quarta-feira, 31 de julho de 2013

CHUVA A SEU TEMPO

EVOLUIR agradece ao autor o envio deste texto para publicação

  J. Carreto Lages


Algumas nuvens pavoneavam-se bem alto, vindas em turismo, de muito longe, apenas para nos visitar em seu recreio e lazer, e até pareciam acenar promessas de que a chuva ia chegar, o que já não acontecia há muito tempo. O diminuído viço do “renovo” já exibia, em várias culturas, a notória falta da ternura líquida da água para se dessedentar. Os agricultores estavam justificadamente preocupados, inventando várias razões para a anormal escassez da água nos charcos, nas nascentes e nas ribeiras. Tanto cuidado e trabalho na sementeira, na adubação, na monda e a água a minguar em todo o lado, a preanunciar uma má colheita dos produtos das culturas de regadio. A colheita do sequeiro havia sido a habitual, com as geadas a afectarem a produtividade.
Parecia que a natureza se desconcertara, com o rodar dos tempos, talvez por canseira, ou alguma mão, a ela estranha, andava a intervir na essência do seu percurso.
Até as giestas haviam florido mais cedo
Até as giestas, naquele ano, haviam florido, muito mais cedo, coagidas pelo estímulo de uma vaga de calor que viera do deserto africano e que, talvez, enamorada pelas belezas das nossas terras, se deixara agarrar e ameaçava continuar. As giestas negrais já haviam formado a vagem, que ostentavam com vaidade na aridez e secura dos campos.
As aves, durante o dia, refugiavam-se nas árvores das hortas ou nos salgueiros, freixos e amieiros dos terrenos de pastagem, onde a temperatura era mais fresca. E quedavam-se na modorra, escudando-se numa falsa letargia para que se ignorasse a sua presença

O calor desmesurado e a falta da água passou a preocupar novos e velhos, residentes na povoação.
As pessoas, nos seus encontros, infalivelmente resvalavam nas palavras para comentários sobre o tempo e o seu calor excessivo que tão prolongadamente se fazia sentir, como se as cabeças, também elas, por falta de humidade, indiciassem estiolar com perda de imaginação e da veia criativa.
A preocupação inicial, de alguns, generalizou-se e ameaçava ser doentia obsessão. Não
A preocupação ameaçava ser
doentia obsessão
chovia há muito tempo e não se sabia quando iria acontecer. De nada valiam as consultas a agendas com prognósticos meteorológicos e calendários borda de água.
Alguns lembravam costumes antigos, já perdidos e que, “in extremis” desejavam ressuscitar. Fazer um arraial a agraciar a lua nova, para que exercesse as suas astrais influências e as nuvens, prenhes de água, alinhassem no trovejar.
Outros, mais estóicos, resignavam-se à falta de chuva e à escassez da água como castigo dos males do nosso tempo, de se ir estouvadamente à lua ou de, abusivamente, se pretender intervir na rota dos planetas.
Mas havia outros mais crentes na intercessão dos santos, que recomendavam a procissão pelas ruas da aldeia, invocando, numa ladainha cantada, a influência de todos os santos, para que, nos termos devidos e locais próprios, fizessem as diligências necessárias à vinda de chuva de modo a que regasse os campos e alimentasse as nascentes.
Quereis chuva?... olhai que não
é tempo dela
E, então, zelosos mordomos, convencidos da justeza da opinião, foram falar com o velho padre da freguesia para que, não obstante o evidente interesse material dos peticionários, a procissão se fizesse, com cânticos e preces, invocando os santos para a vinda de chuva, bem caída e em abundância.
- Sr. Padre, estamos preocupados. Há muito que não chove, o tempo anda e continua muito quente, o povo está aflito com a escassez da água e teme-se que as culturas deste ano se percam. E se fizesse uma procissão e a chuva viesse?
- Oh rapazes, quereis a procissão, pois sim, vamos lá, vamos lá. Quereis chuva, está bem, vamos lá…mas previno-vos: olhai que não é tempo dela.

5 comentários:

  1. Um texto de Verão que pede chuva fora de tempo... como quem fala duma noite durante o dia ou de um sol em pleno mês de Dezembro. Às vezes porém a vida surpreende-nos com estados de espírito que parecem, como a chuva, fora de tempo. É este o caso:o autor transmite-nos uma juventude que nos fascina pela rara beleza da sua escrita e pelo encadeamento surpreendente que nos conduz a um fim inesperado.

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  2. Plantas sedentas, colheitas em risco, agricultores aflitos, suplicantes... O drama que se repete sempre que a natureza se desconcerta. Mas eis que da desolação da terra crestada nasce um texto cheio de poesia - uma brisa fresca e suave na secura do verão.

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  3. Um bonito texto que nos conta a realidade dos nossos agricultores, quando a chuva teima em não aparecer e é tão precisa. Realmente como diz a Albertina, o texto teve um fim inesperado. Foi um prazer ler este texto.

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  4. Um texto que retrata a realidade sociológica rural com rara exatidão e conhecimento de costumes e tradições. Lamentavelmente, a incerteza permanente dos nossos agricultores, as fatídicas "partidas" do tempo, as procissões milagrosas, são alguns dos exemplos que neste belíssimo texto espelham a debilidade de uma agricultura que continua pobre - de auto-subsistência na sua maioria - como os seus autores, paupérrima como os insignificantes (ir)responsáveis que da agricultura se têm dito ministros mas que nunca tiveram a ousadia patriótica de saberem adaptar a nossa realidade à modernidade.

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  5. que modo tão precioso de usar a nossa língua.!
    verdadeiramente peça literária, pela beleza das imagens e da linguagem metafórica, pela escolha dos recurso estilísticos, ao serviço de um tema quase prosaico, mas perene, porque não comandamos as forças da natureza.

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