José Luís Vaz
Era uma vez, um homem, José
Teixeira da Silva, que se dedicava a roubar os ricos para dar
aos pobres. Viveu
no século dezanove e ficou conhecido pelo Zé do Telhado. Hoje, século vinte e
um, a tradição já não é o que era. Em Portugal não se lhe conhece nenhum
seguidor.
José do Telhado |
Mas o mesmo não pode dizer-se
em relação aos mentores do contrário — roubar aos pobres para dar aos ricos.
Ainda me lembro de um tal rapaz de fino penteado, modos leves, trato esmerado,
de educação visível e sentida por quantos o rodeavam ansiosamente, fazendo
lembrar os seguidores de Cristo. Tinha sempre um sorriso — talvez por acordo
com alguma grande superfície —, uma palavra serena e sensata para os seus
interlocutores, fosse num congresso, numa conferência de imprensa ou numa mera
resposta de circunstância que os jornalistas são useiros e vezeiros em
provocar.
O desfilar na passadeira das
figuras públicas começou bastante cedo, quando ainda jovem prometia para mais
tarde o que naquela altura já fazia com grande desenvoltura liderando a “jota”,
termo utilizado para designar uma organização partidária de jovens. Ele
treinou, treinou e com tão dedicado desempenho acabou por atrasar, se calhar,
uma brilhante carreira estudantil que o levaria ao património dos doutores
(leia-se Drs). Já naquele tempo prometia ser um homem preocupado com a pátria e,
para a servir, nada melhor que adquirir competências em economia.
...gerir um país |
Imediatamente se rodeou de
alguns (poucos) colaboradores e, aproveitando outras competências que a vida
lhe proporcionou, estudou uma nova entoação de voz de acordo com os novos
desafios. Voz bem colocada, equipa afinada, pasta das finanças bem cuidada, e
podia finalmente dar azo aos seus desígnios, sempre profundos e objectivos, de
mandar, mandar, mandar. A estratégia determinante dos superiores interesses da
nação definida com a profundíssima ajuda do seu colaborador das finanças, deveria
conduzir o país a uma recuperação nunca experimentada de forma a corrermos com
o fôlego necessário atrás do pelotão da frente.
Esta expressão já dos tempos
da jota era muito utilizada por um senhor, agora muito velhinho, mas o povo tem
corrido, corrido e não há maneira de ver o que é isso do pelotão nem da frente
nem de trás. Como devem ter perdido o aludido agrupamento militar, agora, com
aquela voz bem colocada e firme, o lema é recuperar a soberania nacional (não
confundir com o ”Soberania de Águeda”!). Segundo consta, Portugal tem uma
dívida muito grande e o homem de S. Bento faz tudo o que pode para que se pague
a toda a gente de forma a evitar ditos maldizentes, que repudia na defesa dos
superiores interesses dos bancos portugueses. As instituições financeiras do
país têm que, obviamente, reforçar as suas reservas e todos não somos demais
para contribuir para o equilíbrio da espinha dorsal da banca que serve os
cidadãos com elevada dedicação. Aquela voz firme e bem colocada, não se cansa
de determinar:
— É de elementar justiça que
os bancos não paguem IMI e que lhes seja permitido cobrar taxas a quem faz
deles mealheiro, indo lá depositar as poupanças sem ser onerados com uma renda
para lhe poderem albergar o seu pecúlio.
— Aos contribuintes deverá
ser cobrado um IVA mais justo, deverá proceder-se à modernização do IRS, à subtracção
de desperdícios do subsídio de desemprego, e ao ajustamento nos salários dos
funcionários públicos.
— Deficientes? Quem os tem
que trate deles, de acordo com as normas internacionais.
— Moderação nas pensões
contributivas, símbolo de solidariedade viva com aqueles que
trabalharam menos
anos e não tiveram tempo para descontar.
Moderação nas pensões contributivas |
— Aumento do horário de
trabalho para a Administração Pública de forma a dinamizar a economia.
— Dadas as alterações
climáticas, o pagamento do subsídio de férias será efectuado nos meses de
novembro e dezembro.
— Em nome da dignidade
financeira as reservas das instituições bancárias têm que ser reforçadas, disto
me parece já ninguém ter dúvidas, tornando-se urgente alterar a idade da
reforma para os 66 anos. Claro que as exigências dos nossos credores são para
ser satisfeitas e contribuindo conscientemente para um desenvolvimento mais
sustentado teremos que, patrioticamente, aumentar o desemprego. No caso dos
funcionários públicos, como sabem não há despedimentos, mas será devidamente
organizado um quadro de mobilidade, eventualmente, de sentido único, com vista
ao ordenado zero. Parece-nos, assim, irmos ao encontro da necessidade de
reforma e requalificação da nossa administração pública.
