Fernanda
Reigota
Meus amigos:
Neste final do verão da minha vida, todos vós
sois imagens recorrentes no meu pensamento.
Meus amigos! |
Não sei explicar o motivo destas
visões: surgem, umas vezes sorridentes, outras contando episódios de que já nem
me lembrava…
Ao longo da vida vamos alterando a perspetiva
pela qual entendemos o que é um amigo. Hoje, é minha convicção que um amigo
nunca pode constranger a liberdade do outro, nunca pode ser conscientemente
constrangido na sua liberdade. Acredito que ser amigo é participar numa relação
de inteira liberdade e diferença. Entendo a amizade como sendo sempre
espontânea, havendo sempre apreço recíproco, dando cada um, nesse contrato
tácito entre duas pessoas, apenas o que pode e quer dar.
Amigo não é a pessoa com quem trabalhamos
confortavelmente, mas aquela que escolhemos, no intervalo para um café, e a
quem perguntamos, como estás?
Amigo não é um companheiro de paródia, porque
esses têm um objetivo comum que é divertir-se.
Amigo não se encontra obrigatoriamente nas
relações familiares: estas não nascem de um entendimento tácito e espontâneo, é
o nascimento que lhes dá consistência.
Designarei a amizade como o prolongamento do
encontro de dois indivíduos continuando, cada um, igual ao que era.
Simplesmente, existe, para eles, um elemento mais a contribuir para que a vida
se mostre em plenitude.
A amizade é um sinal de inteligência
emocional e adaptação do homem, que, assim, vai obstando à infelicidade da
solidão.
Não me alongo mais, pois o mais importante é
dirigir-me a cada um e dizer ao que vim. A cada um falarei. O nosso estatuto é
de uma realidade meio ficcionada. Cada um não é uma pessoa particular, mas sois
todos importantes, e, por isso, nomear-vos-ei por ordem alfabética.
...és uma mulher forte, de ideais, de trabalho |
Ana,
lembras-te como começou a nossa amizade? Há tanto tempo que não falamos, mas
tenho a certeza de que, quando nos reencontrarmos, reataremos a conversa no
ponto em que a deixámos. Melhor, o nosso olhar dirá numa fração de segundo tudo
o que vivemos. Dir-te-ei, és uma mulher forte, de ideais, de trabalho…mas, tão
nova, já o eras! Dir-te-ei, lembro-me sempre que és uma mulher de afetos, de
atenção aos outros… Mandaste-me o livro onde publicaste a fotografia de
circunstância que, na juventude, tirámos juntas… O meu silêncio é recusa de
falar sem ser de viva voz. A nossa amizade assim o exige. Estas férias, está
decidido, minha amiga!
Beatriz,
Catarina, Diana, Ema,
Perdemos o contacto, mas recordo-vos sempre.
Em que canto do mundo vos foi plantar a vida?
Lembro-me tão bem da força que tu, Beatriz, tinhas
e como me ajudavas a trepar a nossa passagem secreta para não ficarmos
enclausuradas no liceu durante os feriados, tão desejados, que os professores
nos proporcionavam com alguma regularidade.
Depois veio aquela ideia peregrina das aulas
de substituição e era contigo, Catarina, que conseguia inventar jogos para
passarmos o tempo da dita aula. Nem um ruído se podia ouvir, mas nós as duas
jogávamos por mímica, nem que fosse a calcular os pregos de todas as
... calcular pregos |
carteiras
da sala de aula. E, no fim, o problema tinha a solução correta: exercitávamos o
nosso direito de liberdade e de amizade.
E nós, Diana, nas longas tardes de verão das
férias grandes, quando já estávamos cansadas de ler, inventávamos mil pretextos
para irmos caminhar na cidade e falarmos do nosso futuro: cada uma tinha-o tão
bem desenhado em pensamento e falávamos com tal convicção, que ainda hoje não
sei como a vida nos trocou as voltas.
Também te perdi o rasto, Ema, mas não esqueço
a tua disponibilidade para, como profissional um pouco mais velha, me
orientares a título de amizade, que quase nem sabia que já tinha principiado.
Francisca,
vi-te florires para a maternidade, vi-te sempre com um sorriso para os amigos.
