EVOLUIR agradece ao autor o envio deste texto para
publicação
J. Carreto Lages
Algumas nuvens pavoneavam-se
bem alto, vindas em turismo, de muito longe, apenas para nos visitar em seu
recreio e lazer, e até pareciam acenar promessas de que a chuva ia chegar, o
que já não acontecia há muito tempo. O diminuído viço do “renovo” já exibia, em
várias culturas, a notória falta da ternura líquida da água para se
dessedentar. Os agricultores estavam justificadamente preocupados, inventando
várias razões para a anormal escassez da água nos charcos, nas nascentes e nas
ribeiras. Tanto cuidado e trabalho na sementeira, na adubação, na monda e a
água a minguar em todo o lado, a preanunciar uma má colheita dos produtos das
culturas de regadio. A colheita do sequeiro havia sido a habitual, com as
geadas a afectarem a produtividade.
Parecia que a natureza se
desconcertara, com o rodar dos tempos, talvez por canseira, ou alguma mão, a
ela estranha, andava a intervir na essência do seu percurso.
Até as giestas haviam florido mais cedo |
Até as giestas, naquele ano,
haviam florido, muito mais cedo, coagidas pelo estímulo de uma vaga de calor
que viera do deserto africano e que, talvez, enamorada pelas belezas das nossas
terras, se deixara agarrar e ameaçava continuar. As giestas negrais já haviam
formado a vagem, que ostentavam com vaidade na aridez e secura dos campos.
As aves, durante o dia,
refugiavam-se nas árvores das hortas ou nos salgueiros, freixos e amieiros dos
terrenos de pastagem, onde a temperatura era mais fresca. E quedavam-se na
modorra, escudando-se numa falsa letargia para que se ignorasse a sua presença
O calor desmesurado e a
falta da água passou a preocupar novos e velhos, residentes na povoação.
As pessoas, nos seus
encontros, infalivelmente resvalavam nas palavras para comentários sobre o
tempo e o seu calor excessivo que tão prolongadamente se fazia sentir, como se
as cabeças, também elas, por falta de humidade, indiciassem estiolar com perda
de imaginação e da veia criativa.
A preocupação inicial, de
alguns, generalizou-se e ameaçava ser doentia obsessão. Não
chovia há muito
tempo e não se sabia quando iria acontecer. De nada valiam as consultas a
agendas com prognósticos meteorológicos e calendários borda de água.
A preocupação ameaçava ser doentia obsessão |
Alguns lembravam costumes
antigos, já perdidos e que, “in extremis” desejavam ressuscitar. Fazer um
arraial a agraciar a lua nova, para que exercesse as suas astrais influências e
as nuvens, prenhes de água, alinhassem no trovejar.
Outros, mais estóicos,
resignavam-se à falta de chuva e à escassez da água como castigo dos males do
nosso tempo, de se ir estouvadamente à lua ou de, abusivamente, se pretender
intervir na rota dos planetas.
Mas havia outros mais
crentes na intercessão dos santos, que recomendavam a procissão pelas ruas da
aldeia, invocando, numa ladainha cantada, a influência de todos os santos, para
que, nos termos devidos e locais próprios, fizessem as diligências necessárias
à vinda de chuva de modo a que regasse os campos e alimentasse as nascentes.
Quereis chuva?... olhai que não é tempo dela |
E, então, zelosos mordomos,
convencidos da justeza da opinião, foram falar com o velho padre da freguesia
para que, não obstante o evidente interesse material dos peticionários, a
procissão se fizesse, com cânticos e preces, invocando os santos para a vinda
de chuva, bem caída e em abundância.
- Sr. Padre, estamos
preocupados. Há muito que não chove, o tempo anda e continua muito quente, o
povo está aflito com a escassez da água e teme-se que as culturas deste ano se
percam. E se fizesse uma procissão e a chuva viesse?
- Oh rapazes, quereis a
procissão, pois sim, vamos lá, vamos lá. Quereis chuva, está bem, vamos lá…mas
previno-vos: olhai que não é tempo dela.
Um texto de Verão que pede chuva fora de tempo... como quem fala duma noite durante o dia ou de um sol em pleno mês de Dezembro. Às vezes porém a vida surpreende-nos com estados de espírito que parecem, como a chuva, fora de tempo. É este o caso:o autor transmite-nos uma juventude que nos fascina pela rara beleza da sua escrita e pelo encadeamento surpreendente que nos conduz a um fim inesperado.
ResponderEliminarPlantas sedentas, colheitas em risco, agricultores aflitos, suplicantes... O drama que se repete sempre que a natureza se desconcerta. Mas eis que da desolação da terra crestada nasce um texto cheio de poesia - uma brisa fresca e suave na secura do verão.
ResponderEliminarUm bonito texto que nos conta a realidade dos nossos agricultores, quando a chuva teima em não aparecer e é tão precisa. Realmente como diz a Albertina, o texto teve um fim inesperado. Foi um prazer ler este texto.
ResponderEliminarUm texto que retrata a realidade sociológica rural com rara exatidão e conhecimento de costumes e tradições. Lamentavelmente, a incerteza permanente dos nossos agricultores, as fatídicas "partidas" do tempo, as procissões milagrosas, são alguns dos exemplos que neste belíssimo texto espelham a debilidade de uma agricultura que continua pobre - de auto-subsistência na sua maioria - como os seus autores, paupérrima como os insignificantes (ir)responsáveis que da agricultura se têm dito ministros mas que nunca tiveram a ousadia patriótica de saberem adaptar a nossa realidade à modernidade.
ResponderEliminarque modo tão precioso de usar a nossa língua.!
ResponderEliminarverdadeiramente peça literária, pela beleza das imagens e da linguagem metafórica, pela escolha dos recurso estilísticos, ao serviço de um tema quase prosaico, mas perene, porque não comandamos as forças da natureza.