sábado, 18 de janeiro de 2014

Bizarros?!

Vamos retomar hoje o ciclo denominado “Violência sobre o ser humano”, após interrupção devida à época de Natal em que entendemos publicar textos com temáticas alusivas à época.

Voltamos a convidar todos os que queiram escrever sobre este tema e queremos dizer-vos que estão ainda a tempo de enviar os vossos trabalhos.

O dia seguinte seria igualmente quente – assim o fazia prever o calendário, assim o prometia o vermelho-alaranjado do poente. Através da janela, chegara-nos o apelo da beleza daquele semicírculo verdejante a quebrar a palidez monótona dos prédios em redor – sentir a frescura daquele retalho de natureza num fim de tarde cálida. E aí estávamos nós, neste cenário cheio de cor, numa conversa a meia-voz. Um taisez vous (Calem-se) disparado do alto dum quinto andar, impôs o silêncio.
Em frente, do outro lado da rua, o parque infantil – baloiços imobilizados, escorregas vazios, cavalinhos paralisados, portão encerrado… O que ainda há pouco transbordava de alegria e animação era agora vazio, inutilidade. Também os jovens plátanos, alinhados no passeio, pareciam invadidos por uma rigidez de pedra – nem o pipilar dum pássaro, nem o bulir dum ramo… Próximo do parque infantil, encimando uma coluna de mármore, um relógio moderno, de ponteiros esguios, rodando, num rodar lento mas constante, parecia sussurrar: Carpe diem! (Aproveita o dia!). Aquela quietude, feita de isolamento e ausência, fez-me sentir saudades da minha rua: branqueadas pelo tempo e pela distância, até as vozes boçais dos jogadores de cartas do café da esquina ressoavam na minha memória como acordes harmoniosos. E se fôssemos à Défense? Lojas luxuosas, pessoas que entram, que saem, que se apressam, que se detêm em frente às montras; parisienses, turistas, emigrantes, árabes, africanos, marcas dum império que se desfez… Alta costura francesa, saris, burcas, lenços, bonés, quipás … Não, nada de cosmopolitismo exacerbado, o silêncio começava a contagiar-nos. Ali bem perto, o mercado do Moulin de Chantecoq e as ruas circundantes afiguravam-se-nos como uma boa alternativa – desfrutar da calma do crepúsculo e contemplar, lá do alto, a elegância da Torre Eiffel; o orgulhoso Arco do Triunfo; mais além, a dominar a elevação de Montmartre, a religiosidade do Sacré Coeur; todo o encanto da cidade-luz nesse tempo misterioso em que o dia se despede e a noite avança docemente.

Avançamos pela rua Gutenberg. Não se vê vivalma. Viramos à esquerda. De súbito, algo atrai a minha atenção: do lado oposto, no estreito relvado que, contornando o prédio, o separa do passeio, um casal deitado. Ele por cima. Não, não era isso! Não tive tempo de me escandalizar com o despudor, rapidamente compreendi que a situação era outra: ele rodeava-lhe o pescoço com as mãos em jeito de a estrangular. Reparando na mala dela, caída ao lado, pensei num assalto. Não, também não era um assalto. Não precisava de compreender mais nada, tinha de passar à ação.
 – Fica aqui a olhar para eles, mas não digas nada.
...não digas nada.
E corri até ao transeunte mais próximo, que seguia calmamente pelo passeio. Chamei-o. Queria pedir-lhe ajuda, mas o meu Francês, inseguro pela falta de uso e pela emoção, não respondia. Com muito esforço, gaguejando, lá consegui articular umas palavras que, acompanhadas de gestos, deram corpo à minha mensagem – pedi-lhe que me ajudasse, que chamasse a polícia. E apontei o casal. Ele olhou-me do alto do seu metro e noventa com um sorriso e uma expressão onde se lia: Olha esta! Bem se vê que és da província! Ainda te preocupas com estas coisas? E, apontando o casal que, recuperando a compostura, já se levantava e encaminhava para o passeio: Regarde, ils sont bizarres! (Olha, eles são bizarros) e riu, riu ruidosamente.
...o espetáculo chegara ao fim
Desconcertada, percorri com o olhar o espaço envolvente. Do alto duma varanda, sobranceira àquele pequeno relvado, uns jovens preparavam-se para se retirarem – o espetáculo chegara ao fim, o pano descia lentamente, soltavam-se as gargalhadas finais. Ainda incrédula, fiquei a olhar o casal. Ele de fato e pasta de executivo, ela de saltos altos e roupas elegantes, uma verdadeira parisiense. Sempre silenciosos – nem um insulto, nem um queixume, nem um pedido de socorro –  já seguiam pelo passeio fora, lado a lado, em passo lento, mas firme. Pouco a pouco, a distância ia reduzindo a nitidez daqueles dois corpos que, envoltos num véu de aparência, desapareceram na curva da estrada.

 Conceição Cação ©2014,Aveiro,Portugal


3 comentários:

  1. "seguiam pelo passeio fora, lado a lado, em passo lento, mas firme.": a serenidade construída como uma cortina que esconde a agressão, às vezes uma vida inteira, às vezes desde o primeiro minuto de intimidade...
    EM NOME DE QUÊ?

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  2. Bizarra é a palavra que melhor define esta situação: bizarro o espectáculo a que alguns “assistem” como se de um espectáculo mesmo se tratasse. E realmente podemos interpretar esta situação como o retrato de uma anomalia numa sociedade em que a violência parece ter tomado conta das relações – de convivência, de amizade, de amor – entre as pessoas. Mas bizarra também a indiferença com que o espectáculo é encarado – “não digas nada” – por quem assiste a uma cena assustadora mas fica apenas a ver sem que a deixem intervir. Bizarra também o seguir em frente, cada um para seu lado – sem tomar posição, sem apoiar ou condenar, sem uma palavra ou uma atitude.

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  3. "Olha esta! Bem se vê que és da província! Ainda te preocupas com estas coisas?"
    E porque esta mentalidade acaba sempre por vingar, em nome da segurança retiram-se liberdades e propaga-se o medo, em defesa da justiça social penalizam-se os mais fracos, propalando a evolução ridicularizam-se os defensores de princípios elementares e assim se chega à indiferença total em relação a tudo que nos rodeia.
    O despropósito deste comentário é tanto maior quanto quase ridículo foi o número de mulheres assassinadas - SÓ TRÊS - em Portugal, na última semana.

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