...grande capacidade contributiva dos portugueses... |
— Finalmente, pelo menos por
agora, tenho a certeza da grande capacidade contributiva dos portugueses em
todos os momentos mais difíceis da nossa história. Vejam o que se passa com o
nosso querido BCP, ainda há poucos anos era o nosso maior banco privado. O
Banif a passar actualmente pelas ruas da amargura… Mete dó, portugueses. Que
dizer dos nossos BES e BPI… Exemplos de cidadania ativa com todos,
especialmente com os mais oprimidos. É certo que temos tomado todas as medidas
para podermos evitar o colapso desta gente. Para isso dei ordens a todos os
administradores do banco estatal — a CGD — para que se ocupassem estritamente
com o financiamento a todos os bancos privados, dada a urgência com que teremos
que apresentar aos nossos companheiros da Europa um deficit corrigido, aliás,
de acordo, com os compromissos assumidos oportunamente. Portugueses, a hora é
difícil, vai exigir um pouco de esforço para conseguimos novamente ter uma
banca coesa e forte de forma a fazer frente aos problemas da macroeconomia.
A fulgurante estratégia
financeira, apoiada pelas rigorosíssimas previsões ao mais alto nível técnico,
possibilitou a prática de uma governação cheia de intencionalidade persecutória
na cobrança de impostos, exigente com trabalhadores e patrões não adaptados aos
novos conceitos de gestão e naturalmente eficaz na solidária ajuda aos bancos.
De visita ao distrito, que o
viu nascer, o Sr., de fino penteado e voz bem colocada, encontrou-se com seu
pai, pessoa de bem, que muito amargurado lhe disse:
— Ó filho, larga essa vida,
só arranjas más companhias e depois é o que se sabe… Nunca esperei viver para
te ver tratar tão mal… Eu sei que a tua intenção é boa, mas valerá a pena?
— Não tem que se preocupar,
paizinho. Sabe que tenho imenso orgulho no que faço, ajudar quem mais precisa.
Efetivamente, as pessoas, os contribuintes, não entenderão lá muito bem porque
mal ponho um pé fora do carro é logo uma grande gritaria. E sabe pai, podiam
chamar-me Pedro ou Pedrito, mas não, é só gatuno, gatuno, gatuno.
Um retrato vivo do Portugal que temos tão bem descrito pelo nosso amigo Zé Vaz. Ao ler este texto lembrei-me do cavalo do inglês que quando estava habituado a não comer, morreu. E tudo é feito em nome da democracia...e limpar e arrumar a casa. A minha está mais que arrumada e limpa...
ResponderEliminarParabéns!sempre a utilização eufemistica e o sarcasmo corrosivo como denominador comum do alvo.
ResponderEliminarGrande texto, Zé Luís. Feito com muita precisão e a dizer tudo aquilo que eu não fui capaz. Gostei de o ler.Quem será capaz de fazer a arrumação? Não sei.
ResponderEliminaraí está mais um texto ao estilo inconfundível do zé luís.
ResponderEliminardenso, prolixo, bem desenvolvido, carregado de feroz ironia, como forma de dar voz às forças de uma sentida oposição social.
Dava-me para parafrasear o Prof.º Boaventura e dizer que na realidade estamos a ser governados por políticos que nunca estiveram posicionados na realidade concreta: passaram da escola da politica (das jotas, como tu dizes e muito bem) para a politica da nação. E um país não se gere com teóricos que do seu pedestal ditam regras - para os outros - e continuam a viver numa redoma - isolada dos outros e deles próprios - em que tudo são facilidades e em que o vento não entra (nem sai).Depois há ainda os que chegando ao poder se esquecem que fomos nós que os elegemos e não somos, nem nunca fomos "carrascos" de ninguém. Estamos sim a sofrer as consequências não de uma má escolha mas de não termos possibilidades reais de escolha. Gostei do teu texto: fez-me pensar - no que acabei de escrever e em muito mais.
ResponderEliminarPerante este texto tão incisivo, fixei-me no nome Pedro e encontrei dois com estatura para serem lembrados: Pedro, o Amante, e Pedro, o Libertador. Mas noutra galeria da História, também terá lugar Pedro, o Tirano.
ResponderEliminarBelo texto a exprimir toda a desgraça que este belo e pobre país atravessa.
ResponderEliminarSempre oportuno e com o sarcasmo na ponta da língua, neste caso na ponta do dedo, o nosso Zé Luís brinda-nos com mais uma realidade que temos que enfrentar no dia a dia.
A análise da deplorável situação do nosso país numa prosa repassada de ironia e humor bem ao estilo do José Luís.
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