quarta-feira, 9 de janeiro de 2013

O PESO DA SOLIDÃO - CARTA A UMA AMIGA

Dores Topete 

Olá Lígia

Há tanto tempo que não te escrevo, aliás, parece que a escrita está cada vez mais em desuso, o nosso último contacto foi pelo telefone e já lá vão uns meses. Espero que tu e a tua família continuem bem.
Hoje quero escrever-te porque sinto que ao fazê-lo, vou poder extravasar tudo o que me vai na alma, e só contigo o posso fazer, não só porque és a minha melhor amiga, mas também porque sempre me aconselhaste bem, eu é que infelizmente nem sempre te dei ouvidos.
Por isso, agora, que a minha vida vai levar uma reviravolta, és tu a pessoa a quem quero contar, porque sempre viste o que eu nunca quis ver e, por isso, sofri e paguei caro a minha cegueira.
Estou a recordar a minha vida, a infância maravilhosa que tive, filha e neta única, vivi sempre rodeada de amor e carinho, tive muitos amigos, brinquei, estudei e namorei, e tu foste a amiga que me acompanhou desde sempre.
Como tudo na vida tem um fim, a minha felicidade acabou, precisamente quando acreditei que iria ser completa. Enamorei-me da pessoa errada, acabei grávida e viúva sem sequer ter casado. O Ernesto foi na minha vida um pesadelo, não só porque foi um ser humano mal formado, que me enganou, me engravidou, me mentiu, mas também porque não aceitou a minha gravidez, e acabou por morrer vítima de um acidente em consequência das noitadas tresloucadas que fazia com os amigos, antes mesmo de ter tempo para reconhecer o filho.



 Não fora todo o sofrimento que passei, e eu pensaria que tudo isto não era senão um romance trágico a vender barato em qualquer quiosque.Tu, melhor que ninguém, sabes o que passei para criar este filho. Na altura era difícil ser mãe solteira, com uns pais já velhos, sem entenderem muito bem a vergonha da situação.

Dediquei-me de alma e coração ao meu filho João, trabalhei muito para que nada lhe faltasse. Apesar dos conselhos que me davas para continuar a vida, casar, ser feliz, eu nunca te ouvi. Como me arrependo agora destes anos de solidão, de sofrimento, de sentir que estava incompleta, desasada.Nos primeiros anos o João preenchia a minha vida, ele achava que eu era dele, e por isso tinha que estar sempre disponível. Não me importei, vivíamos um para o outro.

Entretanto ele foi para o liceu e começou a ser mais independente, mas egoisticamente, ia cortando as possibilidades que eu tinha de sair com os meus colegas e amigos. Eu, contrariando a tua vontade e opinião, ia-me deixando ficar, até que lhe chamaste a atenção para o seu egoísmo e ele não gostou. Eu para evitar discussões, até contigo deixei de estar mais vezes.

Como são cegas as mães… como pude eu, que sempre me acreditei inteligente, deixar que o meu filho me manipulasse desta forma?O tempo foi passando e eu fui ficando cada vez mais só, os meus amigos e colegas criaram as suas próprias famílias, os seus grupos de amigos, de que eu por culpa própria não fazia parte.O João foi para a universidade, saía todas as noites, eu estava com ele ao jantar e não era sempre. Comecei a queixar-me de que estava muito só, e para meu espanto ele disse-me “Tenho a minha vida e os meus amigos e aborrece-me que estejas sempre a queixar-te, nem tenho por vezes vontade de vir para casa por saber que estás à minha espera, sentada, como se fosse ponto assente que eu tenha que vir”.
Por muitos anos que viva, minha boa amiga, não posso nunca esquecer esse momento. O meu filho, que criei sozinha, que exigiu de mim uma atenção permanente, acusa-me agora, ao fim de vinte anos, de lhe estar a ensombrar a vida com a minha presença.Quando lhe respondi que estava só, sem amigos, porque tinha vivido com ele e para ele, porque fora assim que me pedira, respondeu-me que então agora estava chegado o momento de começar a sair com os meus colegas porque ele tinha também a sua vida.

Lígia, há sofrimentos que não se conseguem exprimir por palavras nem pela escrita, por isso só te posso dizer que nada do que passei na vida se iguala ao sofrimento que senti então. Recolhi-me um pouco mais, isolei-me mais, nem a ti, minha boa amiga, eu contei o que se estava a passar.Tornei-me uma pessoa pacata sem interesse fosse pelo que fosse, a única saída a que me permiti foi a ida ao ginásio, que frequentava três vezes por semana por razões de saúde.
Os meus colegas de ginásio gostavam de mim, segundo parece, o meu ar ausente e a minha aparência tornavam-me uma quarentona interessante, era pelo menos o que diziam os colegas.Estavam sempre a convidar-me para os lanches e os jantares de grupo do ginásio, eu estupidamente, e até por não estar habituada a sair, ia recusando.
O João apareceu-me em casa numa noite com a namorada para que a conhecesse e para me comunicar que se ia casar. Estava formado, tinha emprego e por isso ia constituir família.Concordei, dei-lhes os parabéns e quando se foram embora chorei, chorei toda a noite, porque conclui que já não fazia parte da vida do meu filho. Agora sim, ia ficar até sem as migalhas da sua presença.
É triste Lígia, é aterrador, é um misto de raiva, dor, de uma sensação de vazio, de incapacidade para compreender.Enfim, casaram e eu continuei a minha vida, agora aposentada antecipadamente porque a empresa onde trabalhava, fechou.
As minhas idas ao ginásio passaram a ser os melhores momentos dos meus dias. Acabei por me deixar convencer a ir aos lanches e aos jantares e a minha vida tomou outro ânimo. Já nem parecia a mesma, redescobri o prazer de viver e estar em grupo.