Atendi as tuas chamadas surpreendentes, nunca percas os meus filhos de vista. Corri
quando a aflição não era hipótese. Sempre olhámos o mundo com empenho, muito
conversámos, muito concordámos, mas também muito discordámos.
Em muitas outras facetas das nossas vidas, o
pretérito perfeito do modo indicativo está conjugado.
Tira um curso |
Gustavo, nem
sequer eras rebelde, mas nunca deixaste de pensar por tua cabeça e quando te
injustiçavam, não te calavas. Isso valeu-te um estalo na cara que muito te
magoou a alma. Eu lutei muito para teres a desculpa que te era devida, mas nada
consegui. Como tu compreendeste nesse dia que o 25 de Abril tinha de ser feito
todos os dias, porque muitos se mascararam para continuarem a ser os mesmos.
Que encanto, quando presenciei dizeres à tua
mãe que, durante a aula de matemática, um passarinho tinha mergulhado trinta
vezes numa poça de água! Já nessa altura te interessava a geometria de
abraçares o mundo da fotografia. E, para isso, acabado o 12º Ano, partiste para
França para tirares lá o teu curso de fotografia. Vai para a faculdade. Tira um
curso. Depois talvez já nem queiras ser fotógrafo. Olhaste para a porta da vida
chamada decisão, que para muitos nunca é aberta, e vendeste o apartamento que o
teu avô te tinha deixado. Depois tudo se recompôs e hoje, quando, de tempos a
tempos, nos encontramos, é uma festa em que muitas frases começam por” lembras-te?”
e outras por “vou-te contar uma”
Helena,
mulher linda, gestos de carinho, tu és a minha menina-encanto que me garantes a
força que há nos jovens para serem os agentes da mudança que este mundo tanto
precisa!
Inês,
por ti sempre tive admiração, mas isso não é amizade. Sempre admirei a tua
cultura
...tu fazes um amigo |
sólida e sempre cultivada, a tua simplicidade para expores as tuas
dúvidas, as dúvidas de quem quer trilhar continuamente o caminho do
conhecimento.
A amizade por ti emergiu quando um dia
consciencializei a delicadeza com que tratas as pessoas, mesmo quando lhes
dizes verdades menos agradáveis ou as contradizes. De quem estiver disponível
para a amizade, tu fazes um amigo.
Joana,
vinhas menina silenciosa e a nossa amizade exigia um ritual, para se consentir
a cada dia recomeçada: comias uma maçã que eu te lavava e ao som das tuas
dentadas eu ia falando. Lembras-te da palavra grega hýpnos e de tantas outras a que prestavas atenção
e te faziam rir?
No fim da maçã
sorrias e dizias até amanhã. E eu ficava em sobressalto sempre que te atrasavas
um pouco.
Hoje sorrimos
sempre que o nosso olhar se cruza e, por momentos, se prende.
Laura,
acordaste-me um dia manhã cedo, pois tinhas pressa de nascer. Ainda não era o
SNS que transportava as parturientes e tudo se passou como combinado. Tu, eu e
a tua mãe abalámos para a maternidade. A tua pressa era muita e eu, olho na
autoestrada, olho na tua mãe, bem a via contorcer-se. Falei-te e disse que
faltava pouco, íamos chegar dentro de minutos. Foi o nosso clique de amizade.
Sossegaste e creio que sorriste, pois hoje é assim que tu falas: sempre com um
sorriso a sublinhar o início de qualquer conversa.
É meu neto! |
Nuno,
meu primeiro neto, fruto da nossa
cumplicidade. Como nos divertimos. Estranharam eu estar acompanhada por um
menino que não conheciam e à curiosidade alheia, respondi, é meu neto. Todos
estranharam, mas acreditaram e nós muito nos rimos depois. Estás longe, mas tão
perto, e sempre que vens vejo nos teus olhos de jovem adulto a ternura de
sempre, a ternura de quem bebia o biberão de mansinho, como quem saboreia a
vivência de cumplicidades com um amigo. Imagino-te muitas vezes a brincares com
um filho. E como gosto de vos
apreciar.
