quinta-feira, 18 de julho de 2013

E se o amor...

Albertina Vaz
E se o amor se comprasse....

E se o amor se comprasse ao quilo?

Com meio quilo de amor eu posso fazer dúzias de pastéis de nata e dar a cada um dos meus amigos um pastel e uma nata e posso ainda chamar aqueles que não gostam de mim e dizer-lhes: amigos, acabaram-se os pastéis de nata mas eu ainda tenho aqui trezentos gramas de amor para distribuir por todos vós.

E se o amor se comprasse ao grama?

Aí haveria uma grande bagunça e ninguém se entenderia. Então eu puxava dos meus trezentos gramas de amor e espalharia, como flocos de neve caindo em gotas de chuva, por entre grãos e mãos cheias de areia. Saberia bem, saberia a doce e a mel coado directamente da abelha viajante da urze do cimo da serra. Saberia a bola de Berlim e a bolo de chocolate em dia de faltas de chuva ou de chuva a mais. Saberia a flor de jasmim e a rosas silvestres e a violetas saltitantes que pousassem, de banco em banco, em rota cruzada, num qualquer jardim.

E se o amor se comprasse ao centigrama?

Uma flor que cresce, um sorriso que
desponta, uma gargalhada que se solta...
Amor a gente tem sempre: amor não se esvai, não se esconde, não se dilui nas manhãs submersas nem nas nuvens cinzentas. E quando o amor se empobrece, então nada melhor do que voltar a fazê-lo crescer: regá-lo com uma dose de sonho, limpá-lo com uma lágrima escorrida, refrescá-lo com um gelado fresquinho debaixo de um tórrido sol que queima e sabe a morango e a avelã, a frutos silvestres e a amoras madurinhas
Quando tudo estivesse gasto, claro que semeava mais: uma planta que nasce, uma flor que cresce, um sorriso que desponta, uma gargalhada que se solta e uma miragem que se distende na espuma miudinha das ondas do mar. E uma corrida saltitante em voo de pássaro que corta a linha da frente e se estica para o alto recusando a distância que lhe fica para trás.
Então, e se o amor se comprasse à tonelada?

Aí já não precisávamos de quilos de amor… aí teríamos o mundo inundado, as águas correriam pelas praças e banhariam as casas, os lagos, os jardins, as escolas, as ruas, as lojas, os hospitais… e todos sofreriam da doença do amor. Viriam os médicos, na sua imensa sabedoria, e depois de tudo examinarem diriam: isto não é uma doença, isto é uma epidemia! Para que tudo fique curado não se pode continuar a espalhar amor.

E se a chuva caísse em latadas de afeto
E se a chuva caísse em latadas de afecto e amizades de cor?

Aí viriam os professores e diriam: nunca se viu nada assim, desde a antiguidade aos dias de hoje, nenhum dos grandes manuais nos fala, nos conta, nos relata, uma inundação como esta: não é água, não é chuva, é uma torrente desenfreada que é urgente parar.

E viriam a seguir os engenheiros para construírem uma ponte que vedasse as cidades e as protegesse dessa peste endémica que tudo tinha avassalado e que se instalara sem pedir licença. Depois chegariam os construtores para reclamar da falta de espaço que grassava nas cidades onde o amor se acomodava encostando-se aqui, empurrando ali, agachando-se debaixo das curvas das estradas e empoleirando-se nas copas das árvores. E viriam também os jornalistas estupefactos porque tinham desaparecido as notícias: agora só se falava do amor e do amor que já não se comprava ao quilo mas brotava de cada pedaço vivo de terra nascente.

E viriam os políticos, os fazedores de opinião, os detentores do poder e dos poderes, os donos do dinheiro, os senhores que tudo sabem e tudo podem reclamando a desinstalação imediata do amor de todas as praças e de todas as ruas. E viriam os fiscais das finanças reivindicar a imediata suspensão do espalhamento do amor pelas ruas das cidades: quem iria fazer os cálculos, programar as contas, delinear os impostos, cobrar as dívidas – protestavam.

E viriam os informáticos juntar-se ao clamor dos restantes, protestando contra quem se tinha infiltrado no sistema, quem tinha ousado retirar a posição de cada um dos programas e de todos os projectos delineados após anos e anos de regras e contra-regras que num dia estão certas e no dia seguinte absolutamente incorrectas.

