Vamos retomar
hoje o ciclo denominado “Violência
sobre o ser humano”, após
interrupção devida à época de Natal em que entendemos publicar textos com
temáticas alusivas à época.
Voltamos a
convidar todos os que queiram escrever sobre este tema e queremos dizer-vos que
estão ainda a tempo de enviar os vossos trabalhos.
O dia seguinte seria
igualmente quente – assim o fazia
prever o calendário, assim o prometia o vermelho-alaranjado do poente. Através
da janela, chegara-nos o apelo da beleza daquele semicírculo verdejante a
quebrar a palidez monótona dos prédios em redor – sentir a frescura daquele
retalho de natureza num fim de tarde cálida. E aí estávamos nós, neste cenário
cheio de cor, numa conversa a meia-voz. Um taisez
vous (Calem-se) disparado do alto dum quinto andar, impôs o silêncio.
Em frente, do outro lado da
rua, o parque infantil – baloiços imobilizados, escorregas vazios, cavalinhos
paralisados, portão encerrado… O que ainda há pouco transbordava de alegria e
animação era agora vazio, inutilidade. Também os jovens plátanos, alinhados no
passeio, pareciam invadidos por uma rigidez de pedra – nem o pipilar dum pássaro,
nem o bulir dum ramo… Próximo do parque infantil, encimando uma coluna de
mármore, um relógio moderno, de ponteiros esguios, rodando, num rodar lento mas
constante, parecia sussurrar: Carpe diem!
(Aproveita o dia!). Aquela quietude, feita de isolamento e ausência, fez-me
sentir saudades da minha rua: branqueadas pelo tempo e pela distância, até as
vozes boçais dos jogadores de cartas do café da esquina ressoavam na minha
memória como acordes harmoniosos. E se fôssemos à Défense? Lojas luxuosas,
pessoas que entram, que saem, que se apressam, que se detêm em frente às
montras; parisienses, turistas, emigrantes, árabes, africanos, marcas dum
império que se desfez… Alta costura francesa, saris, burcas, lenços, bonés,
quipás … Não, nada de cosmopolitismo exacerbado, o silêncio começava a
contagiar-nos. Ali bem perto, o mercado do Moulin de Chantecoq e as ruas circundantes
afiguravam-se-nos como uma boa alternativa – desfrutar da calma do crepúsculo e
contemplar, lá do alto, a elegância da Torre Eiffel; o orgulhoso Arco do
Triunfo; mais além, a dominar a elevação de Montmartre, a religiosidade do
Sacré Coeur; todo o encanto da cidade-luz nesse tempo misterioso em que o dia
se despede e a noite avança docemente.
Avançamos pela rua Gutenberg.
Não se vê vivalma. Viramos à esquerda. De súbito, algo atrai a minha atenção:
do lado oposto, no estreito relvado que, contornando o prédio, o separa do
passeio, um casal deitado. Ele por cima. Não, não era isso! Não tive tempo de
me escandalizar com o despudor, rapidamente compreendi que a situação era
outra: ele rodeava-lhe o pescoço com as mãos em jeito de a estrangular. Reparando
na mala dela, caída ao lado, pensei num assalto. Não, também não era um assalto.
Não precisava de compreender mais nada, tinha de passar à ação.
E corri até ao transeunte
mais próximo, que seguia calmamente pelo passeio. Chamei-o. Queria pedir-lhe
ajuda, mas o meu Francês, inseguro pela falta de uso e pela emoção, não
respondia. Com muito esforço, gaguejando, lá consegui articular umas palavras
que, acompanhadas de gestos, deram corpo à minha mensagem – pedi-lhe que me ajudasse,
que chamasse a polícia. E apontei o casal. Ele olhou-me do alto do seu metro e
noventa com um sorriso e uma expressão onde se lia: Olha esta! Bem se vê que és da província! Ainda te preocupas com estas
coisas? E, apontando o casal que, recuperando a compostura, já se levantava
e encaminhava para o passeio: Regarde,
ils sont bizarres! (Olha, eles são bizarros) e riu, riu ruidosamente.
...o espetáculo chegara ao fim |
Desconcertada, percorri com
o olhar o espaço envolvente. Do alto duma varanda, sobranceira àquele pequeno
relvado, uns jovens preparavam-se para se retirarem – o espetáculo chegara ao fim,
o pano descia lentamente, soltavam-se as gargalhadas finais. Ainda incrédula, fiquei
a olhar o casal. Ele de fato e pasta de executivo, ela de saltos altos e roupas
elegantes, uma verdadeira parisiense. Sempre silenciosos – nem um insulto, nem
um queixume, nem um pedido de socorro – já seguiam pelo passeio fora, lado a lado, em
passo lento, mas firme. Pouco a pouco, a distância ia reduzindo a nitidez
daqueles dois corpos que, envoltos num véu de aparência, desapareceram na curva
da estrada.
Conceição Cação ©2014,Aveiro,Portugal
"seguiam pelo passeio fora, lado a lado, em passo lento, mas firme.": a serenidade construída como uma cortina que esconde a agressão, às vezes uma vida inteira, às vezes desde o primeiro minuto de intimidade...
ResponderEliminarEM NOME DE QUÊ?
Bizarra é a palavra que melhor define esta situação: bizarro o espectáculo a que alguns “assistem” como se de um espectáculo mesmo se tratasse. E realmente podemos interpretar esta situação como o retrato de uma anomalia numa sociedade em que a violência parece ter tomado conta das relações – de convivência, de amizade, de amor – entre as pessoas. Mas bizarra também a indiferença com que o espectáculo é encarado – “não digas nada” – por quem assiste a uma cena assustadora mas fica apenas a ver sem que a deixem intervir. Bizarra também o seguir em frente, cada um para seu lado – sem tomar posição, sem apoiar ou condenar, sem uma palavra ou uma atitude.
ResponderEliminar"Olha esta! Bem se vê que és da província! Ainda te preocupas com estas coisas?"
ResponderEliminarE porque esta mentalidade acaba sempre por vingar, em nome da segurança retiram-se liberdades e propaga-se o medo, em defesa da justiça social penalizam-se os mais fracos, propalando a evolução ridicularizam-se os defensores de princípios elementares e assim se chega à indiferença total em relação a tudo que nos rodeia.
O despropósito deste comentário é tanto maior quanto quase ridículo foi o número de mulheres assassinadas - SÓ TRÊS - em Portugal, na última semana.