Olavo,
gosto de conversar contigo: trazes às conversas aquela perspetiva em que eu
ainda não tinha pensado e deixas-me a procurar razões para, em muitos aspetos,
não concordar com o teu ponto de vista. Isolas-te muitas vezes, talvez para
tentares exorcizar os fantasmas que África tatuou na tua pele, mas quando
apareces, vens de vista límpida e lúcida para o presente. Há amizades assim:
sempre de conversa feita a tecer a vida.
Pelo que já referi sobre o tema, não partilho
a ideia de haver grupos de amigos. Mas somos um grupo. Com cada um partilho um
acordo tácito de estar por inteiro. E o contrário também é verdadeiro. Estamos
todos de livre vontade e não nos integramos, como grupo, em nenhuma
instituição. Querem ver que nesta altura da vida descobrimos uma nova forma de
amizade?!
Fernanda Reigota ©2013,Aveiro,Portugal
niciámos o tema Amigos e Amizade com um texto de Fernanda Rendeiro e, por coincidência, é com a mesma autora que o encerramos. Fernanda Rendeiro traz-nos sempre reflexões que estabelecem o contraditório e empenham os colaboradores. É com enorme agrado que assinalamos a participação de tantos colaboradores neste blogue. Hoje estamos a celebrar um novo texto da Fernanda e "Antes que seja tarde" vejam também Manuel da Fonseca, na página Poemas e Livros. Depois nada melhor do que 20 000 visualizações no dia em que contamos com um texto especial duma pessoa que tornou tudo isto possível. Obrigada,Fernanda! E venham celebrar connosco...
ResponderEliminarÉ verdade. Foi a Fernanda que tornou tudo isto possível.Os textos dela são sempre reflexões que empenham os colaboradores. Afinal não sou eu que tenho uma memória de elefante. Gostei muito do teu texto,que mais uma vez primou pelo especial.
ResponderEliminar"Estas duas pontes, "já feitas uma só" sugerem-me uma outra com sete entradas, obra de arquitetura à base de palavras cimentadas pela amizade - EVOLUIR -"Com tanta ponte não há falta de amizade que perdure. Há grupos e grupos... Se necessário... fazemos um sindicato. Obrigado pelo "acordo tácito" e pelo entusiasmo que me tem sabido passar.(Oxalá nenhuma vírgula me traia).
ResponderEliminarÉ sempre um prazer ler o que escreves, ouvir as tuas ideias, partilhar contigo essa tua sensibilidade, aprender contigo como a vida pode e deve ser sempre um abraço, um sorriso, uma ponte para mudanças, uma ancora onde nos juntamos para renovar energias.
ResponderEliminarÉ muito bom fazer-mos parte deste reino em que és a rainha, professora e amiga.
obrigada.
Eu não vou falar do estilo, nem da forma, nem do conteúdo. Admiro a garra com que este texto foi feito, admiro a memória e o seu chamamento, admiro a descrição de tantas e tão variadas situações de amizade que abarcam várias etapas da vida e se entrecruzam num momento de rara introspecção. E ouso dizer que também estou ali, mesmo que numa palavra perdida, mesmo que numa gaivota pousada: foi muito bom terminar o tema da Amizade com este trabalho. Muito mais que um trabalho ele é o reflexo duma vida – e que vida!
ResponderEliminarFica, assim, encerrado o tema com chave de ouro. "A amizade é um sinal de inteligência emocional", uma necessidade, uma inevitabilidade decorrente das interações humanas e da nossa busca incessante do equilíbrio, da felicidade, da plenitude. O nosso universo de amigos está sempre aberto a novas estrelinhas. Obrigada por me terem incluído na vossa constelação.
ResponderEliminarE quis o tempo e a oportunidade que fosse eu a fechar o nosso ciclo de comentários. Ontem passei por aqui, mas faltaram-me as palavras. Hoje ainda não apareceram. Contudo, e porque amanhã penso não ser muito correto e também na incerteza de continuar com esta falta de palavras, apenas quero expressar aqui o quanto me faz sentir viva quer me chame Paula, Regina, Sara, Sofia ou Vitória. Obrigada Fernanda por ter contribuido também para a nossa união.
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