E viriam os cientistas, os psicólogos, os assistentes sociais reclamarem de quem lhes estava a roubar o público-alvo do seu trabalho porque na vida nada se tem e tudo se detém, e o amor não pode andar por aí espalhado pelas praças à mercê de cada um e de cada qual que quiser apanhá-lo em sistema de uma liberdade nunca vista nem nunca contada.

E viriam os teóricos, os donos da filosofia e da sociologia, os homens das diferentes igrejas, os poderosos senhores que inundam os templos e enchem os parlamentos e reclamariam da injustiça do amor estar a devastar o seu território e a arruinar o seu domínio. E viriam os vendilhões dos templos profanando a beleza de se ver o amor a florescer em cada esquina.

Estava instalado o caos – já não se comprava amor porque o mundo havia sido invadido por uma torrente de toneladas de bem-querer e em cada esquina os mendigos renasciam das trevas e os sem emprego abraçavam as janelas das oportunidades e os doentes desciam das macas renovando-se em abraços e agitando-se em tesouros.
... mal-me-quer, bem -me-quer, muuuuiiiiito!!!!!!!!!!

Só então se calariam as vozes de todos os mentores do progresso. E quando o silêncio se instalasse depararíamos com uma criança e uma flor. E das mãos da criança a flor era desfolhada, pétala a pétala, e a canção brotaria: mal-me-quer, bem-me-quer, muito, pouco, nada… mal-me-quer, bem-me-quer, muuuiiiiito!!!!!!!!!!!

10 comentários:

  1. O talento literário da Albertina mais uma vez evidenciado em sublime prosa poética. Li o texto dum fôlego, reli-o e hei de voltar a ele muitas vezes - emana dele uma energia, uma força que renova o nosso sonho, o nosso ânimo - a dialética acérrima entre o amor e os seus detratores. Grande texto, belo final! Excelente leitura para iniciar o meu dia. E que vença o amor!

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  2. A imaginação do surreal em ritmo melódico-doce do princípio ao fim, com pormenorização poética descritiva da figuração do possível. Por fim, a incarnação do afeto no sonho de descobrir o amor nas mãos da criança a desfolhar a flor. O surrealismo na poesia metafórica da palavra certa. Muitos parabéns por uma escrita verdadeiramente criativa.

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  3. Quem diria que o amor também se mistura com ironia? Estou estupefacto com teu delicioso texto. Até, aquela relutância com os números que nasceu contigo... Possivelmente, mesmo ao lado, da tua profunda expressão poética, tudo juntaste, como se de ingredientes similares se tratasse e como quem faz um bolo, tudo saiu devidamente combinado e com um aspeto e sabor excecionais. Vou alimentar-me - sempre que necessite - deste bolo espetacular!

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  4. O poder do sonho abre os caminhos da vida. O poder de sonhar o amor em toda a sua magnitude humana transfigura os limites e as barreiras, transportando-nos para a realização da utopia.
    O poder do sonho, do amor e de um texto tão bem orquestrado fizeram-me sentir o poder da palavra da Albertina.

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  5. Na realidade aqui está um texto de escrita criativa. Que cabeça tão poderosa a pensar,a imaginar e que entretanto é posto no papel para todos lermos. Gostei tanto, Albertina. Não lhe digo frases excecionais, mas com toda a simplicidade; Gostei muito de ler este texto feito com tanto poder para sonhar o Amor.

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  6. Li o teu belo texto, Albertina! O poder da tua sensibilidade, do teu sentido de justiça e da tua capacidade de amar está patente neste texto cheio de magia, que nos eleva para um Mundo imaginário (real) onde o amor deveria ser o ingrediente principal mas que perante os olhos dos humanos o excesso seria fatal. O final lindíssimo. Bem-me-quer muitoooooo! Obrigada


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    1. Obrigada Lidia, pelas tuas palavras tão sentidas. Ainda bem que consegui passar uma mensagem de que gostaste. São estas pequenas coisas que dão sabor à nossa vida.

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  7. Li e reli... Esta minha falta de memória proporciona-me prazeres assim. Obrigado por esta delícia que me soube como se fosse a primeira vez.

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  8. Esta pequena "Flor de Camomila" tem mais tem mais espaço criativo que muita "Flor de Girassol"

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  9. Belíssimo. Poupo nas palavras para intensificar o seu sentido - DELICIOSO!!!

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