quinta-feira, 11 de julho de 2013

A burra Carriça

Júlia Sardo

Clarita era uma menina que vivia numa aldeia do litoral, com os pais. Era franzina, cabelo loiro
Quem lhe faria estes caracóis?
em caracóis, feitos com papelotes e clara de ovo.Laçarote na cabeça, lá andava ela, sempre traquinas, de um lado para o outro em casa das amigas, mas sempre com autorização da mãe, claro.
Estarão a perguntar: quem lhe faria esses caracóis? Era uma senhora amiga da mãe da Clarita, chamada Clarinda. Era muito habilidosa. Claro que era preciso dormir com os papelotes até ao outro dia. Ficavam muito bonitos.
Como era única filha, procurava sempre a companhia de outras crianças para poder brincar.Perto de sua casa morava uma família que tinha vindo de Angola e que tinha três filhos: uma menina e dois rapazitos.A menina era da idade da Clarita e os dois miúdos eram mais novos.
Durante o dia brincavam todos juntos; umas vezes em casa da Clarita e outras vezes em casa da Hélia, assim se chamava a menina.Eram todos muito amigos, mas por vezes havia aquelas zangas próprias da idade.Essas zangas logo passavam; a amizade era tão grande que, quando iam ao fotógrafo tirar fotografias, queriam tirar com o mesmo vestido.Como não podiam tirar juntas, tirava uma e despia o vestido para de seguida tirar a outra.
O vestidinho era de crepe, verde água, com umas bolinhas brancas e outras, verde mais escuro. Tinha mangas curtas e a rematar o decote, um folho tipo babeiro, como se dizia, branco, muito bem feito. A rematar a bainha tinha um folho como o de cima. Os vestidos eram feitos pelas mães das meninas, que eram muito habilidosas.
O Carlitos, assim se chamava um dos meninos e o Alfredo, que era o mais pequenito, juntavam-se sempre às brincadeiras da irmã e da Clarita.Regra geral brincavam às escolas; enquanto uma era a professora, os outros eram os alunos.Então, a professora daquela turma tinha por hábito começar as aulas pela disciplina de desenho.Como não havia dinheiro para comprar cadernos de desenho, aproveitavam-se os cadernos de duas linhas e, mesmo assim, era uma folha para cada um, que tinha de ser bem aproveitada.
E onde iam arranjar um lápis para cada aluno? Era a Hélita que ia ao fato macaco, do pai, que trabalhava no estaleiro naval e, por isso, tinha sempre mais do que um lápis. Claro, quando acabavam a aula, iam pôr os lápis no sítio donde tinham sido tirados.
A aula era dada com muito cuidado; cada aluno tinha de fazer o seu desenho muito bem feito, porque se não o fizesse, era todo apagado.Regra geral, era a Clarita que, naquele grupo, tinha um pouquinho de jeito.
...brincavam à macaca
Todos tinham de aprender a segurar bem no lápis; o pulso bem firme na mesa e só a mão é que se movia; enfim tinham de fazer algum desenho para ser avaliado.
Quantas vezes iam para fora do muro da casa, brincar a outras coisas, como, por exemplo, à macaca, que era feita na eira da casa, com uma pedra partida que riscava o chão.
Às vezes estavam nesta brincadeira e tinham de se afastar, para a carroça que transportava o pão, passar.É que, um pouco mais à frente, vivia um casal que tinha uma filha já mais velha, mas com quem se davam muito bem. O pai dela era padeiro e trabalhava por conta do ti Zé da broa. Transportava o pão com uma carroça muito bonita; era do feitio de uma casinha com a parte de cima arredondada, para a água da chuva escorrer e não molhar o pão.
Era pintada de amarelo e atrás tinha duas portas, que abriam de lado, para o pão ser servido às freguesas. O pão vinha muito bem acondicionado em cestos grandes, tapados com panos brancos. Pendurada, num dos lados, vinha a balança, muito limpa, para pesar a broa.
Uma burra simpática
O alarme de que o padeiro estava a chegar era dado pelo toque de uma corneta, muito amarelinha…andava sempre a brilhar.
E como era que a carroça andava? Era puxada por uma burra muito simpática, de cor castanha, olhos pestanudos e sempre brilhantes. Obedecia ao dono sempre que ele lhe dava uma ordem.Sabem como se chamava a burra? Era a Carriça.
A Carriça vivia num alpendre todo tapado, com exceção do lado da frente. Em vez de ter porta, tinha uma trave do comprimento do alpendre. Era aí que o ti Torres, assim se chamava o padeiro, lhe ia dar a palha para ela comer.Era muito obediente a Carriça; bastava abrir-lhe a trave e chamá-la que lá ia ela.
Quando a Carriça ia pastar para alguma terra, que não estivesse cultivada, não era preciso andar junto dela. Para ir para o seu alpendre bastava chamá-la.
Era uma burra muito inteligente e muito obediente.

9 comentários:

  1. Ele há cada burra... esta está perfeita! Quem lê este texto parece que está a ver um filme tão minucioso e determinado que nos faz galgar as palavras e chegar de um folego ao fim. Memórias destas davam para fazer um livro...

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  2. Julinha, tu consegues transpor-nos para a nossa meninice com tanta realidade que ao lermos este texto, apetece-nos ser outra vez crianças.
    E a Carriça? Era muito engraçada não era?

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  3. Que belo transporte ao longinquo tempo.
    Obrigado de JM

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  4. Meninas de vestidos de crepe com folhos, a jogar à macaca; uma burra, bem inteligente, importante veículo de carga e de passageiros... Retalhos coloridos da minha infância que a Júlia, mais uma vez, me faz reviver com todos os pormenores.

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  5. Eu quero apreciar um quadro verdadeiro da burra Carriça, tão sugestivo como o texto, e das crianças a vê-la passar. Quem o poderá pintar? Aceitas o desafio, Júlia?

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    1. Uma otima sugestão e um desafio facil de concretizar para tão bela artista. Boa Fernanda.

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    2. Vou pensar na vossa sugestão e quando tiver um tempinho sem ter T.P.C para fazer sou capaz de me dedicar a uma bela recordação pintada.

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  6. Uma história bem simpática do tempo em que ainda havia burros inteligentes - A burra Carriça - narrada por uma excelente contadora de histórias.

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  7. Recordaste-me a infância, quando as nossas brincadeiras eram bem simples e não havia computadores, telemóveis e todos esses jogos que impedem as nossas crianças de brincar de forma saudável.
    Nem macaca, nem ringue, nem os jogos tradicionais de que tanto gostávamos.
    Obrigada por me relembrares esses maravilhosos tempos.

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