
das saudades.
— Então, Gonçalo, estás bem
queimadinho… Vens da praia?
— Não, Sara, nem sequer
ainda tive férias. Por isso mesmo aproveitei alguns fins de semana para, nos
fins da tarde, me saciar de sol e mar chegando a apanhar o autocarro para casa
já de noite.
— E tu, Vítor, já há dois ou
três anos que a gente não se via?
— Sim, talvez há três… Sabes
que, quando nos preocupamos com a nossa carreira profissional, temos que
abdicar de algumas coisas.
Sara adiantou bastante
surpreendida:
— Ó, Vítor, quem te viu e
quem te vê? Antes eras um menino brincalhão, parecia não levares nada a sério e
agora… tão compenetrado… estou parva!
— Não percebo porque dizes
isso? E Vítor, com ar de poucos amigos, continuou: — Sabes que se não sou eu a
lutar por mim, quem é que o vai fazer?
— Ó, meu amigo, a vida não é
só trabalho. — acrescentou Gonçalo — Melhor dito, os nossos dias não podem nem
devem ser só dedicados à nossa profissão, a substância da nossa existência é
muito mais do que isso.
— Estou plenamente de acordo
— diz Sara olhando fixamente Vítor.
Adivinhava-se naquele trio o
inevitável, todos pretendiam saber uns dos outros mas cedo sentiam a sensação
de não se conhecerem na realidade. A aproximação entre eles era efetivamente
aquela herança dos seus tempos de criança. Apesar disso havia um prazer difícil
de explicar que sentiam em se encontrar.
Vítor, visivelmente irritado
e depois de uma pequena pausa, demasiado silenciosa para quem há tanto se não
via, exclamou com ar irónico.
— Pelo que vejo, ou melhor,
ouço, estou perante pessoas com a mentalidade de que tudo lhes vem ter à mão
sem que para isso nada tenham que fazer.
— Estás enganado meu caro. No
meu caso, posso garantir-te que trabalho estupidamente. Pelo facto de a minha
profissão me exigir muitíssimo, não deixo de fazer outras coisas que, para além
de me darem muito gozo, contribuem para que, quando eu, Gonçalo, me deito,
fique que nem uma pedra.
— Não me digas que estou
perante um campeão desportivo? Só pode ser — disse com ar emproado o Vítor.
— Enganas-te, por acaso
também jogo futebol uma vez por semana mas isso é uma forma de
um grupo de amigos
conviverem. O que após o meu trabalho me ocupa mais é a colaboração que dou a
um grupo organizado de voluntariado hospitalar.
Um grupo de voluntariado |
— Ó Gonçalo, que giro, nunca
te imaginei numa actividade dessas! Admiradíssima Sara não disfarçou o seu
espanto, acrescentando que também já em tempos tinha tido uma experiência
dessas mas que a sua vida actual, infelizmente, não lho possibilitava.
— Não me enganei, os meus
amiguinhos são assim umas boas pessoas que seguramente passam o dia a
lamentar-se por falta de melhores condições de vida e que em vez de trabalharem
para as conseguir andam “armados” em ajudantes do próximo… Cá o Vítor topa-vos
à légua.
Pela transfiguração dos
rostos dos atingidos deu para entender que o intérprete do dito tinha ido longe
de mais, ultrapassando em muito o tolerável tendo sobretudo em atenção que a
piada sendo de mau gosto mais se agravou exatamente pela não convivência entre
eles. A falta de sensibilidade revelada indiciava pensarem estar perante um Vítor
que de altruísta nada tinha, manifestando, pelo contrário, uma atitude egoísta
carregada de superioridade e, pior ainda, de muito pouco respeito pelos seus semelhantes.
A resposta não se fez esperar e Gonçalo, com uma calma impressionante, decidiu
espremer o fruto para se aperceber do sumo que continha.
— Estamos assim perante um
tecnocrata, muito competente na sua área, mas que consegue viver isolado dos
seres, humanos ou não, que o rodeiam. Terei ou não razão, Vítor?
Solidariedade |
— Não sei o que queres dizer
com “tecnocrata”, mas essa de viver isolado… Se queres saber, posso dizer-te
que cada um tem que olhar por si e não andar acoitado no estado social que
nunca existiu e como se está a ver deu no que deu.
Incrédula, de olhos
esbugalhados e rosto contorcido, Sara olhou Vítor nos olhos e retorquiu:
— Ó, Vítor, tu, porventura,
tens a noção do que acabaste de dizer ou estás mesmo numa de te divertires
provocando-nos? Tu tens alguma ideia do que é a solidariedade? Tu, pura e
simplesmente, te estás borrifando para o facto do estado social acabar?