A isso não era alheia a presença do Zé Ribeiro, um viúvo de sessenta anos cheio de alegria, que teimava em me fazer rir com as suas brincadeiras e atenções.É isso, amiga, é mesmo o que estás a pensar. Se eu bem te conheço, pensas “Finalmente a minha amiga Rafaela decidiu-se a ser feliz”.É bem verdade, pela primeira vez desde os meus vinte anos sinto-me solta, alegre e aprendi a gostar de ser feliz.
Mas, há sempre um mas, a minha vida não pode ser simples como a das pessoas ditas comuns. O meu João telefonou-me a dizer que vinha cá a casa para falar comigo.Veio com a Teresa (a mulher) dizer-me que iam ter um bebé e que esperavam que durante o dia, eu ficasse com ele por ser mais saudável e também mais prático, não só por pouparem o dinheiro do infantário, mas também porque não teriam que cumprir os horários de entrada e saída.
Lígia, fiquei felicíssima por ir ter um neto, é uma alegria intensa. Agradeci-lhes pela novidade, mas disse-lhes que tinha finalmente começado a viver, tinha passado quase trinta anos a viver em função do meu filho, sendo que uma boa parte deles tinha sido a sofrer uma solidão sem limites. Agora, tinha feito finalmente amigos, tinha criado outro tipo de vida para mim, onde a solidão já não se fazia sentir tanto e tencionava não abdicar desta nova oportunidade que Deus e  também o acaso tinham criado para mim.Aliás, tinha feito o que o meu filho me tinha dito quando estava na universidade, tinha tentado e estava a conseguir ter uma vida própria.
É indescritível a cara do meu filho, foi como se não houvesse ar que lhe entrasse nos pulmões. Quando finalmente conseguiu falar, foi para me dizer que não entendia como podia estar a negar a presença do meu primeiro neto. Que lamentava que o filho não tivesse avó.Respondi-lhe que estava muito feliz por ir ser avó e gostaria muito de ter o meu neto comigo, mas não em situação permanente porque eu também, tal como eles, tinha uma vida e disse-lhes mais: “Não compreendo a tua atitude João, quando tu mesmo me disseste que eu nunca deveria ter-te dado ouvidos e ficado sozinha. É pena filho, que tenha sido numa altura em que te dava jeito, mas eu aprendi a lição, mais vale tarde do que nunca”. E foi assim Lígia, o João e a Teresa saíram muito arreliados e dececionados comigo mas eu mantive a minha posição.Tenciono, se me deixarem, ser uma avó presente na vida do meu neto mas não quero abdicar de uma vida que comecei a construir finalmente aos quarenta e sete anos.

Na próxima semana vou com o grupo para férias em Tenerife. O Zé Ribeiro fez-me prometer que seria sua companheira à mesa e nas festas. Quem sabe… Talvez eu consiga aceitar a sua companhia e juntarmos as nossas “solidões” para percorrermos um caminho juntos.Acredito que estejas contente com este desfecho. Eu, minha boa amiga, estou finalmente a começar a ser feliz.
Nunca é tarde.
Um beijo e desejos de muita saúde para ti e para a tua família,  

4 comentários:

  1. Se eu fosse a Lígia, metia-me num comboio e ia dar-lhe um forte abraço. Esta carta revela que é sempre possível alterar o curso da nossa vida. É que o desenho do caminho que vamos traçando é como a imagem das coordenadas da nossa mente. Aí, vamos desenhando as nossas opções e, um dia, encontramos a verdadeira bússola da vida e começamos a valorizar o que é importante, sem abdicar, em equilíbrio.
    Parabéns às mães de todos os jovens que pensam que as mães são seres trabalhadores, prestáveis e sempre disponíveis. Um dia, felizmente, têm de enfrentar outra verdade!

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    1. Agradeço o teu comentário,foi importante para mim que tivesses captado o sentido da minha mensagem. É bom quando assim acontece.

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  2. Infelizmente há muitas mães que passam uma vida de sacrifício.Puseram os filhos no mundo e nunca mais deixaram de sofrer pelos mesmos.
    Se eles adoecem a mãe sofre,se ficam sem emprego, a mãe sofre sacrificando-se a dar-lhe o que podem e muitas vezes o que não podem.
    As mães são umas verdadeiras heroínas. Honra lhes seja feita.

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  3. Esta é uma situação complicada mas tem várias formas de ser encarada: realmente a Rafaela não foi muito feliz na forma como educou o filho. Pensando que fazia o melhor fez dele um ser egoista que só pensava nele próprio. Esqueceu-se de si mesma e da sua existência como ser humano. Como diz a Fernanda há que saber conciliar os diferentes papéis que vamos desenvolvendo ao longo da nossa vida. E se quisermos temos tempo para tudo: para sermos mães, para sermos avós e para sermos nós! E sermos nós é tão necessário como tudo o resto! A Rafaela isolou-se do mundo para criar um filho; o mundo à sua volta continuou e quando ela despertou desse isolamento percebeu que estava só!Uma solidão que ela própria criou... Ainda bem que despertou mas a felicidade não se alcança espartilhando a vida!

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