Júlia
Sardo
De vez em quando, para meu espanto,
dou por mim a recordar coisas da minha infância.
A minha memória faz-me visualizar
momentos de muita felicidade.A minha mãe estava numa janela, a
ver-me com as minhas amigas que, depois da escola, iam para a minha casa
brincar.
A casa não era muito grande e estava
pintada de branco. Tinha à frente, uma porta, que dava para a sala e, de lado,
uma janela pintada de castanho. Era para uma dessas janelas que a minha mãe ia
sempre, para ver se nos acontecia algo de mal.
Lá dentro era composta por três
quartos, uma sala de estar e uma sala de jantar. Ao centro, um corredor, que
dava acesso à cozinha. A cozinha era o lugar onde eu mais
gostava de estar, porque a minha mãe foi sempre uma boa cozinheira; era cada
petisco, que ela fazia tão bom que, ainda hoje, sinto esses cheiros e os
sabores dos seus manjares.
O cheirinho a café de saco... |
O cheirinho do café de saco, que ela
fazia para as costureiras, que iam lá para casa costurar, chamava a atenção a
quem passava.
Como eu estava a falar, a casa não
era muito grande mas, para mim, parecia um palácio.
À frente tinha um jardim que, não
sendo muito grande, dava para brincar à vontade.
Nesse jardim havia alguns arbustos
bonitos, flores e uma oliveira frondosa. Lembro-me de apanhar muitas azeitonas.
Além dos arbustos, havia uma árvore
muito grande a que chamávamos abrunheiro.
Foi nesse abrunheiro.... |
Foi nesse abrunheiro que o meu pai me
fez um balancé com uma corda e uma telha.Essa ameixoeira dava umas ameixas que
eram uma delícia. Eram amarelas e grandes.
De vez em quando, apanhávamos frutos
e roíamos com uma vontade, que só visto. Eram muito saborosas e tinham muito
sumo. O sumo era tanto, que nos escorria pelo queixo. Ficávamos todos molhados,
mas não importava. O que nos importava era o prazer de as comer.
Recordo muitas coisas da minha
infância, mas há uma, que podia dar em tragédia, mas acabou por ser engraçada,
para mim, no final do dito episódio.
Naquele tempo, havia muitas valas por
onde corriam as águas da chuva.Ora ia eu, toda jeitosa, num desses
dias em que as valas estavam cheias, para a escola, quando vejo vir direito a
mim o meu primo com uma bicicleta. Eu, armada em esperta, pus-me no meio da
estrada com os braços abertos e a dizer-lhe: não passas, não passas…
Ele, que também era terrível, passou
mesmo, levando-me à frente, indo eu cair na vala cheia de água, que estava
cheia de girinos.Imaginem como eu fiquei, com o meu bibe
branquinho, dentro daquela sujidade toda.
Alguém foi fazer queixa ao professor
Carlos, que andava à procura da bicicleta,
que tinha desaparecido. Como a
bicicleta em questão era do professor, imaginem; o meu primo levou uma grande
tareia do professor e quando chegou a casa levou outra da mãe, por me ter
mandado para a água.
Ele, que também era terrível... |
Claro, que nessa altura eu fiquei
satisfeita por se ter feito justiça. Mas depois tive pena, porque ele apanhou
mesmo.
Ao outro dia, quando nos encontrámos, porque as nossas casas eram pegadas, ele pôs-me uns
olhos, que meteram medo, mas como eu nessa altura, tinha as costas quentes, não
me importei.
Hoje essa casa já não existe o que me
provoca muita pena, porque quando lá passo, o instinto leva -me a olhar sempre,
a ver se a vejo.
Só que ela já não está, fisicamente,
mas está na minha memória. Eu consigo visualizar aquelas imagens tão queridas
para mim.
Os cheiros, os sabores, as brincadeiras da infância e a casa que já lá não está, mas que permanece como imagem viva na memória da Júlia.
ResponderEliminarSempre que aqui aparece uma publicação da nossa Julinha revejo uma tela e muita, muita cor. E depois imagino um(a) pintor(a)a misturar cores e a desferir pinceladas. Aí chega-me um cherinho a "café de saco" e apetece-me esquecer tudo à volta e ficar deitada de costas num imenso relvado onde só o céu é real... e penso:que bem me fazem as suas memórias,Julinha!
ResponderEliminarEste texto transportou-me também para a casa da minha infância e para algumas histórias a ela associadas. Ainda lá está... Imponente, mas oca... Sem pessoas, desabitada... Um arquivo sem vida. Recordo peripécias idênticas ao boiar da Julinha na vala. As cenas que verdadeiramente retratam a ingenuidade das crianças. Mais uma vez, foi muito bom ler esta sua história.
ResponderEliminarJúlia, é tão bom poder recordar a infância com todas as situações boas e menos boas que vivemos. Que bom quando se podem recordar esses momentos com alguma saudade e voltar a viver todo o amor de que estávamos rodeadas.
ResponderEliminarComo sempre sabes bem transmitir esse sentimento.
As recordações da infância também me encantam. Não sei porquê. Provavelmente ligam-me a momentos de muita felicidade e de muitas saudades. O meu pai era marítimo e só estava com ele de seis em seis meses. De modo que andava meses e meses a pensar nele, mesmo enquanto brincava. E isso marcou-me muito. Ainda hoje, ao recordar brincadeiras, a sua imagem e o seu sorriso me enchem a alma. Obrigado, Julita.
ResponderEliminarDo teu pincel saiu este texto que tanto me encanta. Verdadeiramente projeta-me no mundo tão vivo das memórias...
ResponderEliminarObrigada pelos vossos comentários. É muita da vossa amizade a falar.
ResponderEliminartexto descritivo de memórias, mas emotivo e comum a todos nós, os da "geração grisalha".
ResponderEliminarsão sabores, cores, cheiros, imagens e movimentos que fizeram parte de uma infância que "já não é o que era"...