Possivelmente, nem ainda deste conta do que se está, neste momento, a passar
nos Estados Unidos da América? Desculpa, tu tens a noção do que é viver em
sociedade?
— Calma Sara, não atrapalhes
mais o Vítor. Deixa-o responder. A mim o que mais me agrada numa conversa deste
tipo é que se estabeleça mesmo o contraditório. Sou apologista da discussão,
mesmo quando acalorada, desde que nasça alguma luz. Adoro conversar com pessoas
com opiniões diferentes das minhas, com nível e educação como é óbvio.
— Ó Gonçalo deixa-te de
pseudomoralismos. Para vocês que não têm qualquer noção de macroeconomia é tudo
muito simples. Então não percebem que isso do estado social, da própria União
Europeia, do facto do Sr. Obama pretender um serviço de saúde para toda a
populaça, é tudo uma grande treta? Solidariedade? Mas o que é isso? Estão a
contar-me histórias…
— Estou a ver que estamos a
desperdiçar o nosso tempo Gonçalo. O nosso amigo Vítor parece orgulhoso de não
partilhar nada. Depois de lhe ouvir o que ouvi tenho mesmo dúvidas de que tenha
algum prazer em ter amigos. De qualquer forma, deixa-me aconselhar-te uma
pesquisa sobre a formação da União Europeia para, no mínimo, passares a fazer
uma pequena ideia de como as coisas se passaram. “Uma Europa em paz, unida e
próspera”, “Mais do que coligar Estados, importa unir os homens”.
Importa unir homens |
Estas são
afirmações que vais encontrar ditas por verdadeiros democratas empreendedores
numa solução pacífica e democrática que mais tarde criou os alicerces do
verdadeiro estado social, que se baseava pura e simplesmente na existência de
um mínimo de solidariedade. Procura, lê, bem precisas. Começa mesmo no início —
o que levou seis países ao Plano Schuman — e depois… continua a ler. Quanto ao
serviço de saúde nos EUA já te ouvi o suficiente para entender que para ti é
completamente indiferente o facto de um cidadão só ter direito à saúde se tiver
um seguro, o que obviamente permite a assistência à medida da carteira do que
cada um pode pagar. Claro como água. Tu, Sr. Gestor, tens acesso a todos os
cuidados de saúde no maior conforto, o teu avô, pequeno agricultor, que
continue em sua casa com as mezinhas do costume. Fantástico!
Foi Gonçalo que,
habilidosamente, se agarrou às horas para pôr termo a uma conversa que afinal
de contas, de agradável, nada tinha. Despediram-se com um seco até logo. Sara
ainda segredou a Gonçalo:
— Logo, vamos é tomar a bica
àquele café novo que abriu ao pé do castelo.
2013/10/14
José Luis Vaz ©2014,Aveiro,Portugal
Uma forma engenhosa de enquadrar o tema Estado Social e mais especificamente a assistência na doença. Posiciono-me inequivocamente do lado da Sara e do Gonçalo. Para continuarmos a abordar o assunto e evitar a presença do Vítor, logo vou também tomar a bica ao café novo ao pé do castelo. Fica convidado o autor, Zé Luís, para animar o debate.
ResponderEliminarOs encontros de amigos que se ausentam podem ser uma caixinha de surpresas sobretudo quando a vida traça diferentes caminhos e alicerça rumos que se distanciam. Mas é sempre bom rever os amigos e tomar o tal café - mesmo que tenha de se mudar de café - porque o reencontro faz-nos actualizar as amizades que se vão diferenciando. Quando quiseres ir tomar o tal café para que a São te convidou aproveita e faz outros convites: quem sebe se não te lembras de me convidar também.
ResponderEliminarV de Vítor, V de vitória, vitória da tecnocracia e da cleptocracia mascaradas de DEMOCRACIA?
ResponderEliminarClaro que vamos tomar café, mas sem voltar as costas a tantos vitores que crescem como cogumelos Venenosos.
A primeira comentadora criou-me um problema. A segunda avolumou-o. A terceira retirou-me qualquer hipótese de "saída para a crise". Para além, de dar a certeza do evento - eu nem sei como se chama o café?... - não quer "voltar as costas a tantos vitores", ainda por cima, em fase de crescimento. Que será de mim... Mas já estou por tudo: levem os vitores que quiserem, desde que nenhum - não vá o azar fazer das dele - vá a Gaspar.
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